domingo, 25 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

Eric Hobsbawm: uma vida pela Frente Democrática no Rio

Por Vagner Gomes de Souza

Em memória do professor e amigo Ricardo Oliveira que me chamava carinhosamente de "Hobsbawm do Jeannette".

Um historiador que foi sucesso de vendas de livros no Brasil, mas provavelmente o grande público o conhece por “terceiras” leituras e interpretações. A tradutibilidade de Eric Hobsbawm do mundo acadêmico para o leitor médio brasileiro o “enquadrou” sob as lentes de um marxismo reducionista próximo ao perfil nacional-popular. Portanto, ainda temos um Hobsbawm desconhecido e que incomoda uma “esquerda acadêmica”. Mencionam leituras de Pierre Bourdieu, Michel Foucault e criam um imaginário E. P. Thompson para “devorar” a Grande Política nesse grande pensador inglês. Na sequência, o autor de Ecos da Marselhesa não encontra eco na prática da política diante de teias de debates inorgânicos.

Sua profissão de fé pela Frente Única contra o fascismo e todas as mazelas do mundo pós-moderno que emergiu após a “Era dos Extremos”. De herdeiro da cultura política do “antifascismo”, se transformou num pensador de movimentos sociais. Menos República e Democracia e muito mais a análise do banditismo social. O público brasileiro provavelmente se encanta com a erudição do autor inglês, mas reage a sua política denunciadora dos erros sectários nas posturas de uma Esquerda incomodada com os atributos populares. As “luzes” só partem da Zona Sul carioca diante das “trevas” desconhecidas numa “Baixada Fluminense”. Assim, não se aplica as consequências políticas de seus estudos da questão que aproxima os bandidos do poder.

Os juízos da política no “tribunal da História”, que Marc Bloch muito bem condenou, faz um “curto circuito” na formação de dirigentes da política. Por exemplo,  na contracapa do livro de Era dos Extremos (1995) temos os breves comentários de William Waack, Perry Anderson e Elio Gaspari. Essa tríade poderia ser muito improvável para aqueles que não entendem a postura da política “frentista” nos dias atuais. Todavia, o ser político de uma obra transcende as gerações e as linhas da reflexão política. Imaginemos que há os desavisados que “cancelariam” um comunista inglês pela sua proximidade com o atual jornalista da CNN. Por outro lado, em sua melhor biografia, lançada e também não lida no Brasil, Eric Hobsbawm: Uma vida na história, Richard J. Evans comenta sobre o encontro Hobsbawm e Boris John Johnson que fez questão de lhe demonstrar ser um leitor devorador de seus livros (outra possível explicação para suas atitudes sobre a Pandemia da COVID 19 após sua internação).


Na biografia citada acima, há um reencontro entre dois ex-presidentes do Brasil. Fernando Henrique Cardoso atribui a Hobsbawm a característica de ser uma pessoa simples e encantadora. “Era um erudito que dava relevo ao essencial e sabia escrever.” Enquanto, o ex-Presidente Lula escreveu uma breve apresentação que anteciparia um convite para um certo Geraldo. Algo semelhante observamos nas linhas da manifestação pública de FHC sobre as eleições de 2 de outubro. Temos condições em reverenciar nas urnas os ensinamentos do autor de Rebeldes Primitivos.

Entretanto, não se ler Hobsbawm com um apuro na política de Frente é o que entrava até alguns historiadores no mundo da política no Estado do Rio de Janeiro numa sinuca diante da inversão dos “rebeldes primitivos”. Se transformaram em “primitivos rebeldes” ao reagirem a ampliação do diálogo frentista com as forças do atraso. O historiador inglês muito bem soube lidar com os ensinamentos do O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, as máscaras que encobrem os personagens numa conjuntura e suas devidas consequências. Assim, alimenta um “lavajatismo” da esquerda muito presente no Rio de Janeiro com base numa região política que sempre votou na UDN até o golpe de 1964.


Assim, o Rio de Janeiro necessita muito de um encontro para pensar e refletir sobre as ideias de Eric Hobsbawm, pois nosso pensamento ilustrado francês althuseriano na esquerda carioca se fragmentou numa diversidade de ideias fora do lugar em derivas de muitas ideologias soberanas e/ou soberbas do eu. Seria necessário um reencontro com a Grande Política que elegeu Negrão de Lima ou que fez nascer a Frente Ampla (Jango, JK, Lacerda), levou o “Amaralismo” a se abrigar no MDB e colocou numa mesma mesa dois adversários de Segundo Turno das eleições de 1992 (César Maia e Benedita da Silva). Ainda há tempo para que o ensinamento do historiador inglês se faça na história fluminense mesmo que não seja na “pureza” que muitos julgam defender.


domingo, 18 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

Hobsbawm, História & O Poderoso Chefão

Por Pablo Spinelli

À memória de Jabor, de Milton Gonçalves e aos 30 anos do Impeachment de Collor

 

O historiador Eric Hobsbawm foi um fenômeno na venda de livros para um público leitor leigo – especialmente a partir dos anos 1990 com o bem-sucedido “A Era dos Extremos – o breve século XX: 1914-1991”[1] – o que não significa que tenha sido realmente lido e analisado, e mesmo hoje, ao se analisar a bibliografia nas disciplinas de cursos de ensino superior no país é perceptível seu lento desaparecimento quando comparado há duas décadas.

Por mais que sua identificação com o marxismo – foi membro do Partido Comunista britânico, um partido muito discreto dentro no contexto dos partidos comunistas europeus, mas que muito contribuiu para a resistência ao fascismo e na socialização de acadêmicos com o movimento operário inglês.[2] Sua enorme erudição enciclopédica e sua formação política fez estudar movimentos camponeses rurais das Américas – o termo cunhado por ele de “banditismo social” para o fenômeno, dentre outros, do cangaço brasileiro é encontrado em qualquer livro didático de História no país -; com estudos no desenvolvimento da Revolução Industrial inglesa ao jazz, Hobsbawm entrou para a historiografia e no mundo leigo pela tetralogia das “Eras” para explicar a formação; consolidação; expansão; crise e reconfiguração do mundo burguês. [3]

Atualmente, há no meio acadêmico novos olhares da historiografia como “história global” e “história pública” e pelos motivos expostos acima, nos surpreende a raridade ou o sumiço do historiador inglês na bibliografia estudada nesses cursos, pois o historiador teve papel de destaque em ambos os temas. É possível que seja reflexo da persistência do pós-modernismo ao ver a sua obra como uma “grande narrativa” (mesmo que tenha escrito um livro falando das fraturas nos tempos modernos) ou por ser um homem branco europeu (nascido no Cairo e de origem judaica) heteronormativo. Cumpre destacar uma faceta desse historiador que não ganha tanto relevo em suas obras e que nos permite estudos instigantes sobre esse objeto espalhado em várias obras do autor: o cinema.

Eric Hobsbawm recebendo condecoração da Rainha da Inglaterra, em 1998 I (Reprodução: Financial Times)

Hobsbawm, um crítico irônico dos movimentos e manifestos vanguardistas – que muito nos lembram da abordagem do nosso poeta Ferreira Gullar – identificou somente duas manifestações vanguardistas que vieram da América e prosperaram: o jazz e o cinema (criado na Europa e metamorfoseado em produto de massa nos EUA). Foi e é o cinema uma ponte ininterrupta entre os artistas europeus e a indústria americana. O mais popular e genial personagem do cinema foi o inglês Charles Chaplin, assim como o estúdio Universal (de um alemão) bebeu na fonte da literatura do final do XIX para consolidar seu perfil em filmes de terror como Drácula; Lobisomen e Frankestein. O historiador destacava a importância do cinema soviético menos pelo perfil propagandístico e mais pela revolução em sua técnica, como o feito pelo icônico Sergei Einsenstein de “Outubro” (1927) e “Encouraçado Potemkin” (1925) – cuja montagem serviu de base para a revolução no cinema feita pelo recém-falecido Jean Luc-Goddard nos anos 1960.

O cinema, para ele, além do fascínio da imagem em ação tinha um papel democrático porque incorporava uma massa de iletrados ao lazer e que alcançou uma escala internacional. No mundo ocidental a produção de Hollywood era industrial – uma fonte importante para geração de empregos como na Grande Depressão de 1929 – e incorporava de artistas a técnicos europeus que migraram no período entreguerras e, em especial, na ascensão dos fascismos na Europa. De Greta Garbo a Otto Preminger; de Fritz Lang a Marlene Dietrich; de Billy Wilder a Alfred Hitchcock, o cinema americano era inclusivo, sem muros e, com exceção de negros, latinos e asiáticos (cujo cinema japonês era igual ao americano quanto à produção), permitia o esplendor da tela (muitos dos grupos excluídos das telas eram incorporados nos bastidores e com presença expressiva em sindicatos) em milhares de cinema mundo a fora.

Por outro lado, o autor, contemporâneo do fascismo, nazismo e stalinismo, fez eco aqueles que viram no cinema uma máquina poderosa de propaganda de regimes políticos. O “American way of life” vendido nas telas (uso de cigarros e automóveis, por exemplo) foi uma ferramenta poderosa nas mãos de tiranos. Porém, diferente de analistas pessimistas como Adorno, Eric Hobsbawm via no cinema uma perspectiva poderosa de influir na denúncia, na crítica social, no retrato de um tempo, na adaptação literária que permitiria a popularização de autores como John Steinbeck (As vinhas da ira) e o desconhecido B. Traven (O Tesouro de Sierra Madre).

Por fim, Hobsbawm em um artigo sobre os usos e abusos da memória sobre um bandido siciliano que gerou livros e adaptações cinematográficas, nos deixou um legado valioso enquanto crítico de cinema e historiador, trajetórias sincrônicas na análise de uma obra. No artigo intitulado “Bandido Giuliano[4], o autor, que estudou “rebeldes primitivos”, começa a falar do fenômeno popular que foi e é o filme O Poderoso Chefão, que nesse ano completa meio século. Sua enorme perenidade no imaginário coletivo, a presença na cultura pop nas mais diversas faixas etárias deve-se, segundo Hobsbawm, à perspectiva de organização, planejamento, valores familiares que se incorporam a um estilo empresarial na cadeia de comando (o filme foi lançado em plena Guerra do Vietnã).

A máfia não era a de Bonnie, Clyde, Dillinger, mas a de Vito Corleone e uma hierarquia definida. A família não era diversa da gestão de empresas que passam por gerações – em uma época que não se mascarava a sucessão com termos como meritocracia - e nem era refratária ao Estado, ao contrário, bancava candidaturas de senadores e deputados; subornava juízes e delegados. Por sua vez, o historiador-crítico percebe que a aura dos Corleone é fruto da utopia romântica de um passado no qual as autoridades eram respeitadas; os chefes eram pais substitutos de imigrantes pobres como os italianos do Sul italiano que “iam fazer a América”. Em uma frase que pode gerar o “cancelamento” de Hobsbawm e do filme de Coppola, “os homens eram homens, e as mulheres eram felizes com isso”[5]. Hobsbawm, de forma perspicaz fez um paralelo da vitória de uma família que migrou de uma ilha na Europa nos EUA com a trajetória da mais superestimada e pop família americana, os irlandeses Kennedy; daí seu sucesso no inconsciente coletivo americano além dos valores destacados acima. Ainda nesse artigo, há uma excelente análise comparativa sobre o enfoque dado pelo escritor Mario Puzo (de O Poderoso Chefão) e do filme Francesco Rosi à trajetória conturbada do bandido Salvatore Giuliano – um miliciano que servia aos interesses dos potentados locais da Sicília que depois foi traído nesse e um “Robin Hood” belo, varão e defensor da comunidade aldeã para aquele.

Por fim, Eric Hobsbawm nos deixa um legado nesses tempos fraturados. Ele foi um intelectual no espaço público, sabia escrever para o público leigo, lido por pessoas de ideologia diversa da dele, mas que sabia escrever como se dialogasse com o leitor sentado em um sofá. Seu espírito renascentista – fruto de sua formação política -  lhe deu um inigualável posto no terreno da História, algo esmagado pelos particularismos e sectarismos seja da política ou d academia ou de ambos. A tarefa que se impõe é tirar os livros desse autor da estante e começar a realmente lê-lo.


[1] A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[2] Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Especialmente os capítulos “Contra o fascismo” e “Ser comunista”

[3] Estamos nos referindo aos livros Era das Revoluções : 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009; Era do Capital: 1848-1875, 1996. São Paulo: Paz e Terra; Era dos Impérios: 1875-191, São Paulo: Paz e Terra, 1988 e o já citado Era dos Extremos. 

[4] In. HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

[5] Idem. p.278.

 

 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

RIO DE JANEIRO - ELEIÇÕES PARA O SENADO/2022


 Professor Luiz Eduardo Soares abraça o Deputado Estadual André Ceciliano

O que eu sei sobre André Ceciliano

 

Luiz Eduardo Soares

 

Nós vivemos sob o signo da guerra. Não por acaso, o poder é patriarcal. A violência é masculina. Mais de 90% dos assassinatos no mundo são cometidos por homens. Eles, nós, somos educados para terceirizar para o falo nosso valor. Por isso, ficamos, literalmente, pendurados na brocha. Inseguros, somos muito perigosos. Não é coincidência que os fascistas se oponham tão ferozmente ao que denominam “ideologia de gênero”.

Eles não odeiam as mulheres, individualmente, mas o feminino como signo de um mundo que ignoram e temem, um mundo que poderia vir a ser hostil ao autoritarismo falocêntrico e à exploração mercantil. Eles odeiam o potencial de construção política do feminino. Eles odeiam a população LGBTQIA+ porque temem a subversão dos papéis tradicionais, promovida por quem ousa privilegiar a liberdade fluente do próprio desejo e experimentar a indisciplina no jogo das identidades. Às vezes, na esquerda, nós escorregamos, seja por negligenciar como “identitárias” as lutas que não compreendemos, seja por compartilhar preconceitos machistas (os quais não fazem a cabeça apenas dos homens).

 Não raro, cobramos postura esteticamente combativa de nossos representantes, exigimos que nossos candidatos ajam como guerreiros, gritem, hostilizem adversários, adotem a linguagem verbal e corporal do embate. O homem de esquerda se estiver na vida política, deve exibir disposição para o confronto. Com frequência, entre nós, há um veto estético a quem não se encaixa no modelo de inspiração militar. Um veto à fala mansa, ao estilo amável, ao articulador arguto que alcança finalidades estratégicas por meio da negociação, sem ardis e bravatas. Negociar não significa ceder, transigir, trair princípios e renunciar a compromissos, mas reconhecer com realismo qual a correlação de forças em cada caso e avançar, passo a passo, sem necessariamente cantar vitória. Foi assim que André Ceciliano, como presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio, conquistou a vitória extraordinária que poucos estão vendo. Sem alarde, sem autopromoção, pé ante pé, sem dós de peito retóricos, sem brados doutrinários, com candura e respeito, fazendo valer a palavra empenhada. Foi assim, com essa incrível coragem de ser simples e gentil, que André impediu que a esmagadora maioria bolsonarista na ALERJ fizesse avançar suas pautas conservadoras. O triunfo foi resistir em tempos tão sombrios e, em meio à tempestade fascistóide, promover avanços progressistas e democráticos. Os exemplos são inúmeros. Não se enganem com o jeito modesto do André: o Rio de Janeiro pode dar ao Senado um dos mais competentes, sensíveis e leais políticos brasileiros. A luta também se faz com a palavra serena e afetuosa, com o sorriso doce e a empatia. Nem sempre a força e a firmeza estão onde parecem estar. A luta política muitas vezes pode ser vencida sem armas e gritos de guerra. O Rio está farto de sangue, fome e iniquidades. Chegou a hora da virada com Lula, Freixo e André Ceciliano.

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 32 - UM BALANÇO SOBRE A LEI DE RESERVA DE VAGAS


 Sobre a importância da reserva de vagas na educação no bicentenário brasileiro


                                                                                   Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Tudo começou em fevereiro de 1999. A deputada Nice Lobão, recém-eleita e empossada em primeiro mandato pelo Partido da Frente Liberal (PFL) pelo Estado do Maranhão, tornou-se conhecida por ser autora do Projeto de Lei (PL) N° 73, de 1999, que propôs a reserva de 50% das vagas em universidade públicas para estudantes oriundos de escolas públicas. O projeto de lei tramitou por 13 anos até chegar à sanção com vetos em 2012.

Hoje, preocupados com os desafios de nosso tempo pandêmico, os brasileiros provavelmente ainda dedicam pouca atenção a década da Lei Nº 12.711 de 29 de agosto de 2012, a era turbulenta que se seguiu. Isso é lamentável, pois esse período histórico merece nossa observação ardente.

Questões que agitam a política brasileira hoje – acesso aos serviços cidadãos e direitos, os poderes relativos aos governos nacional, estadual e municipal, a relação entre democracia política e a economia, a resposta adequada a pandemia – todas essas são questões que impactaram a década dessa lei. Mas essa época tem sido mal compreendida.

A década da reserva de vagas refere-se ao período, datado de 2012 a 2022 (ano do nosso bicentenário), durante o qual a lei e a Constituição da nação foram reescritas com o propósito de garantir os direitos básicos da educação a um conjunto enorme de jovens, que permitisse um tratamento equânime para a chegada da juventude em todo o sistema educacional do nível médio ao superior. Durante essa década, esses anos ainda não foram amplamente vistos e entendidos como um ponto importantíssimo da saga do avanço da democracia brasileira. De acordo com essa visão, o papel de justiça reparadora que nos empenhamos, estabeleceu um novo regime educacional, promovendo o gradativo processo de percepção e entendimento no exercer direitos democráticos e republicanos. Os heróis dessa história somos todas e todos que restauraram o amplo acesso à educação do Grande Número.

Este retrato, ainda não recebeu expressão acadêmica nas obras do início do século XXI. Ele fornece uma base intelectual para a abertura do sistema educacional contra qualquer segregação e privação de direitos. Daí que todo o esforço para restauração de direitos, implica numa reconstrução e afastamento de horrores que poluem a nossa história.

Os historiadores não rejeitaram essa percepção lúgubre, embora ela seja disputada na imaginação popular. Mas para quem acompanhou a década em tela, sabemos que muito se avançou por conta dessa tentativa reparadora.

A reserva de vagas realmente começou após 11 de outubro de 2012, quando se editou o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. O Decreto institui o Comitê de Acompanhamento e Avaliação das Reservas de Vagas nas Instituições Federais de Educação Superior e de Ensino Técnico de Nível Médio, para acompanhar e avaliar o seu cumprimento. Importa reter que a reserva de vagas concede uma oportunidade educacional à maioria da população, desde que se encontrem dentro dos critérios estipulados para as vagas, mas nada disse sobre os direitos que essas vagas comportam além da admissão. Em vez de um projeto integral para as vagas, esta foi uma medida parcial de direito à educação no sentido tão só de acessibilidade. Claro que ao longo dessa década da reserva de vagas, como em outras questões, as ideias entorno da sua operacionalidade se desenvolveram.

Quem sancionou a lei com veto (um outro capítulo dessa história que é a Mensagem Nº 385, de 29 de agosto de 2012) não acompanhou sua operacionalização até o final do mandato. Sobre o veto parcial, o Congresso não o derrubou, mas ainda assim se promulgou uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei de Reserva de Vagas, já alterada e ainda em vigor hoje. Ela afirmou que a cidadania educacional era para todos os nascidos no Brasil, independentemente da raça (inclusive dos povos originários).

A lei passou a exigir que todos os cidadãos usufruíssem dos direitos educacionais básicos da melhor maneira. A mensagem de veto dizia veladamente que poderia se incorrer numa discriminação reversa, ao se usar o Coeficiente de Rendimento (CR) como critério adequado para a reserva de vagas, uma vez que “não se baseia em exame padronizado comum a todos os candidatos e não segue parâmetros uniformes para a atribuição de nota.” De fato, na ideia de que expandir os direitos educacionais de alguma forma, não deveria se valer de mecanismos que pudessem vir a vedar inadvertidamente o Grande Número ao acesso as vagas. Assim, o Veto Nº 32/2012, de 30 de agosto não recebeu relatório pela Comissão Mista do Congresso Nacional e assim não foi apreciado.


Nice Lobão numa reunião com apoiadores 

O acompanhamento operacional seguiu com os sucessores, Michel Temer e Jair Bolsonaro. O primeiro, outrora celebrado como um heroico defensor da Constituição, hoje é visto pelos historiadores como o que alterou a lei da reserva de vagas ao sancionar a Lei Nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016, e se encontra como uma figura soturna dessa década. Ele foi incorrigivelmente relutante em ouvir críticas e foi incapaz de trabalhar com a chapa que o elegeu a Vice-Presidente da República. Temer na sequência editou o Decreto Nº 9.034, de 20 de abril de 2017 que altera o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, decorrente da alteração da lei de reserva de vagas. O Decreto modifica a fórmula de cálculo da reserva das vagas, reconfigurando o acompanhamento e metodologia avaliativa do seu cumprimento. O segundo, que se encontra bem perto de sair do governo, que por todos os meios atuou obsessivamente no sentido de erradicar as obras da democratização do país, e por conseguinte, a lei de reserva de vagas.

Com essas medidas, a discussão sobre a reserva de vagas mudou de patamar, o que em si implica uma nova configuração avaliativa dessa política, uma vez que ao ampliar a incorporação de novos possíveis beneficiários dela, não trouxe consigo a questão orçamentaria necessária para esse devido acolhimento.

Inclusive, a sanção de 2016 seguia-se a um confronto político importante, a luta dentro do processo de impedimento da Presidência da República Interina, e a assunção definitiva e término da interinidade. Daí que o Congresso ter incorporado a cidadania educacional as/os deficientes possibilitou a ampliação da igualdade legal na legislação infraconstitucional. Também marcou uma mudança significativa no poder federal, capacitando o governo nacional para proteger os direitos educacionais dos cidadãos.

Os Decretos das reservas de vagas inauguraram, cada qual a seu modo, um período de ampliação do Estado (Hegel e Gramsci), quando a comunidade politicamente mobilizada, com seus aliados, levou um novo contingente ao mundo educacional em todo o país. Pela primeira vez, os pretos, pardos, indígenas, e os cidadãos com deficiência, adentraram em grande número nas instituições federais de ensino técnico, de nível médio, e nas universidades federais.

A maioria das unidades educacionais envolvidas na reserva de vagas, implicou numa mudança sociológica de grande relevância e em duas ondas. Com o advento de pretos, pardos e indígenas e os cidadãos com deficiência no sistema educacional, isso despertou uma pauta de pesquisa ainda em curso sobre os efeitos dessa política. Tanto os artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, estabeleceram métricas a serem realizadas sobre os novos integrantes do sistema educacional que não se encontram disponíveis.

A reserva de vagas tem ainda que ser estudada no impacto, e no que também possibilitou na consolidação de novas percepções dos domiciliares, responsáveis, e familiares que acompanharam essa incorporação. Até porque, ao desonerar um pouco economicamente esses cidadãos com despesas educacionais, isso aduz uma relação ao ideal de igualdade, pois implica em possibilitar a elevação das classes mais baixas da sociedade.

Está claro que a reserva de vagas deve compor um sistema abrangente de erradicação das desigualdades. É por isso que devemos fazer a avaliação dessa política pública, por esse conjunto de variáveis elencadas e outras que por ventura se façam necessárias, uma vez que representa até aqui uma inspiração para todo o mundo.

Embora ainda não realizados os artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, no entanto, permaneceram a serem apresentadas, o que implica numa vacância que não deve ensejar solução de continuidade a essa política. Inclusive por que com a alteração legal de 2016, é de bom tom indicar o novo marco de 2026, para se valer da métrica prevista no próprio diploma. Além disso, como a vigência legal prevista da década do diploma originário de 2012, implica reconhecer até aqui, que essa política fornece a base legal para uma revolução dos direitos educacionais.

Cidadania, direitos, república, democracia – enquanto estes conceitos permanecerem incompreendidos, o mesmo acontecerá com a necessidade de uma compreensão precisa, da reserva de vagas. Mais do que a maioria dos assuntos históricos, como pensamos sobre esta década, realmente importa, pois nos força a refletir sobre o tipo de sociedade que desejamos para o Brasil e o mundo.

 

1 de setembro de 2022


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 11 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

 

Uma década de saudade de Eric Hobsbawm

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Eric Hobsbawm (1917-2012) morreu em 1º de outubro aos 95 anos, foi o mais proeminente historiador do século XX e um defensor da justiça social por toda a vida. Já o conhecia de leitura de longa data, mas pessoalmente só por ocasião de seu tour de lançamento no Brasil de Era dos Extremos em 1995.

Nascido em Alexandria, Egito, filho de pai britânico e mãe austríaca, foi educado em Viena e Berlim. Seus responsáveis o levaram para Londres em 1933 quando Hitler chegou ao poder e ele viveu o resto de sua vida na Inglaterra, onde lecionou por muitos anos no Birkbeck College de Londres.

Quando adolescente, Hobsbawm não apenas testemunhou a ascensão do nazismo, mas esteve presente em 1936 na massiva manifestação popular em Paris que celebrou a vitória eleitoral da Frente Popular. Os acontecimentos daquele período turbulento o levaram a se filiar ao movimento e partido comunista e permaneceu filiado até seu desaparecimento na década de 1990, principalmente, escreveu ele, por respeito à memória de companheiros que sofreram perseguição ou morte por suas crenças políticas.

Os escritos históricos de Hobsbawm trouxeram uma análise sofisticada que via o conflito de classes como uma força motriz da mudança histórica, mas rejeitava as estruturas teleológicas. Como o próprio Marx, Hobsbawm via o capitalismo como um sistema social global, que precisava ser analisado em seu conjunto, e rejeitava noções de inevitabilidade histórica. Ele insistia que as pessoas deveriam se esforçar para vislumbrar uma ordem social mais humana, mas que a história não tinha uma trajetória predeterminada. Seus escritos sobre a história do trabalho britânico ajudaram a lançar a “nova história social” que dominou os estudos históricos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, ele sempre pontuou que os estudos sobre a ação de pessoas comuns, tão importantes para expandir o elenco de personagens históricos, devem ser colocados no contexto mais amplo de como as relações sociais e o poder político é exercido.

Os livros de Hobsbawm cobrem uma incrível variedade de assuntos. Ele ganhou destaque na década de 1950 com sua contribuição para o que era então um debate animado sobre a “crise geral” da Inglaterra do século XVII. Juntamente com E. P. Thompson (1924-1993), os escritos de Hobsbawm ajudaram a inspirar a expansão da história do trabalho, dos estudos dos sindicatos ao exame da vida dos trabalhadores, e desencadearam um interesse em banditismo, anarquismo rural e outras formas do que ele chamou de protesto “pré-político”.



Hobsbawm ficou mais conhecido por sua magistral série das Eras, que juntas contam a história mundial desde o início das Revoluções do século XVIII até o fim do século XX. Muito antes da atual moda de “internacionalizar” o estudo da história, Hobsbawm insistia que o capitalismo é um sistema global, que deve ser estudado em um contexto global. Os livros se basearam em eventos em todas as regiões do mundo e em fontes e estudos em vários idiomas. Hobsbawm sentia-se à vontade para discutir assuntos tão distantes da Grã-Bretanha quanto os eventos que deram fim a colonização na Ibero-América, a Restauração Meiji no Japão e a ascensão ao poder global dos Estados Unidos da América, mas foi capaz de mesclar detalhes locais em um relato coerente da política global, mudanças econômicas e sociais. Os relatos também abordam arte, cultura, ciência, tecnologia e outras questões da criatividade e experiência planetária. Esses livros seguem sendo o ponto de partida para quem busca uma história abrangente do mundo moderno.

Um polímata, Hobsbawm também foi um notável crítico de jazz, por muitos anos escrevendo críticas musicais sob o nome de Francis Newton. Ele era um ensaísta talentoso sobre assuntos atuais, cujos escritos tinham um amplo público entre os interessados em política. Em qualquer gênero, suas obras eram lúcidas e poderosas, e sempre carregavam uma inflexão ética.

Pessoalmente, o conheci e troquei breves palavras naquela noite de 16 de agosto de 1995 na palestra que fez no auditório de O Globo, no Rio de Janeiro. Hobsbawm era uma pessoa gregária, de mente aberta e generosa, cujo grande círculo de amigos abrangia todo o espectro político e social. Sua vida e seus escritos servirão por muito tempo de inspiração para aqueles que acreditam que o conhecimento da história é essencial para entender o mundo atual e para a luta por criar um mundo melhor.

 

19 de agosto de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.






sábado, 10 de setembro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 31 - BALANÇO DA CAMPANHA ELEITORAL 2022


Ciro Nogueira orienta Jair em evento do Palácio do Planalto
 Foto: Paulo Ladeira (13/12/2021)

Estratégias da Direita Racional

Vagner Gomes de Souza

O cenário de uma desgastante disputa eleitoral no segundo turno está se avizinhando sob a ameaça de derrotas eleitorais em estados da federação “chaves” para o campo democrático. A Direita Racional, muito bem capitaneada pelas forças políticas do mais articulado bloco político chamado de “Centrão”, desenvolve uma campanha para além das táticas eleitorais. Eles estão deixaram de ocupar nenhum bairro como se fossem até aliados do lulismo. Todas as desvantagens políticas acabam por ser imobilizadas por essa configuração diante da falta de condição das forças democráticas em pautar o debate eleitoral até o presente momento. Oportunidades perdidas como no recente falecimento da Rainha da Inglaterra que lutou na Segunda Guerra contra o Nazifascismo.

Não é novidade nosso alerta de que não se poderia entrar numa campanha eleitoral sem um debate programático que apresentasse mais um Brasil no futuro que um “Book Digital” de boas realizações do passado. O eleitor jovem não viveu ou não tem memória política para se mobilizar com os temas do passado ainda mais diante do “negacionismo” de algumas vertentes esquerdizantes sobre nossa formação histórica quanto ao sucesso de nossa trajetória política nacional no cenário mundial.

Diante disso, onde está a juventude espontaneamente nas ruas a fazer uma campanha eleitoral em favor de um Brasil republicano e democrático? Esse segmento se autoisolou nas redes sociais, pois PROUNI, PRONATEC, ENEM e outras siglas ainda não atingem a sensibilidade do momento: a morte de emprego diante dos avanços tecnológicos. A precarização do trabalho que mais atinge aos jovens mais pobres o faz se distanciar de uma mobilização eleitoral acadêmica com essas leituras em derivas sobre o eu. Assim, o “Centrão” ganhou fôlego nas camadas médias e superiores da pirâmide social com polêmicas e anima o debate referente aos temas de costumes, ou seja, superestruturais.


Diante de quase 700 mil ausências causadas pela COVID, em que momento as mães, viúvas, noivas, namoradas, filhas, avós vão ter um lugar de fala sobre esse drama social na campanha eleitoral das forças democráticas? Ainda não se falou sobre as consequências econômicas duradouras dessa Pandemia. Portanto, há o genocídio na comunicação de uma campanha ao dialogar com as camadas populares de forma muito rebuscada nas palavras. De mobilizações de ruas carnavalescas, um segmento político do campo democrático assumiu um perfil mais e mais sectário ao não saber mobilizar o leitor mais popular que pode estar a votar no primeiro turno na coligação Brasil da Esperança, mas nas legislativas vota em candidaturas alinhadas a coligação Pelo Bem do Brasil.

A ausência das falas programáticas faz essa campanha ficar a depender de carisma ou avaliar que dancinhas num aplicativo digital vai sensibilizar um eleitor. Porém, no momento que chegar ao supermercado, o mesmo eleitor percebe menos contratação de empregados mais associados a carestia dos preços dos alimentos. A fome estrutural enraizadas nos empregos informalizados. No país que teve Josué de Castro, um profundo silêncio programático sobre o ensinamento de José no Velho Testamento sobre a reserva de alimentos nos tempos das vacas gordas. Assim, que o tema da religiosidade poderia ser abordado ao contrário de ficar numa defensiva. Esse é o momento de separar o “joio do trigo” diante das armadilhas identitárias mobilizadas pelo bolsonarismo ao dialogar com um fundamentalismo religioso que só existe nas mentes dos coordenadores de campanha táticas de campanha americanizadas. Ainda somos o país da religiosidade do sincretismo que é também econômico e social.

Contudo, abre-se um Mar Vermelho para os votos aos “Vermelhos Americanizados” (nossa referência ao perfil do eleitor que defende pautas semelhantes ao Partido Republicano dos EUA cuja cor é vermelha). As ruas estão vazias de militância das candidaturas do Brasil Esperança ao legislativo a falar do preço do leite. Talvez seja por ser uma bebida de cor branca. Além de falar da carne mais barata. Apresentemos soluções mais sustentáveis para não termos uma carne bovina mais cara do planeta. Os problemas energéticos na Europa por causa da Guerra da Ucrânia expõem os erros do discurso “anti-imperialista” retirado dos museus de uma jovem militância que não está fazendo o eleitor da coligação fazer campanha republicana e democrática.

Presidente Lula na sanção da Lei do Dia Nacional da Marcha de Jesus em 03 de setembro de 2009 (fonte Agência Brasil)

Esse é o momento de não se envolver numa “Guerra Digital” em busca de narrativas. Vivemos o momento de fazer o que sempre foi mais marcante aos militantes do campo democrático. Estar debatendo o futuro com o eleitor nas ruas. Diferente de 2018, a Direita Racional está nas ruas com recursos de um possível secreto orçamento. Cada candidatura proporcional das forças do “Centrão” está mobilizando a campanha da reeleição do Presidente. Não se iludam com as danças das baianas nas redes sociais, pois em carnaval até flamenguistas dançam com vascaínos. Deixamos a política ser essa carnavalização sem ideias. Devemos corrigir os rumos com mais contato com os eleitores nas ruas priorizando também as candidaturas proporcionais em bairros populares. Por exemplo, o que estão a fazer no maior bairro do Brasil para reverter os resultados de 2018 (Campo Grande – Rio de Janeiro)? Não se pode estar a ficar com “boca-de-siri”, pois há sinergia política das eleições proporcionais para a majoritária.

Então, Ciro é o grande vitorioso até o presente momento nesse cenário eleitoral aqui desenhado. Soube mobilizar a superestrutura para evitar os temas econômicos inconvenientes. De forma racional, Ciro sabe que não se pode debater a economia do país. Mais temas de Igrejas e menos temas do Supermercado. Deixe o mercado das narrativas fraturar ainda mais o campo democrático. Essa é a estratégia racional da Direita articulada por Ciro Nogueira. Reconhecer esse ponto é o começo para que haja uma nova postura nos próximos 21 dias. Ainda há possibilidades se começar a mobilizar o eleitor através das campanhas ao legislativo. Nada de cada território o meu voto. Agora é, Brasil Esperança é meu território.