quarta-feira, 9 de outubro de 2019

COLUNA DO PABLO: Sobre o filme Coringa

 
O Homem Irracional em Coringa: para ler Keynes nos dias atuais

Dedico ao meu pai e ao NEAG
O colaborador desse blog que assina esse texto vez por outra tem insistido na necessidade de relembrar e discutir sob a luz da atualidade filmes que hoje são considerados clássicos modernos, especialmente os dos anos 1970 e 1980. A motivação vem de um livro escrito por um dos melhores autores do século passado, chamado “Por que ler os clássicos?”; de Ítalo Calvino. Aqui vamos reforçar; porque assistir a clássicos? A resposta é clichê. Porque eles sempre têm algo a nos dizer.
Na resenha anterior falamos de Taxi Driver, dirigido por Martin Scorsese. Foi abordada também a singularidade de parcerias entre diretores e atores – que também incluem fotógrafos, figurinistas e músicos (procure na internet quantos filmes de Steven Spielberg o compositor John Williams foi o responsável pela trilha). O objetivo era escrever depois sobre um filme dos anos 1970 com um ator que foi um dos ícones dessa década, Al Pacino, chamado “Um dia de cão”. O filme fala sobre um assalto de uma dupla de ladrões medíocres que acaba supervalorizado pela mídia e os marginais acabam sendo a voz de uma sociedade americana cheia de problemas pós-trauma do Vietnã. Ainda falaríamos que esse filme é uma vanguarda para as questões de gênero, pois o motivo do assalto era para o custeio de uma operação de mudança de sexo do amante do personagem vivido por Pacino. Como sabido, um filme que a esquerda dita moderna esqueceu, mas o seriado “Mindhunter” que está na Netflix, não. Basta ver o primeiro capítulo. Em dias que a morte de um sequestrador tem a presença “imediática” de um governador em plena ponte Presidente Costa e Silva, o filme mostra seu vigor.
A proposta dessas resenhas é principalmente falar com o público jovem, seja sob qual ideologia que diz professar ou defender. Caso seja de esquerda, esses filmes americanos dos anos 1970 e 1980 têm muito a nos dizer sobre o processo de americanismo que vigora no mundo; além de temas de gênero; do esfacelamento do Estado pela lógica privatista; os abusos de imprensa e magistrados; os personagem à margem da sociedade. Caso seja de matriz conservadora; pode-se ver o esfacelamento da família; os questionamentos éticos e morais de uma época e, o caso seja fã das falas e analogias de Olavo de Carvalho; contrarie o elitista filósofo da Escola de Frankfurt (Carvalho deu um tempo para Gramsci respirar), Theodor Adorno, que segundo Olavo foi parceiro dos Beatles, e caia de cabeça na indústria de comunicação de massa. Caso você não se identifique com nada, continue a ler essa resenha, pois o personagem principal diz que é igual a você: não tem nada a ver com a política.
 


Coringa é o filme do ano. Em uma hora de projeção você se pergunta como que o diretor da trilogia “Se beber, não case” conseguiu fazer esse filme. Greve (real) de lixeiros; ratazanas gigantes (analogia a políticos e empresários); abandono de pessoas portadoras de problemas mentais e de idosos; subemprego; violência urbana; humilhação de pessoas comuns em programas de televisão; dependência de remédios antidepressivos; violência policial; exploração da pornografia no cinema (basta ver os letreiros); uso indiscriminado do porte e uso de armas; o politicamente incorreto (representado na gigantesca figura do anão; o único a ter empatia com o personagem principal); um milionário que quer entrar na política franzindo os olhos e ridicularizando quem pensa diferente dele chamando a todos de palhaços; movimentos de ocupação contra o sistema sem política ou programa;  a comoção com a morte de três homens de bem que assediavam uma mulher e espancavam um homem supostamente indefeso. Esse caleidoscópio está aos nossos olhos. Mas o filme se supera.

A cena que Arthur Fleck é avisado que houve cortes orçamentários e que o serviço de assistência social que recebe será extinto é a lembrança que a virada dos anos 1970 para 1980 marcou a onda neoliberal com o governo Ronald Reagan. A pergunta que ele faz e não tem resposta é a de qualquer cidadão do Brasil ao saber de contingenciamentos para poder pagar juros da dívida pública: “Mas como vou conseguir os meus remédios?”. Seria o “Eu, Daniel Blake” americano. Sem poder ter acesso aos medicamentos, os abandona por ter sido abandonado. Antes que um adepto da religião do século XXI, a meritocracia, diga que ele poderia trabalhar, basta ver que ele tentou. Fleck estava entre as crianças com câncer no melhor estilo “Patch Adams”, um público que ria sem julgar. Mas a sua inabilidade para portar uma arma o deixa desempregado.

Quentin Tarantino fez um filme para si, algo que Fellini fizera em “Amarcord” e, recentemente, Cuarón, em “Roma”. Um filme marcado de memórias, difícil para os jovens que esperavam um ritmo como o de Kill Bill ou Bastardos Inglórios (o que não é verdadeiro, pois há nesses filmes vários momentos longos e lentos; muitos diálogos) e viram uma nostalgia aos filmes e seriados de televisão dos anos 1950 e 1960. Coringa seria de forma mais implícita uma elegia, um hino de amor aos filmes que Hollywood fazia antes de Velozes e Furiosos e Transformers. A escolha pela logomarca da Warner de “Laranja Mecânica”; “Todos os homens do presidente” e o já citado “Um dia de cão”, mostra isso. O filme de 2019 é um filme pela fotografia, figurino, maturidade, atuação, roteiro, um belo filme dos anos 1970.

A New York de “Coringa” é suja e cinzenta como a de “Um dia de cão”. A ideia de um suicídio ao vivo na televisão é de “Rede de Intrigas”. A relação entre mãe e filho insanos nos remete ao filme clássico de 1960, “Psicose”; os corredores claustrofóbicos do prédio em ruínas nos transporta pelo posicionamento da câmera a “O Iluminado”. O espancamento na ruas é o mesmo que Alex passa após seu tratamento em “Laranja Mecânica”. Arthur Fleck  e a sua vizinha/musa fazem um gesto com os dedos na cabeça numa homenagem ao mesmo gesto feito por Travis Bickle em “Taxi Driver” , pois como o enredo de “Coringa” se passa em 1981, o Fleck viu o filme. Aliás, como sabemos que se passa em 1981? Pelo letreiro do cinema aonde dois filmes que foram lançados nesse ano estão expostos: “Blow out” e “As duas faces de Zorro”. O primeiro filme no Brasil teve o bom título “Um tiro na noite”, com John Travolta. Tudo relacionado com a trajetória da família Wayne. Já “As duas faces de Zorro” é a alusão a um herói mascarado mais antigo que será revivido pelo homem-morcego que nascerá à fórceps nesse ano, segundo o filme em uma cena que homenageia o primeiro Batman de Tim Burton.




A relação entre Arthur – que não é um milionário, mais uma referência a um clássico da comédia romântica dos anos 1980 – e o apresentador de televisão vivido por Robert DeNiro (sim, o Travis Bickle de “Taxi Driver”) é uma simpática e mais macabra alusão ao enredo de um dos filmes mais subestimados de Martin Scorsese, “O Rei da Comédia”. Nele, um homem que quer fazer stand up (novamente DeNiro!) não consegue o apoio de um comediante veterano e apresentador de talk-show vivido pelo eterno Jerry Lewis. Aqui, em “Coringa”, estamos com  programas televisivos que esculhambam o homem comum em nome do riso fácil e da audiência, algo que os mais velhos no Brasil já viram em “O povo na TV”; “Aqui e Agora” e temos hoje um mercado amplo de Ratinhos e Datenas; passando pelo ET de Gugu; o sushi erótico de Faustão e a misoginia de “Pânico”. Diante desses usos e abusos, parafraseando um personagem ícone do cinema brasileiro, diante das câmeras, Arthur Fleck é o c****, meu nome é o Coringa!

Jovem, não busque fazer comparações entre o Coringa de Heath Ledger e o de Joaquin Phoenix. Eles não são opostos, se complementam. São contextos diversos. Ledger surge do nada para o caos e fazer o Batman ser aquilo que seus autores queriam nos anos 1930: um ícone fascista para os EUA; o homem providencial. O carinho a Ledger é tamanho que a cena de Phoenix na janela do carro policial é uma lembrança daquele respirando ar puro. Ambos mostram o quanto foi equivocada a interpretação de Jared Leto.

Phoenix mostra que a desesperança; a falta de cooperação; de empatia (o anão agradece) e o declínio do homem público, da ágora moderna, pode levar à perda da política, da sanidade individual e social. Um Coringa que em meio a uma multidão em uma anomalia selvagem que aceita qualquer liderança, faz de um louco o seu poder constituinte para que a tire do estado das coisas que está, que dança tal qual um Mick Jagger sobre um carro da polícia; onde a simpatia pelo diabo que surge quando as instituições falham é fatal para uma juventude órfã; a sociedade desce escada abaixo para os círculos do inferno de Dante como Arthur desce os degraus e surge o Coringa. Phoenix vira uma Fênix. E das negras.

Quando se celebra os 80 anos de Batman com o Coringa – muito superior a qualquer filme da Marvel que gradativamente infantilizou seu público- percebemos como as coisas estão trocadas e diversas aqui e alhures. Há esperança? Há. Temos Chaplin. Smile.