domingo, 3 de março de 2024

SÉRIE ESTUDOS - BANALIZAÇÃO DA REPRESENTATIVIDADE


 Ficção da Representatividade

Vagner Gomes de Souza

 

O tema da representatividade racial foi aos poucos dominando o mundo globalizado a partir de suas fontes norte-americanas. Tanto lá como cá se faz comum em dizer num “lugar de fala” que hipoteticamente estaria a espelhar a face subjugada de um segmento da população. Esse viés hipermoderno esvaziaria a ampla contribuição de obras como a de Karl Marx que fez uma ampla análise do nascente mundo operário sem tocar suas mãos numa máquina fabril.  Assim, editoras, livrarias, imprensa, programas e novelas de TV, enredos de Escola de Samba, Disciplinas foram se fechando para outras interpretações ou temáticas em nome da pretensa apresentação da representatividade. Seria o momento de uma necessária “reparação histórica”, porém ela é modulada por uma elite econômica e social.

Debate muito antigo nos EUA sobre como as “derivas identitárias” estariam deslocados da realidade. O cientista político Mark Lilla muito tem contribuído nessas observações e lamentavelmente não tem uma nova edição de seus livros no Brasil desde a ascensão, nos dizeres de Peter Burke, do “mundo da ignorância” em nosso país (O progressista de ontem e do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias merece uma segunda edição). Logo, seria um equívoco entender esse debate como do “campo da esquerda” uma vez que se insere nas colocações sobre o nível de uma democracia espelhada como se depara em alguns estudos da Ciência Política.

Aos poucos, alguns intelectuais e formadores de opinião se manifestam com maior intensidade sobre o tema “nadando contra uma maré” uma vez que beneficia o mercado. Imagine desejar pleitear uma indicação ao Oscar num momento em que essa problematização de representatividade fez conferir um anacrônico discurso nacionalista para diversos movimentos políticos extremistas tanto no “Make América Great Again” quanto no “Chega” do mundo ibérico.

O filme “Ficção Americana”, em exibição na PRIME vídeo, faz esse desafio de reflexão no quais muitos que resenharam seu enredo tentaram ficar alheios ao seu principal ponto. Seria possível fazer um drama familiar com atores negros sem a necessidade de reprodução de estereótipos. Negros de classe média que atuam numa saúde privada como médicos (um deles é cirurgião plástico) e não tem condições de pagar à custa da atenção a mãe em início de degeneração da memória. Todavia não se trata de um filme sobre a “saúde preta”, mas uma sátira política social de como a ficção da representatividade afasta o debate do bem estar social. Parece revolução, mas é tudo neoliberalismo.

O seu diretor é estreante na função. Muitos podem apontar os chamados clichês cinematográficos, porém o debate sobre a representatividade é uma sequência de clichês. Cord Jefferson, assim como Barack Obama, é filho de pai negro e mãe branca (os avós maternos nunca aceitaram essa relação ao contrário do acolhimento que houve pelos avós maternos do ex-presidente), mas tem a melanina raramente acentuada. Entendemos que o drama familiar seria a base de um filme sobre a busca de um representatividade no mundo real.

Cord Jefferson: Black or White nos dizeres de Michael Jackson

Cord faz um belo roteiro adaptado do romance Erasure de Percival Everett[1] o que demonstra ser um filme de opinião com o objetivo de corrigir essas “derivas identitárias”. A escolha do elenco foi nesse sentido uma vez que observaremos atores negros que atuaram em séries de TV e filmes a margem da “onda da representatividade” apesar de seus talentos conferidos em Ficção Americana.

Jeffrey Wright é o protagonista do filme depois de ter sido Felix Leiter nos filmes de James Bond estrelado por Daniel Craig entre essas aparições ele está em Cassino Royale (2006), Quantum of Solace (2008) e No Time do Die (2021) e o tenente James Gordon em Batman (2022). O ator teve um bacharelado em Ciência Política que pode lhe ter ajudado na construção desse personagem diante do tema da representatividade. Ele é Monk. Um escritor negro brilhante, mas seus livros não são populares já que ele se recusa a retratar negros de forma estereotipada em seu trabalho. Ele decide criar uma obra comercial e escreve uma história carregada de preconceitos como piada. Só que o livro se torna um best-seller da noite para o dia. Com o dinheiro caindo em sua conta, mas com a consciência pesada, Monk é obrigado a encarnar um personagem do gueto para manter a farsa.

No decorrer do filme temos o drama romântico e outros dramas vividos por negros e outros seres humanos diante do mundo real. Por exemplo, o que faz uma Clínica de Programa de Controle de Natalidade ter detector de metais? Os fundamentalistas defensores da vida usam armas e ameaçam a vida de médicos que fazem a prática humana do aborto nos EUA. Essa contradição sutilmente entre nesse filme de reflexão aonde um negro não esconde sua homofobia. E o Diretor, nascido em Tucson (Arizona) faz uma piada sobre sua cidade natal.



[1] Autor que só tem uma publicação traduzida no Brasil (As Árvores) com um valor de capa inacessível para uma previsão de entrega de 110 dias segundo o site de uma grande rede de livraria. Uma demonstração que falta um debate sobre os livros nacionais e traduções no atual Governo das Representatividades.

Um comentário:

Anônimo disse...

Relevante intervenção sobre um filme que discute temas da ordem do dia. O romance é do início dos anos 2000. De lá para cá a problemática se avolumou