sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

CINEMA: Opinião

 
Tal Lá, Tal Cá

Por Pablo Spinelli

Dedico à Walkiria Campanha, que sabe o valor da democracia e do amor.

O título acima poderia ser de uma letra de um tango argentino mas é uma proposta de uma análise comparativa da realidade trágica – as ditaduras militares apoiadas por vários elementos da sociedade civil - que se abateu na parte sul da América nos anos de 1970, período embrionário para muitos dos problemas que nos afligem na contemporaneidade.
Há um senso comum midiático e até mesmo acadêmico que aponta a grama do vizinho mais verde. Dito de maneira clara: a ditadura argentina teria dois componentes que nos seus extremos nos fazem inferiores histórica e analogamente – a ditadura argentina foi mais dura, repressiva, violenta que a brasileira, a ponto de filhos de presos políticos serem sequestrados e colocados para adoção a militares que os desejassem (o filme “A História Oficial”, de Luiz Puenzo, 1985, trata do tema) enquanto que a ditadura brasileira foi mais branda pela contagem do número (oficial) de mortos ao se comparar com o caso dos vizinhos platinos, como se o número de mortos fosse determinante quanto à maior ou menor brutalidade ou violência de um governo repressor.
O outro ponto refere-se ao fato de que os governos civis que se sucederam à ditadura – e não é o caso aqui de falar como foi a postura de Carlos Menem a respeito do tema – não foram complacentes com os horrores dos porões e a democracia argentina acabou por punir os seus algozes, algo que os aproximaria dos chilenos e os distanciaria do Brasil que optou por uma solução moderada e extremamente favorável ao enterro da memória do período que foi a Lei da Anistia; lei essa que na sua essência acabou por perdoar tanto os membros da esquerda “subversiva” quanto os opressores do regime. Em suma, enquanto que na Argentina houve uma revisão radical do seu período negro, aqui houve uma transação que permitiu a inatingibilidade da lei sobre os representantes agressivos do Estado brasileiro.
A produção cinematográfica argentina tem ocupado um espaço similar, salvaguardando as devidas proporções, ao que foi ocupado pelo cinema italiano nos longínquos anos 1960 e 1970, no Brasil. Enquanto que as produções brasileiras em sua maioria carregam no tom ensaístico, um olhar sociológico ou antropológico que predomina sobre o enredo, a produção argentina tem uma preocupação mais feliz nos seus roteiros e não deixam de produzir críticas políticas, sociais e econômicas, como se viu em indicações recentes ao Oscar do vitorioso “O Segredo dos Seus Olhos” [2009] e de “Relatos Selvagens” [2014]. No mais recente candidato argentino ao Oscar – isso não quer dizer que a Academia de Hollywood o escolha -, a película de Pablo Trapero, “O Clã” [2015] é mais uma abordagem sobre o tema da ditadura argentina – porém, aborda mais o seu crepúsculo - que de forma tangencial também foi tratada em “Um Conto Chinês”[2011] - do que os seus momentos mais duros como em “O Segredo”.
O filme já provoca um estranhamento quando aparece a figura do ex-presidente Raúl Alfonsin (1983-1989) que faz um discurso sobre como o seu governo democrático iria tratar o sistema de coerção, vigilância e violência criado pelo Estado ditatorial argentino. Esse estranhamento é por conta do apagar da memória das novas gerações, parafraseando “Vai Passar” de Chico Buarque, acerca do processo de redemocratização na América do Sul, algo um tanto desconhecido para aqueles com menos de trinta anos. À época, a redemocratização causa um impacto nos agentes da repressão, pois o mundo deles desabou em efeito similar ao que aconteceu com comunistas ortodoxos com o fim da URSS. O desmantelamento do Estado ditatorial provocou em muitos dos seus artífices o caminhar por senderos nada luminosos.
O caso do filme é exemplar. Uma família típica de classe média onde o pai é agente civil do Estado repressor, a mãe, uma dona de casa e professora (!), os filhos, estudantes tenazes e dois deles atletas profissionais, sendo o mais velho um atleta premiado de rugby. Diante dos problemas de ordem econômica que veio como consequência da ditadura militar – como no caso brasileiro – o pai não hesita em melhorar o status quo: usa o conhecimento adquirido nos porões estatais dos generais para sequestrar filhos de classe média alta, inclusive, amigos do seu filho famoso. A partir daí vemos episódios que mostram a permanência da violência instituída na sociedade pós-ditatorial; sequestros, homicídios, chantagens, tudo é feito por Arquimedes Puccio que dizia aos familiares de suas vítimas que tudo era operado por fantasiosos grupos extremistas de esquerda. Qualquer semelhança com o caso do Riocentro (1981) não é mera coincidência. Aos familiares – dos outros e depois para os seus – uma palavra que permeia o filme: “tranquilo, tranquilo”. Palavra que reforça a certeza da impunidade para o Sr. Puccio.
Os sequestros se tornam escabrosos a partir do momento em que mesmo após o pagamento do resgate a vítima é morta. A família Puccio sabia de tudo o que ocorria no porão de sua própria casa, destino dos reféns. O mais jovem acaba por se exilar da família e do país. O jovem atleta é atormentado entre o dever com o pai e o status adquirido e os imperativos morais; a mãe, uma lady Macbeth passiva que no seu silêncio afirma sua solidariedade ao patriarca. A filha mais velha naturaliza o ocorrido como se nada acontecesse. Essa Família Addams seria algo próximo de personagens de um diretor como Tarantino, mas o horror vem de que todos são personagens reais num episódio que expôs a continuidade do antigo regime na democracia política.
Para uma reflexão de paralelos com o nosso país, para além do futebol onde ambos perderam para o mesmo país, a Alemanha, de também triste e tenebroso passado no século XX, na última Copa do Mundo, o antigo regime ainda se fez e se faz presente em ambas as sociedades. Violência e corrupção policial, uma parte da classe média e da classe subalterna que apoia o extermínio dos “indesejáveis” à sociedade, o enraizamento de antigos membros do exército, da polícia e do aparato coercitivo do Estado nas áreas de segurança pública ou privada. O oficial que matou Carlos Lamarca já foi Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, por exemplo. Um capitão reformado do exército, um dos melhores quadros para os interrogatórios e tortura de presos políticos acabou na contravenção como um dos mais famosos “banqueiros” do jogo do bicho, patrono de uma escola de samba e um dos fundadores da entidade privada que organiza os desfiles das escolas de samba na cidade do Rio de Janeiro (aqui cabe a sugestão de leitura do muito bom livro de Aloy Jupiara e Chico Otávio, “Os porões da contravenção – jogo do bicho e ditadura militar: a aliança que profissionalizou o crime organizado. Editora Record), isso para não falarmos da organização das milícias aqui e alhures.
O epílogo do filme onde mostra os destinos dos personagens principais acaba por desconstruir a tese posta acima que os argentinos foram mais punitivos que o caso brasileiro; pode-se perder de 7 a 1 ou de menos, mas derrota é derrota, cabe a nós, defensores da democracia, aprender e apreender com as realizações do “clã” (uma provocação argentina à família que acabou de sair da presidência algo similar – num outro paralelismo aos “hermanos” - ao que já aconteceu no governo do Estado do Rio de Janeiro, mas isso é outra história) a herança a qual devemos renunciar.