segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: INFILTRADO NA KLAN

 
INFILTRADO NA KLAN: SPIKE LEE FAZENDO A COISA CERTA

Dedicado a um certo capitão Rodrigo, um infiltrado
Por Pablo Spinelli
A construção de um pensamento de um intelectual pode, em muitas vezes, sofrer flexibilidades, mudanças, rupturas, reposicionamentos, aprofundamentos, autocrítica, enriquecimentos de acordo com o avançar da idade. Não é uma lei, mas é o que ocorre na maioria das situações dos escritos deixados por filósofos, escritores de ficção, poetas, pintores, cantores em geral. Um caso de uma percepção arguta, perspicaz das mudanças dos tempos, das variações de um público ao longo de décadas é da extraordinária e multifacetada Bibi Ferreira que nos deixou recentemente. Dos musicais americanos traduzidos para a nossa língua; das comédias de costumes e clássicos de nossa literatura, a atriz mais idosa até há pouco em atividade no país chegou à “Gota D’Água”, musical de Paulo Pontes e Chico Buarque que adaptava o clássico grego, a tragédia Medéia, para o Brasil dos anos de chumbo da década de  1970. Foi Bibi Ferreira que popularizou para as gerações com mais idade a vida e obra de Edith Piaff, antes do excelente filme que nos revelou Marion Cotillard.  Peça política, musicais americanos, divas – além de Piaff, a portuguesa Amália Rodrigues. E muito, muito mais.
Para além da devida homenagem para Bibi Ferreira, podemos usar – a não sem polêmicas – distinção entre “jovem” e “velho” para vários pensadores, onde geralmente, o primeiro adjetivo tem uma carga de arroubos, de insights que se revelariam mais tarde na obra madura, o jovem, como tal, seria o voluntarista, extremista na análise da vida – seja pelo excesso de otimismo da mudança, seja pela perspectiva pessimista que nada há de se fazer. Foi gasto uma energia muito grande para encontrar rupturas e continuidades entre o “jovem” e “velho” Marx, um labirinto que o filósofo Louis Althusser criou e poucos querem sair. Assim aconteceu com Hegel, Tocqueville, Sartre, além dos clássicos gregos, para citar alguns. Claro que o tempo pode gerar mudanças para o bem ou para o mal, depende de quem lê. Do idealismo para o materialismo; do liberal conservadorismo para o reacionarismo, do radical para o moderado, isso tudo fica a gosto do freguês. Há certos parâmetros que procedem. Uma dessas divisões que já é clássica na literatura acadêmica é o caso do jovem Gramsci, cheio de revolução nos capilares, que achava que a Revolução de 1917 contrariava O Capital, com o Gramsci mais velho na cadeia, onde revê seus erros naquela conjuntura, afinal, dissera que o fascismo seria breve. Algo que não viu ao passar de cárcere em cárcere pelas mãos daqueles que ocuparam o poder em 1922 e só saíram oficialmente em 1944, não pela ação do movimento da política na sociedade civil, mas pelo uso da guerra de movimento das tropas aliadas, dentre elas – como tão simbolicamente ficou retratado em A Vida é Bela – a dos EUA que ampliaria o seu americanismo e fordismo pela Europa Ocidental.
Após essa longa introdução cujo objetivo é dizer que uma obra só não sintetiza o pensamento de um autor; que a ruptura entre “jovem” e “velho” não quer dizer que seja progressiva e, em alguns casos tal distinção nem existe, e, não menos importante, identificar que muitos dos que participam com veemência da paranoia instituída por alguns intelectuais e youtubbers que Gramsci com seu “marxismo cultural” foi o patrono da destruição dos valores ocidentais, não leu um terço do que esse autor, professor de Letras, crítico de teatro, escreveu. Mas, vamos ao que interessa: o que isso tem a ver com cinema e Oscar?
Alguns autores marcaram suas obras por certas idiossincrasias a ponto de ser fácil reconhecer o diretor pelo filme. A loira de Hitchcock, diretor que já dizia quem era o culpado logo no início do filme (exceção é Psicose). O personagem Antoine Doinel, alter-ego na maior parte dos filmes de Truffaut. As questões psicanalíticas e o inconformismo monogâmico de Woody Allen. Os personagens da periferia urbana, como taxistas e gangsters de Scorsese. Os silêncios e os enquadramentos de Ingmar Bergman. O surrealismo de Luis Buñel.  O exagero circense e rabeleisiano de Fellini. A câmera na mão e as alegorias de Glauber Rocha. Hoje, alguns remanescentes do que seriam diretores-autores, são Tim Burton, Wes Anderson e Quentin Tarantino. Suas digitais estão em todos os seus filmes de forma perceptível. No caso do diretor Spike Lee, se tivermos que buscar um espaço a partir de sua trajetória, ele está mais para as mudanças entre o “jovem” e o “velho” colocadas no nosso preâmbulo, prezados leitores, do que o diretor que mantém sua marca sem abrir mão de seus conceitos visuais estéticos e de abordagens de roteiro.
 
Spike Lee é um diretor que começou jovem no início dos anos 1980. Começou com documentário que tratavam de forma virulenta o tema do racismo contra os negros. A questão da identidade negra está presente desde sua infância, pois nascera em Atlanta, no sul dos EUA, o mesmo Estado retratado no clássico do cinema que defendeu a causa sulista na Guerra de Secessão, “...E o vento levou”. Sua juventude foi no Brooklin, local onde a vida societária é segmentada: brancos, latinos, negros, orientais. Sua carreira deslanchou no filme Faça a coisa certa (1989) onde aponta uma metralhadora giratória para todas as etnias que teriam como denominador comum o preconceito. Seu filme mais ambicioso – herdeiro de seu início como documentarista – é o polêmico Malcolm X (1992) que foi encarnado magistralmente por Denzel Washington que perdeu para o Oscar porque havia um Al Pacino cego dançando tango. Por falar em dança, Spike Lee, admirador confesso de um cantor de cabelo afro com uma voz singular e uma dança singular, Michael Jackson, acabou por produzir um dos seus álbuns e disse que passou pela filmagem mais difícil de sua vida ao subir em uma comunidade (Dona Marta, em Botafogo) onde o tráfico garantiu a segurança de sua equipe. E assim foi feito o clipe de They Don’t Care About Us, de 1996.
Spike Lee com um cantor que estava sendo alvo de bombardeios por conta de motivos inconfessáveis não assumia sua negritude. Esse é um Spike Lee diferente da pauta da identidade, da valorização da diferença como forma de ampliar direitos. Michael Jackson acabou por ser um ponto gradativo da virada de um diretor que começou a visar os problemas políticos da política americana para além da pauta de um ou outro movimento. É o Spike Lee da frente política. Um dos filmes mais “estranhos” para alguns críticos do já sexagenário diretor é O plano perfeito (2006), estrelado por Denzel Washington, Clive Owen e Jodie Forster. Esse filme, sem querermos adiantar sua trama, é a semente que floresce em Infiltrado na Klan (2018).
A partir de um episódio real que parece inacreditável, Lee resgata a trajetória de um policial negro que consegue se infiltrar na KKK através da sua astúcia e da tecnologia da época: telefone com fio. Spike Lee começa o filme fazendo um ajuste de contas com o seu Estado de origem. Aparece Scarlet O’Hara perdida entre centenas de feridos do Sul à procura de “seus  negros” diante daquele massacre. Logo em seguida, uma homenagem aos filmes que eram tinham diretores e elencos negros (é, leitor jovem... Pantera Negra e Corra não colocaram o ovo em pé), o que foi chamado de blaxpoitation. O mais famoso deles foi Shaft (1971). A musa foi a atriz Pam Grier, a mesma que foi resgatada por Quentin Tarantino em Jackie Brown (1995).
O curioso é que ainda há um pouco do jovem e intempestivo Spike Lee no atual. Um exemplo disso foi uma polêmica onde acusou Tarantino de ser racista por conta do vocabulário que seus personagens de todos os tons de melanina aplicam aos afro-americanos. O estopim foi Django Livre (2013). Tarantino respondeu que além de ter trabalhado com Pam Grier, é notória sua relação com Samuel L. Jackson, além de ter revelado para o grande público Ving Rhames, o temido Marcellus Wallace de Pulp Fiction (1994). O resultado disso foi a provocação com mais dureza ao personagem de Samuel Jackson em Os oito odiados (2015). O ponto paradoxal é que a abertura do filme e algumas cenas e falas remetem justamente a filmes de Tarantino. Seria um indicativo da mudança do radicalismo do diretor?
Infiltrado na Klan é um filme de narrativa irregular. Tem pontos que parece documentário. Outros, drama, outros, comédia de erros (como as dos Irmãos Coen). Não deve ganhar nenhuma estatueta, na melhor das hipóteses, por conta da ardente paixão de Spike Lee, o Ken Loach americano, a de roteiro adaptado. Porém o filme tem méritos. Revela um ator que lembra aos espectadores de mais de 40 anos os maneirismos de outro ator negro (preto, afro-americano) Richard Pryor; o protagonista e herói improvável John David Washington. Um caso semelhante ao do clã Carradine e de Michael Douglas, o poder da genética: o policial que trabalha usando a lei e a política de unidade com um policial judeu contra o racismo é filho do mesmo ator que fez o ativista Malcolm X, Denzel.



O policial judeu vivido por Adam Driver nos trouxe a percepção da má condução dos últimos filmes da franquia de Star Wars. Adam Driver é ator, e dos bons, e não um genérico mal resolvido de neto de Darth Vader. No filme há a presença do ator, cantor e ativista Harry Belafonte, uma das maiores vozes contra a segregação racial no século passado. Todo o elenco de brancos racistas foi bem conduzido pelo diretor e seu roteiro. Infiltrado na Klan nos faz acreditar que Spike Lee ao ver o resultado da última eleição presidencial dos EUA se perguntou: por que perdemos? Lee saiu do Brooklin, de Nova Yorque, do Bronx. Foi para a América profunda do escritor William Faulkner, do dramaturgo Tenesse Williams. Infiltrado na Klan tem muito a dizer para o Brasil atual. Primeiro, porque uma parcela da esquerda ainda acredita que movimentos que apostam cada vez mais na diferença terão mais força do que um princípio da universalidade – quem valoriza a diferença é o extremista conservador, como os membros da Klan, os nazistas, os homofóbicos, os misóginos, como nos revelou o professor Antonio Pierucci no livro As ciladas da diferença (1999).
Segundo, porque parcelas dessa mesma esquerda ignoraram o Brasil profundo, o brasileiro das pequenas e médias cidades; os  brasileiros de Barradinho, do interior de Goiás, Tocantins, Roraima. Terceiro, assim como já fizera em o Plano perfeito, Spike Lee convoca os judeus americanos para dizerem em Infiltrado que está tudo na mesma cruz a pegar fogo. Para superar uma provável reeleição de Trump é necessário invenção na política, criatividade. Obamas e Clintons. A personagem ativista feminista seria uma jovem Michelle Obama? Mulher, negra e protestante. Por fim, mas não menos importante, será que teríamos ineptos que não perceberam que havia um infiltrado no governo que num conchavo com a maior emissora do país passava vazamentos sobre movimentações financeiras? Ou isso é cortina de fumaça para encobrir o que o público conservador adorou, foi ao delírio, quando ouviu o diretor de Marighella falar no final de Tropa de Elite 2 sobre milícias, sistema e Brasília?

sábado, 16 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: PANTERA NEGRA

 Cena do Filme Pantera Negra
PANTERA NEGRA: BLACK IS BEAUTIFUL
Por Pablo Spinelli
Dedicado à memória dos jovens do time rubro-negro carioca
A cultura pop tem canais de reflexão sobre a conjuntura política com muita maestria e sensibilidade, independente da formação ideológica. Um exemplo que vem desde os anos 1960 são os filmes da franquia 007. Outro são os quadrinhos ou em forma cult, graphic novels do mundo da Marvel, algo que está presente nas mais de duas dezenas de produções que começou com Blade e está no apoteótico Thanos, o simbolismo metafórico do desemprego estrutural vigente no mundo onde a robotização num estalar de dedos cria desempregados  e subempregados (há alguns que falam que  é uma alusão aos escritos de Malthus). A Marvel é uma editora de Centro político com viés mais Democrata de um Clinton que um Republicano de Trump; aliás, por sua vez, mais Clinton que Obama; mais George W. Bush do que Trump.
A primeira história do Homem de Ferro se passa no Vietnã. As atrocidades com Tony Stark são feitas por vermelhos, como está escrito na história original. Hulk vem do medo da guerra nuclear e das consequências nucleares de Hiroshima. Homem-Aranha foi a forma pela qual a editora viu a possibilidade de ter o retorno dos jovens aos seus gibis. Já foi questão da UERJ a relação entre os X-Men e os movimentos contra as leis segregacionistas contra os negros. Professor Xavier como Luther King e Magneto como Malcolm X (de onde saiu o “X”). O movimento negro conseguiu um personagem urbano cuja pele era o seu poder, Luke Cage. Assim foi com o leitor católico com o personagem mais barroco dos quadrinhos, Demolidor (cuja adaptação na NETFLIX é a melhor adaptação de todo o universo Marvel, em especial a última temporada). O mundo esotérico entrou em moda? Os costumes foram abalados pelos ácidos lisérgicos dos anos 1960? Aparece o Dr. Estranho. Os filmes do lendário Bruce Lee fazem bilheterias enormes? Cria-se Punho de Ferro. O mercado editorial precisa da Europa para o consumo? Thor, Colossus,  Gambit, Capitão Britânia, dentre outros, cumprem bem esse papel.
 
 Martin Luther King JR e Malcom X
 
Nos mesmos anos 1960 temos um processo intenso e nada fácil de descolonização na África. A “missão civilizadora” de Tintin mostra para que veio. Imerso em guerras civis, o continente tem países novos que precisam criar uma identidade nacional, uma autoestima que tem que ser valorizada. A ideia de valorização da negritude se espalha pela América de norte a sul por conta da infeliz presença da escravidão de origem negra para esse lado do Atlântico. Nos EUA, no início dos anos 1970, após o desaparecimento violento do Dr. King e de Malcolm X surge o grupo Pantera Negra, cujas virtudes – valorização da cultura negra; teias de  solidariedade; politização das  camadas periféricas estadunidenses; uso da lei que permite o porte de arma para todos os cidadãos para intimidarem as batidas de policiais brancos aos negros que por medo, surpresa ou violenta emoção, geralmente terminava em autos de resistência -  acabaram por se perder por perda de líderes que foram substituídos por oportunistas; radicalismo; uso da  luta armada; corrupção. A Marvel, aproveitando a conjuntura e seu tino comercial incansável, acabou por criar um herói que tinha tudo para dar certo: um negro africano. Mas o etnocentrismo não permite grandes arroubos, seria um negro africano com o nome de um movimento dos EUA: Pantera Negra.
O filme Pantera Negra, candidato ao Oscar, é o filme que reúne diversos motivos para estar ali. Foi bem de bilheteria, vai trazer a juventude para a cerimônia, tem um elenco praticamente negro, um bom roteiro (que faz muita falta a todos os Vingadores) e, o essencial: é bom.
O filme usa o visual com muita proximidade ao original. O vilão branco é de origem da África do Sul do apartheid. O filme tem uma toada shakespereana muito interessante ao abordar vingança, traição, disputa por um trono. A dignidade do filme ao tirar do olhar do senso comum que a África é apenas a savana com o leão comendo a zebra ou crianças famélicas com mães desnutridas já vale a sua indicação. Por motivos de direitos autorais já resolvidos, posto que a Disney comprou tudo que tem direito, o vibranium nada mais é que o adamantium de Wolverine e do escudo do Capitão América.  Para ter garras precisa da África do Pantera.
Para as aulas de história há traços importantes que podem ajudar os alunos a compreenderem o valor da oralidade no mundo africano; que diferente do mundo europeu, sentar no trono não é vinculado à hereditariedade, mas é um espaço público e democrático aberto a disputas, sem privilégios. O filme mostra que não existe a África, mas Áfricas, sendo que uma etnia não quis se submeter aos felinos negros. O valor da ancestralidade; o papel dos griôs – o sempre competente Forrest Whitaker que já foi O último rei da Escócia. Para completar, Pantera Negra precisa de cérebros e destreza física de mulheres, seja a irmã adolescente, seja o grupo de guerreiras que o acompanha.


O enredo nos coloca em duas situações muito importantes para os dias atuais. O Brasil, no atual governo, adota uma política externa que contraria a sua tradição desde Rio Branco, passando pela presença em duas guerras mundiais contra governos autocráticos, participou de forma decisiva para a criação do Estado de Israel e Jerusalém como cidade internacional, contraria a política externa dos generais-presidentes na ditadura, posto que Geisel foi o primeiro governante a intensificar  as relações com o continente africano e prontamente reconheceu os governos liderados pela esquerda em Angola  e Moçambique, isso para não citar o Mercosul que foi erigido por Sarney e a abertura radical à globalização de Collor onde o Brasil sediou uma conferência internacional visando a conservação do meio-ambiente (ECO 92). A bandeira do antiglobalismo (sabe-se lá o que é isso em um país derivado de uma Expansão Marítimo-Comercial) defendida pelo chefe do Itamaraty é algo similar aos dilemas de T’challa. Abrir ou não abrir Wakanda para o mundo? Refugiar-se numa zona de conforto que é disfarçada pelo pastoreio e simplicidade ou permitir que sua tecnologia tenha como alvo o bem comum global? Como é estar na África sem ver os mais diversos problemas que rodeiam o continente, como o uso de crianças em exércitos e tráfico humano – como o filme apresenta em seu início – e ficar indiferente? A decisão de T’challa e o discurso final na ONU valem todo o filme. Uma demonstração que se pode falar pouco em uma conferência internacional, mas falar propositivamente, de forma democrática e inclusiva, sem abrir mão de suas tradições.
Além disso, há uma mensagem para a esquerda, negra ou não. A personagem de Killmonger, por conta de um trauma, acaba por servir aos EUA para ter uma expertise que objetiva a conquista do trono manchado de sangue. Sua política é cheia de voluntarismo, uma revolução mundial permanente para acabar com a discriminação sobre os negros nos mais diversos pontos do globo, uma referência ao radicalismo do movimento que batizou o filme. Sua proposta de usar um exército moderno e armas potentes para liberar o povo negro a partir da morte dos não-negros – seria Killmonger um  herdeiro dos malês?  - é contraposta por  T’challa, que crê ser  melhor dar um passo atrás para avançar dois. É possível se infiltrar na Klan para mostrar sua estupidez a partir de dentro ou tem que se fazer a coisa certa, matar logo e resolver tudo? O tempo pode soprar a nosso favor desde que com temperança e paciência. Pantera Negra é a resposta do Spike Lee maduro ao Spike Lee juvenil. O filme com protagonismo negro do ano passado tem que aprender com a política de T’challa: pode-se correr, tropeçar e  não mais levantar  ou caminhar de forma  ziguezagueante, mas sempre adiante, para a inclusão e democracia.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: A FAVORITA

 
A FAVORITA ou “Sabe com quem está falando?
Por Pablo Spinelli”
Dedicado ao grande mestre Ilmar R. de Mattos

Durante cerca de um século, uma frase que foi criada e popularizada entre as elites do Império brasileiro no II Reinado foi muito usada, a ponto, como se percebe pelo recorte temporal, de chegar à República. Essa frase sintetizava um olhar sobre os dois partidos do Império até 1870 (depois foi fundado o Partido Republicano): o Partido Conservador e o Partido Liberal. Em cada um desses partidos havia um núcleo dirigente que mantinha a hegemonia sobre os demais membros do partido (seria bom, prezado leitor, saber que sempre houve, há e haverá disputas internas dentro de um partido político, correntes diversas que são capazes de agredir mais a si mesmas do que o adversário do outro campo, tal marca fez parte da história do PCB, do MDB, do PT, da ARENA, do PSOL e, agora, o partido da hegemonia do nosso atual governo federal, o PSL, reforça tal observação, como no caso do labirinto que os filhos fazem ao General, este à Casa Civil, esta à Câmara dos Deputados etc. etc.)
Voltemos à frase. “Não há nada mais parecido com um Saquarema (núcleo dirigente dos conservadores) do que um Luzia no poder”. Essa frase serviu para a genialidade de Oliveira Vianna afirmar nas primeiras décadas da República que os partidos eram todos iguais, tinham o mesmo plano de governo, que o partido da oposição fazia no poder a mesma política daquele que acabara de sair. Dentro dessa visão, Oliveira Vianna seduz seu leitor para a seguinte reflexão: para que partidos no Brasil se todos são iguais e não representam a sociedade? Daí, um pulo para a criação da ditadura do Estado Novo de Vargas em 1937.
Coube a Ilmar Rohloff de Mattos escrever em sua monumental obra “O Tempo Saquarema” que as coisas não eram assim, como afirma Oliveira Vianna. Além das nuances que essa frase explicita, Mattos faz uma defesa da democracia ao se defender que por mais que seja duro entender, os partidos não eram ou são iguais, podem ter polos invertidos, pontos tangenciais, mas ao se afirmar uma igualdade se defende a sua anulação.
Para que toda essa introdução? Usamos essa frase para dizer que em política é capaz de fazermos a política do “outro” sem percebermos. Não é importante saber quais são as diferenças ou semelhanças dos atores políticos, mas quem tem o controle do tempo, da direção, quem tem a hegemonia.
O filme A favorita, indicado para 10 Oscars, incluindo filme, atriz, atriz coadjuvante (no caso, duas), edição, dentre outras indicações, é uma produção que pensou em fazer uma coisa e acabou por dar como produto, outra. Esse é o nosso entendimento. Mas antes de explicar nosso argumento, creio que o espectador que vá ver ou rever a película tenha a atenção para a linguagem e o roteiro do filme. Ele é um mosaico rico da cultura inglesa tanto na literatura como no cinema. Vai do citado no filme Jonathan Swift até Monty Python, como fica claro na corrida de gansos. Há por todo o filme a influência de vários diretores e seus estilos. Salta à vista a presença de Stanley Kubrick, especialmente quando usa luzes naturais para os interiores, como Kubrick fez em Barry Lindon (1974). A presença da loira fatal é uma homenagem ao fetiche de Hitchcock em seus filmes. Ao privilegiar a perspectiva aristocrática seguiu a extraordinária adaptação que Stephen Frears fez sobre um triângulo amorosa na Corte francesa pré-revolucionária, em Ligações Perigosas (1987). A escolha pelo tom quase farsesco, picaresco dialoga com algumas comédias de Shakespeare e termina com uma cena cheia de coelhos que muito lembra a abertura e encerramento do filme Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar (1972), de Woody Allen, cujo primeiro episódio é na corte medieval inglesa. Para os amantes da literatura ou do cinema (especialmente os vinculados à “alma inglesa”) é um prato cheio.

 
Nos últimos anos, Hollywood tem dado um tom sobre políticas afirmativas. Esse tom se tornou mais retumbante após a surpreendente (para os moradores de Los Angeles, de Nova York, não para os desempregados do “cinturão do aço” ou moradores do Meio-Oeste) vitória de Trump. As cerimônias do Oscar, suas indicações, seus discursos, suas premiações são o ápice do “Sim, nós queremos”. Começou pela salutar reivindicação da presença negra nos filmes; passou pela equivalência salarial e cotas para mulheres nas produções e, diante de um muro no caminho, a celebração do México a partir dos diretores que foram premiados nos últimos 5 anos.
Assim, o filme A favorita tem uma motivação que é um desejo do corpo feminino hollywoodiano há décadas: bons personagens para mulheres. Em um filme onde os homens são acessórios, afetados, agressivos, molestadores, fracos, quase invisíveis (tal qual as camadas subalternas que fazem a roda girar) coube a um naipe invejável de atrizes fazer o navio seguir seu rumo. Olívia Colman – uma atriz de 44 anos que consegue transmitir um peso da idade maior que sua personagem exige – faz uma Rainha Anne mimada, alienada, ranzinza, autoritária e ao final, vingativa, com maestria. Uma personalidade que difere da outra rainha que interpreta, a atual Rainha Elizabeth a série The Crown. As duas oscarizadas Rachel Weisz e Emma Stone fariam o que a mediocridade da mídia diz, uma “disputa pela atenção da Rainha” que daria sentido ao título do filme.
Enquanto que Rachel Weisz usa de artefatos, porte e presença mais masculinizada em sua personagem que – em tese – seria manipuladora dos interesses da burguesia que abria espaço na Inglaterra contra a aristocracia agrária que não queria sustentar uma guerra que interessava financeiramente aos comerciantes e manufatureiros; Stone usa e abusa dos seus olhos e expressões faciais para perceber como são as regras do jogo a partir  do momento que a Fortuna (como diz Maquiavel) poderia lhe gerar uma fortuna se soubesse usar a virtú com a Rainha Anne. Eis aí um breve resumo: o mundo do interesse egoístico. A Rainha seria o canal pelo qual as aspirações da cortesã e da decadente-que-quer-voltar-à-Corte seriam cumpridos.


Diferente de Moulin Rouge (outra inspiração) onde os personagens usavam de artimanhas para o bem comum, dentre eles, o amor, as personagens de Weisz e Stone seriam aquilo que um ex-governador de nosso Estado chamou de “partido da boquinha”. Uma quer a conservação do que tem. A outra, a conquista do que poderia ter tido se não fosse pelas agruras que seu pai a envolveu. Bem, aí voltamos ao ponto inicial. O filme era para ser de um tom onde a mulher fosse o centro, as excepcionais atrizes duelam por conta do protagonismo desejado pelos movimentos feministas mundo afora. Eis o nó górdio.
Sem fazer spoiler, pois em 20 minutos o que será descrito é apresentado ao espectador, a Rainha Anne, após 17 frustrações maternais por gestações interrompidas ou com filhos que não vingaram acaba por ter como escape para suas dores emocionais e físicas o contato carnal com a cortesã de Rachel Weisz. Diante dessa descoberta, Emma Stone corre atrás dos seus interesses e disputa com valentia e amoralidade a cama da Rainha. O duelo é de alcova. O que seria um problema. A Rainha, manipulada pelos desejos carnais sobre uma guerra contra a França, acaba por se tornando exatamente aquilo que os movimentos feministas não querem: a objetificação do corpo numa completa ausência da política. Uma Rainha alienada, mimada, que cria coelhos como filhos ou que se permite ao masoquismo permite a leitura de que a falta do papel de ser mãe cria neuroses, paranoias e obsessões, como se afirmava nos séculos XIX e XX. Os humores da monarca dependem da forma introdutória que as duas personagens usam para criar a felicidade. Não há aqui espaço para um terceiro vértice nesse triângulo (como é explícito no título).
Em um filme que se permitiu uma leitura pop e contemporânea sobre um passado (como fez Moulin Rouge) é algo deveras conservador pensar como Highlander: só pode haver uma, o que soa esquisito para um filme de pegada antenada com seu tempo. Sua mensagem está a léguas de distância de um Bertolucci e Ettore Scola. E o mais curioso: ao se propor que a Rainha é uma alucinada como a eternizada por Lewis Carrol em Alice no país das maravilhas, acaba por reforçar na última cena do filme o poder real, a soberania majestática que coloca de forma uma súdita de joelhos de forma vil uma súdita num famoso sabe com quem está falando? (em pleno terreno anglo-saxão!!! Roberto DaMatta deve ficar horrorizado com isso).  Um filme que desabonaria a monarquia mostra ao final quem tem o cetro nas mãos. Um filme que propôs o protagonismo feminino acabou por repetir clichês machistas sobre a mulher. Um filme que quis ser Luzia e acabou por ser Saquarema.