sábado, 16 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: PANTERA NEGRA

 Cena do Filme Pantera Negra
PANTERA NEGRA: BLACK IS BEAUTIFUL
Por Pablo Spinelli
Dedicado à memória dos jovens do time rubro-negro carioca
A cultura pop tem canais de reflexão sobre a conjuntura política com muita maestria e sensibilidade, independente da formação ideológica. Um exemplo que vem desde os anos 1960 são os filmes da franquia 007. Outro são os quadrinhos ou em forma cult, graphic novels do mundo da Marvel, algo que está presente nas mais de duas dezenas de produções que começou com Blade e está no apoteótico Thanos, o simbolismo metafórico do desemprego estrutural vigente no mundo onde a robotização num estalar de dedos cria desempregados  e subempregados (há alguns que falam que  é uma alusão aos escritos de Malthus). A Marvel é uma editora de Centro político com viés mais Democrata de um Clinton que um Republicano de Trump; aliás, por sua vez, mais Clinton que Obama; mais George W. Bush do que Trump.
A primeira história do Homem de Ferro se passa no Vietnã. As atrocidades com Tony Stark são feitas por vermelhos, como está escrito na história original. Hulk vem do medo da guerra nuclear e das consequências nucleares de Hiroshima. Homem-Aranha foi a forma pela qual a editora viu a possibilidade de ter o retorno dos jovens aos seus gibis. Já foi questão da UERJ a relação entre os X-Men e os movimentos contra as leis segregacionistas contra os negros. Professor Xavier como Luther King e Magneto como Malcolm X (de onde saiu o “X”). O movimento negro conseguiu um personagem urbano cuja pele era o seu poder, Luke Cage. Assim foi com o leitor católico com o personagem mais barroco dos quadrinhos, Demolidor (cuja adaptação na NETFLIX é a melhor adaptação de todo o universo Marvel, em especial a última temporada). O mundo esotérico entrou em moda? Os costumes foram abalados pelos ácidos lisérgicos dos anos 1960? Aparece o Dr. Estranho. Os filmes do lendário Bruce Lee fazem bilheterias enormes? Cria-se Punho de Ferro. O mercado editorial precisa da Europa para o consumo? Thor, Colossus,  Gambit, Capitão Britânia, dentre outros, cumprem bem esse papel.
 
 Martin Luther King JR e Malcom X
 
Nos mesmos anos 1960 temos um processo intenso e nada fácil de descolonização na África. A “missão civilizadora” de Tintin mostra para que veio. Imerso em guerras civis, o continente tem países novos que precisam criar uma identidade nacional, uma autoestima que tem que ser valorizada. A ideia de valorização da negritude se espalha pela América de norte a sul por conta da infeliz presença da escravidão de origem negra para esse lado do Atlântico. Nos EUA, no início dos anos 1970, após o desaparecimento violento do Dr. King e de Malcolm X surge o grupo Pantera Negra, cujas virtudes – valorização da cultura negra; teias de  solidariedade; politização das  camadas periféricas estadunidenses; uso da lei que permite o porte de arma para todos os cidadãos para intimidarem as batidas de policiais brancos aos negros que por medo, surpresa ou violenta emoção, geralmente terminava em autos de resistência -  acabaram por se perder por perda de líderes que foram substituídos por oportunistas; radicalismo; uso da  luta armada; corrupção. A Marvel, aproveitando a conjuntura e seu tino comercial incansável, acabou por criar um herói que tinha tudo para dar certo: um negro africano. Mas o etnocentrismo não permite grandes arroubos, seria um negro africano com o nome de um movimento dos EUA: Pantera Negra.
O filme Pantera Negra, candidato ao Oscar, é o filme que reúne diversos motivos para estar ali. Foi bem de bilheteria, vai trazer a juventude para a cerimônia, tem um elenco praticamente negro, um bom roteiro (que faz muita falta a todos os Vingadores) e, o essencial: é bom.
O filme usa o visual com muita proximidade ao original. O vilão branco é de origem da África do Sul do apartheid. O filme tem uma toada shakespereana muito interessante ao abordar vingança, traição, disputa por um trono. A dignidade do filme ao tirar do olhar do senso comum que a África é apenas a savana com o leão comendo a zebra ou crianças famélicas com mães desnutridas já vale a sua indicação. Por motivos de direitos autorais já resolvidos, posto que a Disney comprou tudo que tem direito, o vibranium nada mais é que o adamantium de Wolverine e do escudo do Capitão América.  Para ter garras precisa da África do Pantera.
Para as aulas de história há traços importantes que podem ajudar os alunos a compreenderem o valor da oralidade no mundo africano; que diferente do mundo europeu, sentar no trono não é vinculado à hereditariedade, mas é um espaço público e democrático aberto a disputas, sem privilégios. O filme mostra que não existe a África, mas Áfricas, sendo que uma etnia não quis se submeter aos felinos negros. O valor da ancestralidade; o papel dos griôs – o sempre competente Forrest Whitaker que já foi O último rei da Escócia. Para completar, Pantera Negra precisa de cérebros e destreza física de mulheres, seja a irmã adolescente, seja o grupo de guerreiras que o acompanha.


O enredo nos coloca em duas situações muito importantes para os dias atuais. O Brasil, no atual governo, adota uma política externa que contraria a sua tradição desde Rio Branco, passando pela presença em duas guerras mundiais contra governos autocráticos, participou de forma decisiva para a criação do Estado de Israel e Jerusalém como cidade internacional, contraria a política externa dos generais-presidentes na ditadura, posto que Geisel foi o primeiro governante a intensificar  as relações com o continente africano e prontamente reconheceu os governos liderados pela esquerda em Angola  e Moçambique, isso para não citar o Mercosul que foi erigido por Sarney e a abertura radical à globalização de Collor onde o Brasil sediou uma conferência internacional visando a conservação do meio-ambiente (ECO 92). A bandeira do antiglobalismo (sabe-se lá o que é isso em um país derivado de uma Expansão Marítimo-Comercial) defendida pelo chefe do Itamaraty é algo similar aos dilemas de T’challa. Abrir ou não abrir Wakanda para o mundo? Refugiar-se numa zona de conforto que é disfarçada pelo pastoreio e simplicidade ou permitir que sua tecnologia tenha como alvo o bem comum global? Como é estar na África sem ver os mais diversos problemas que rodeiam o continente, como o uso de crianças em exércitos e tráfico humano – como o filme apresenta em seu início – e ficar indiferente? A decisão de T’challa e o discurso final na ONU valem todo o filme. Uma demonstração que se pode falar pouco em uma conferência internacional, mas falar propositivamente, de forma democrática e inclusiva, sem abrir mão de suas tradições.
Além disso, há uma mensagem para a esquerda, negra ou não. A personagem de Killmonger, por conta de um trauma, acaba por servir aos EUA para ter uma expertise que objetiva a conquista do trono manchado de sangue. Sua política é cheia de voluntarismo, uma revolução mundial permanente para acabar com a discriminação sobre os negros nos mais diversos pontos do globo, uma referência ao radicalismo do movimento que batizou o filme. Sua proposta de usar um exército moderno e armas potentes para liberar o povo negro a partir da morte dos não-negros – seria Killmonger um  herdeiro dos malês?  - é contraposta por  T’challa, que crê ser  melhor dar um passo atrás para avançar dois. É possível se infiltrar na Klan para mostrar sua estupidez a partir de dentro ou tem que se fazer a coisa certa, matar logo e resolver tudo? O tempo pode soprar a nosso favor desde que com temperança e paciência. Pantera Negra é a resposta do Spike Lee maduro ao Spike Lee juvenil. O filme com protagonismo negro do ano passado tem que aprender com a política de T’challa: pode-se correr, tropeçar e  não mais levantar  ou caminhar de forma  ziguezagueante, mas sempre adiante, para a inclusão e democracia.

2 comentários:

Leonardo Gomes disse...

Mais uma vez tem-se aqui uma crítima envolvente e históricista. Que fala de filmes e produz não só uma aula de história e filmografia como que de quebra produz uma reflexão útil aos nossos dias. Parabéns!

Unknown disse...

Registre-se a capacidade de fazer associações, muito proveitosas (registre-se), por parte do autor. Diria Walter Benjamin, um grande pensador judeu alemão, que a tarefa do crítico é dar acabamento à obra de arte. Lendo essa resenha, vi muitos Black Panters e também a cenografia brasileira, onde as bananeiras, goiabeitas e laranjais rendem frutos da intolerância e a matança de grupos sociais minorizados. Parabéns!