sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 4


De Volta para a Casa Comum

Em memória de Desmond Tutu

Por Vagner Gomes de Souza

“14 Portanto, acontece com eles o que disse o profeta Isaías: 

“Vocês ouvirão mas, mesmo ouvindo,

    não conseguirão entender;

vocês olharão mas, mesmo olhando,

    não conseguirão ver.

15 Isto acontece, pois o coração deste povo está endurecido.

    Eles taparam os ouvidos e fecharam os olhos.

Se não fosse assim,

    eles poderiam ver com os olhos,

ouvir com os ouvidos

    e entender com o coração,

e se voltariam para mim

    e eu os curaria”.

Mateus 13. 14-15

 

 

Apesar de não ser um filme, a série A Sabedoria do Tempo, com o Papa Francisco – mais uma produção da NETFLIX – tem um grande méritos para que sua mensagem seja levada as multidões.  A ideia de fazer pessoas com mais de 70 anos serem ouvidas é como se fosse uma nova versão da fábula do semeador em que Jesus fazia uso desse método para “amolecer” os corações de seus ouvintes. Nesse caso, há uma produção gravada em meio a pandemia da COVID19 no qual os idosos sempre foram apresentados como aqueles que fizessem parte do “grupo de risco”. Entretanto, se o Planeta Terra é nossa Casa Comum, como nos ensina Jorge Mario Bergoglio, podemos reafirmar que todos nos encontramos vivendo um risco. Esse risco de sobrevivência precisa ser enfrentado com a aproximação da sabedoria do tempo para os mais jovens.

Superar um fosso entre as gerações é uma mensagem da série que está dividida em quatro episódios em que o Papa Francisco, autor do livro que inspirou a série Sabedoria das Idades, em breves respostas sobre Amor, Sonhos, Luta e Trabalho serve como o grande “conduttore” (maestro) de uma sinfonia reflexiva e política. Não se debate os motivos que levaram ao fosso geracional quanto a importância do diálogo com os mais idosos, mas apresentam vidas e sabedorias de algumas personalidades conhecidas ou nem tanta que fazem o espectador ter empatia nas pessoas e em seus exemplos.

Variadas são as situações e experiências apresentadas ao longo dessa série que já te encanta com a música de abertura de Valerio Vigliar, “Dali´s salvation (Everything´s Everywhere)”[1], compositor italiano que está gradualmente ganhando espaço em trilhas sonoras de alguns filmes. A música expressa a “alma” da série. Aliás, as novas gerações não estão muito atentas as músicas das trilhas sonoras nas produções cinematográficas, pois desejam ver ação sem ouvir. A série é para se voltar a ouvir os outros numa postura para ultrapassar o desafio das posturas autoritárias. Aprendemos sempre quando estamos dispostos a ouvir.

No primeiro episódio de tom em tom redescobrimos Martin Scorsese entre outros seres humanos fascinantes. Martin está é o único a aparecer em dois episódios (“Amor” e “Trabalho”). Martin faz leituras para sua filha mais nova que lhe faz perguntas sobre passagens de sua carreira. Um exemplo de diálogo para que a casa seja comum. E não podemos nos esquecer de que esse é o Diretor de A última tentação de Jesus Cristo. Esse poderia ser o melhor tom para que se percebesse a abertura ao conhecimento sem dogmas ou endurecimentos no coração. Como muito bem é acolhida no episódio segundo a ideia do perdão em relação a tema da segregação racial nos Estados Unidos, pois o passado é passado, mas o importante é estamos na mesa da fraternidade no futuro. Esse era o sonho do outro Martin, o Pastor Martin Luther King assim ensinou em seu conhecido discurso “Eu tenho um sonho” (28 de agosto de 1963): “Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.”

A ideia de fraternidade foi provavelmente o que motivou o camarada fotógrafo sul-africano na luta contra a apartheid. O sentido da luta na sabedoria do tempo é muito instigante, pois há muito que se revelar sobre memórias e militantes ainda a se descobrir. Um pouco disso estamos a fazer no Brasil também. Todavia, muitas pessoas não poderiam ter a dimensão do que foi a política racista na África do Sul ainda nos anos 80 do século XX. A luta internacional de solidariedade para que os sul-africanos fossem acolhidos em nossa Casa Comum. Por fim, no episódio “Trabalho” há um belo registro da séria ao se fazer o acolhimento de Oxum uma vez que representa a sabedoria e o poder feminino. Não há espaço para sectarismo da fé ou outro qualquer no Papa Francisco.



[1] A música está no Spotify e há um clipe no YouTube.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

TEXTOS DA JUVENTUDE - O NOVO LIVRO DE CHICO BUARQUE


 

As Caravanas em Anos de Chumbo e outros contos.

Por Julia Neves

 

 Para iniciar, é necessário falar do começo: o título. A escolha deste foi interessante, pois é sugerido que os contos irão retratar, ou ao menos se passar, no período da Ditadura Militar brasileira, o que não é o caso. A obra trás consigo uma leveza e humor, apesar de tratar como assuntos sérios, como a invisibilidade social, preconceito de classe, racismo e a questão das milícias, muito presente até atualmente na Cidade do Rio de Janeiro, onde a maioria dos contos se passa.

 O primeiro conto, intitulado “Meu tio”, trata de uma família disfuncional, na qual a filha está envolvida em um caso de incesto e prostituição pelos próprios pais. O segundo conto, “O passaporte”, é tão atual por mostrar uma política do cancelamento e o tão debatido “hate” a uma pessoa famosa em uma época em que esse termo nem existia. No terceiro conto chamado “Os primos de campo”, outra família disfuncional é retratada, dessa vez à mercê da polícia, milícia e do racismo. Além de debater o abandono paternal. O próximo conto, “Cida”, fala sobre uma moradora de rua e trás a pauta da diferença e preconceito de classes, além da invisibilidade social. O quinto conto é sobre um dos bairros mais famosos do mundo e o cartão postal do Brasil: Copacabana, aonde histórias, ou devaneios, vem à tona na qual o icônico bairro carioca é o personagem principal. O conto “Para Clarisse, com candura”, trás o debate de até que ponto a idolatria de um jovem por um ídolo pode chegar, assunto também que se mostra muito atual, em uma época em que pessoas fazem loucuras e coisas inimagináveis para conhecer alguém endeusado. O penúltimo conto intitulado “O sítio” fala sobre as férias de um casal que recebem ajuda de um caseiro e visitas esporádicas de urubus. Já o último conto, “Anos de Chumbo”, passa-se no período da Ditadura Militar e mostra como um menino resolveu a questão da convivência com seus pais.

  Todos os personagens principais, apesar de não terem nome, possuem características marcantes: o sarcasmo, a ignorância, as angústias, os problemas mentais e éticos de cada um. São essas características, não descritas por Chico Buarque, mas percebidas através das atitudes de cada personagem, que nos permite ver que eles são nada mais e nada menos que humanos. O livro retrata isso: a essência humana. Ninguém é 100% bom ou 100% mal e os contos mostram isso.

 As histórias contadas no livro são engenhosas, com reviravoltas surpreendentes, que diz muito não somente a época em que os contos foram escritos, mas sobre o Brasil atual. As histórias se encaixam tão perfeitamente no momento em que vivemos que poderiam ser facilmente escritas a 2,3 anos atrás.

 Afinal, será que a realidade brasileira atual não pode ser entendida também como os “Anos de Chumbo” do século XXI?  Esse momento de silêncio das autoridades sobre a continuidade da Pandemia no mundo pode ser uma indicador para essa resposta.

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - O BICENTENÁRIO DE DOSTOIÉVSKI


Um lugar ao sol para Dostoiévski

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Nos idos de 4 a 6 de outubro de 2021 a Universidade Estatal de São Petersburgo, com o apoio de várias instituições, realizou o V Foro Internacional "Rusia e Iberoamérica en el mundo globalizante: historia y perspectivas". Naquela ocasião apresentamos A Pandemia da Desigualdade Global & O Futuro Planetário, bem como saudamos os irmãos russos do nosso bicentenário partidário da Rússia Americana.

Na ocasião recordávamos a exclamação de Fiódor Pávlovitch Karamázov, o personagem sombrio e cruel que abalou a vida de seus filhos no romance Os Irmãos Karamázov (1879).

– Por enquanto ainda sou um homem, apesar de tudo, tenho apenas cinquenta e cinco anos, mas ainda quero permanecer uns vinte no rol dos homens, porque vou envelhecer, ficar um trapo e elas não vão querer vir à minha casa de boa vontade, e é por isso que vou precisar de um dinheirinho. É por isso que venho juntando cada vez mais e mais só para mim, meu amável filho Alieksiêi Fiódorovitch, que fiquem vocês sabendo, porque quero viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. Na imundice é que é mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto eu sou transparente. Pois foi por essa minha simplicidade que todos os sujos investiram contra mim. Já para o teu paraíso, Alieksiêi Fiódorovitch, não quero ir, fica tu sabendo, e para um homem direito é até indecente ir para o teu paraíso, se é que ele existe mesmo. A meu ver, a pessoa dorme e não acorda mais, descobre que não existe nada; lembrem-se de mim se quiserem, e se não quiserem o diabo que os carregue. Eis minha filosofia.

Duzentos anos se passaram desde o nascimento do escritor russo (1821-1881), que morreu pouco antes de atingir a sexta década de vida. Este russo cuja vida era comum e que conseguiu mostrar a tragédia que acompanhou a pobreza da sociedade russa daqueles tempos: servidão desde a época medieval (e renovada na primeira metade do século XVII), apesar dele estar situado no coração do século XIX europeu; camponês, apesar do czarismo se dizer aspirante aos ventos iluministas franceses de sua burguesia nascente e seus tribunais; relutante em face da ilustração apesar de ter dado origem a um conjunto de escritores extraordinários que alteraram a alma da literatura e do sentimento da humanidade. Fiódor Dostoiévski, ele mesmo epiléptico, é encurralado numa reunião de pessoas que faziam oposição ao regime do czar Nicolau I e é condenado a ser fuzilado, para mais tarde comutar sua sentença por outra de trabalhos forçados na Sibéria, onde longos anos de vida do escritor se passam; anos amargos e lentos enquanto ele os desenha nas suas Recordações da Casa dos Mortos (1862).



Em seu ensaio sobre Dostoiévski, o crítico da carnavalização Mikhail Bakhtin (1895-1975) observa que a alma russa é capaz de se embriagar com sua própria perdição, e enfoca o perfil poético e filosófico que o escritor faz do sofrimento: o sofrimento é um dos meios pelo qual nós humanos somos capazes de tomar consciência das coisas. Bakhtin percebe em Dostoiévski as origens dos naródniki (versão clássica russa do populismo - que nada tem a ver com as polifonias que o conceito adquiriria no tempo e espaço), mas trágico e permanente, como escreve seu no primeiro romance Gente Pobre (1846): "Os pobres e os desgraçados deviam viver longe uns dos outros, para que as suas misérias não se agravassem mutuamente." Dostoiévski era viciado em jogos de azar, em roleta, em ser vítima da força do acaso. Em O Jogador (1866), descreve claramente a vocação russa para o abismo que se abre quando se está a ponto de perder tudo. O romance confessa que o russo joga para perder, não para ganhar; se no jogo não houvesse possibilidade trágica de perder tudo, não seria mais interessante para o temperamento econômico vigente na pasta brasileira afeta.

O livre arbítrio foi o problema filosófico mais profundo e óbvio revelado na maioria de suas obras. O livre arbítrio dá origem à existência do bem e do mal e, portanto, à culpa e/ou arrependimento, à dúvida moral, como o observamos no que se tornou seu romance mais famoso Crime e Castigo (1866). A liberdade impede a felicidade, pois, se o livre-arbítrio existe, seria necessário escolher com responsabilidade e assumir o controle até dos acidentes do acaso. Ele também fecha o paraíso terrestre e sabe que a razão e/ou a verdade não impedem o sofrimento, o desastre moral em curso para Bárbara de Um lugar ao sol, as adversidades que afetam todo russo, toda a humanidade que usa a razão para acreditar que pode abalar e/ou construir uma vida feliz. Já em Memórias do subsolo (1864), Dostoiévski escreveu: "não se podia sequer culpar as leis da natureza, embora, realmente, as leis da natureza me ofendessem sempre e mais do que tudo, a vida inteira."

No portal de entrada do terceiro ano da pandemia poderíamos dizer no espírito russo de Dostoiévski que a barbaridade da barbárie grita tanto quanto a barbárie da barbaridade, mas esses aspectos das pluralidades de vozes e consciências independentes e distintas típicas de suas personagens expressam suas capacidades de exporem e contrastarem diferentes visões das realidades representadas, e daí o que seus universos e multiversos que, sem se fundir, se combinam na unidade na diversidade da vida concreta e, as vezes, podem apontar para um outro mundo possível melhor planetariamente.

Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 2021

[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 3

Não Olhe para a Política

Dedicado ao astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Por Vagner Gomes de Souza

O filme Não Olhe Para Cima é mais uma produção da NETFLIX que “explodiu” em simpatia conquistando elogios do grande público e chamou a atenção de segmentos considerados mais politizados nas chamadas redes sócias. Nos anos 80 do século passado, diante da hegemonia do Homem-Aranha: sem volta para casa, seria o filme de sucesso da propaganda “boca a boca”. Nesse momento ele é o filme de resistência aos negacionistas de todas as vertentes.

Devemos reconhecer que há setores que se dizem progressistas, mas que ainda fazem parte desse mundo paralelo em negar que o “cometa do autoritarismo” ganha força num terreno em que se nega os princípios da República e da Democracia. Eles preferem a destruição do “cometa” ao contrário de desviá-lo, ou seja, adotam o sectarismo político nas políticas de alianças contra as forças obscuras que rodeiam ao mundo e nosso país em particular. Não teremos eleições fáceis como se fosse um “passeio” de estrelas dançando pelo céu.

 As limitações do “filhote” Jason, Chefe de Gabinete da Presidente dos Estados Unidos, são comuns em algumas lideranças no campo progressista. Jason é o “sinal trocado” de uma geração da antipolítica nas forças da chamada “New Left”.  Elas deveriam orientar a sociedade para a luta comum ao contrário de simplesmente berrar: “Vamos todos morrer!” ou denunciar os interesses dos gananciosos do grande capital numa conversa de bar.  Há burrices também na Esquerda e nós devemos reconhecer isso para que Não Olhe Para Cima ajude na autocrítica de ações que negam a aproximação com as grandes massas. Afinal, Kate declara o não ter votado em Janie Orlean o que não significa que tenha votado em outra candidatura. No filme foi necessário que os cientistas “bonzinhos” mobilizassem uma cantora pop.

Não Olhe Para Cima não se enquadra no gênero comédia ou comédia dramática. Nosso mundo de absurdos é tamanho que escreveram ser um filme de terror. Ele é a mais pura farsa política ao nível de um Nanni Moreti com efeitos visuais. E, na dúvida, vá pesquisar no Wikipédia antes de saber a opinião do jovem ator Tom Holland sobre esse Diretor italiano. Kate, a personagem do empoderamento feminino na ciência da astronomia, foi aprendendo a fazer política no percurso do roteiro que fez a ciência dar as mãos à fé.

Então, olhar simplesmente para os equívocos das forças extremistas da Direita ainda nos faz não olhar para a cima o que impõe fazer política de frente com todas e todos a partir de um debate programático. Precisamos reconhecer que há uma falência no sistema educacional e, com certeza, obtemos resultados de equívocos de quase duas décadas. Um educador como o desconhecido professor Irineu Guimarães precisa ser redescoberto ao menos quanto as suas ações de solidariedade[1]. Será que reconheceram o Carl Sagan no bonequinho? Por que o quadro de Nixon apareceu em destaque numa cena na Casa Branca? Quantos associariam o filme Titanic e a presença de Leonardo DiCaprio no elenco?

Sem olhar para a política surgiram os “memes” sobre o filme. A juventude aderiu ao seu simples compartilhar, mas é necessário muito mais a se fazer para se realizar o bom combate. Imagine como seria mais difícil a história do cristianismo se o Apóstolo Paulo não tivesse a ajuda do Lucas que o acompanhou até o martírio. A solução não é ficar na laje olhando para o céu aguardando a aproximação do fim. A ciência nos ensinou que se aprende fazendo os experimentos. Logo, não podemos deixar de tentar escrever sobre filmes como esse. Caso contrário as novas gerações só conviverá com “O Horror. O Horror.”



[1] A atriz Cate Blanchett coincidentemente estudou num Colégio Metodista aonde começou a fazer Teatro.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 2


Spider-man ou a inesperada virtude da ignorância

Dedico aos 24 anos de Isabela, fã de cinema.

Por Pablo Spinelli

 

Aviso de Spoiler: Esse artigo fala mal da nova versão do Homem-Aranha, para saber o porquê você terá que ler as 1 800 palavras abaixo.

O cinema hollywoodiano sofreu uma grande transformação na década de 1950 quando a televisão virou um meio de comunicação comum de entretenimento nos lares da classe média nos EUA em compasso com a insularidade elitista nos subúrbios do país, o que gerou dezenas e dezenas de Springfield, tema caro a um pesquisador como Richard Sennett. O cinema americano dessa década ficou marcado por um pastiche de fórmulas consagradas em determinados estilos, como os filmes de guerra (a Guerra da Coréia iniciou a década de 1950 com participação efetiva de tropas americanas), musicais que davam um sinal de esgotamento, filmes de faroeste que começaram a não atrair mais a juventude americana. Parecia que havia uma esclerose de mesmas histórias que não tinham impacto ao público mais jovem, fora os problemas de autocensura por conta do macarthismo e a paranoia que ele gerou.

A década de 1960 acabou por ser um divisor de águas em Hollywood com a chegada em cena de jovens talentos do teatro, da própria televisão e do mundo universitário. Era uma geração que via nos filmes europeus problematizações e enfoques que permitiam imaginar que os americanos viviam em um estado mental e cultural juvenil de alienamento aos grandes problemas individuais e sociais, como uma narcolepsia coletiva que referendava todos os prognósticos negativos expostos por Theodor Adorno sobre a indústria cultural de massa. Além disso, essa nova geração unia um cosmopolitismo cinéfilo – que chegou a conhecer a obra do japonês Akira Kurosawa – a uma leitura intensa da sociologia, ciência política e de revistas vanguardistas como a New Yorker. Desse modo surgiram filmes financiados por atores que não se encaixavam no sistema de estúdio, como Warren Beatty, que produziu o icônico Boonie e Clyde – uma rajada de balas (1967), como pode ser lido no livro de Mark Harris, Cenas de uma revolução: o nascimento da nova Hollywood, RS,  L&PM, 2011.



O cinema, como qualquer manifestação artística, passa por mudanças técnicas, de perspectivas e de mercado. Os atuais septuagenários George Lucas e Steven Spielberg mudaram as abordagens da Nova Hollywood que os pariu com filmes como Uma Nova Esperança (1977) e Tubarão (1975), respectivamente. Criaram um novo problema para a indústria americana. Os efeitos especiais passaram a ser quase uma condicionante para que as gerações mais jovens fizessem fila, além de uma demanda por bons enredos, por utopias, por nostalgias (Indiana Jones) em virtude do início do neoliberalismo e do neoconservadorismo da presidência (1981-1988) de Ronald Reagan. No Brasil, a demanda juvenil se coadunava com o processo de redemocratização e do governo de transição após a eleição do ex-PSD Tancredo Neves com o ex-UDN José Sarney no Colégio Eleitoral de 1985. O fenômeno blockbuster criou, pela lente do mercado a fórmula de continuações dos mais variados gêneros, dos já citados Star Wars, Indiana Jones à Hora do Pesadelo, Sexta-feira 13, Brinquedo Assassino, Mad Max, Rambo, Karatê Kid, dentre outros.

A terceira grande provocação à indústria americana acabou por surgir não por conta de uma concorrência de indústrias de outros países, ao contrário;  países que começaram a adotar um modelo de responsabilidade fiscal, de redução de investimentos na área educacional (governos ingleses de Tatcher a Tony Blair), governados por  políticos ”antissistêmicos” que valorizaram o embrutecimento humano em prol de prazeres orgiásticos (Berlusconi, por exemplo) viram sua indústria cinematográfica entrar em decadência. O grande nó para Hollywood veio de uma síntese do neoliberalismo em curso: o atendimento por demanda por streaming, a netflixização do público nos últimos dez anos, o toyotismo cultural, o self-service do olhar.

Não é o espaço para aprofundar o tema do uso de metadados, isso está disponível na própria Netflix em O dilema das redes, documentário que atacou a todos, menos à própria Netflix. No final da década passada começou uma intensa fragmentação por cardápios diversos, por vezes, redundantes, com a entrada da HBO, Amazon, e de estúdios que começaram a disponibilizar sua produção, ao invés de compartilhar lucros, como a Disney e a Paramount. Ao contrário da imbecilidade reinante, aqui, a Globo - ao invés de estar falida - pegou carona para lucrar mais em uma lógica de redução de custos e no entendimento de que a pulsão consumidora passou a ter primazia sobre a rotina do horário, ou seja, a novela das 19h ou 21h pode ser vista em qualquer horário, desde que pague.

Dessa forma, o atual público juvenil começou a achar que filme clássico era o produzido nos anos 1980 (e campeões de bilheteria), pois esse é o rótulo nos streamings (exceção é o Petra Belas Artes, cujo valor é inversamente proporcional ao que disponibiliza, e o Telecine Play que tem filmes americanos, franceses, soviéticos dos anos 1920). O gosto por filmes ficou engavetado, condicionado e (res)surgiu um fenômeno que está nos primórdios do cinema, das matinês de sábado desde os anos 1920: uma história contada em forma de série. No caso brasileiro, uma cultura letrada à base do folhetim de José de Alencar e Machado de Assis que vicejou na cultura popular com as novelas de Janet Clair e de Gilberto Braga não poderia dar errado esse tipo de experiência audiovisual. Daí que os jovens começaram a ver uma produção espanhola (sem jamais ter ouvido falar de Pedro Almodóvar ou Buñel) como A Casa de Papel ou fizeram da sul-coreana Round 6 um fenômeno mundial.

A indústria do cinema americano passou a se reajustar on demand e da pior forma possível. Os filmes de super-heróis que nunca tiveram êxito comercial passaram por uma fase nova a partir de títulos como Blade (1998), X-Men (2000) e Homem-Aranha (2002) diante do fenômeno (lucrativo) da adaptação da saga de Harry Potter. A partir disso, a Disney iniciou um processo de fagocitose de seus concorrentes rejeitando todo o libelo liberal do livre-mercado. Pixar, LucasFilms, Fox, Marvel passaram a ser de uma única empresa. Algo parecido, só talvez na China ou Albânia. Uma cultura audiovisual que passou a seriar seus filmes e personagens. Uma sequência nos anos 1980 era uma consequência, hoje é feita aprioristicamente. Os jovens passaram a ter uma autodisciplina extraordinária para esperar por um, dois, três anos por um filme para obter um... final!(são muitos os que não suportam um clássico com final aberto). Esperam sentados por uma longa lista de créditos mais do que conseguem ficar em uma aula na escola para ver uma cena pós-crédito de 45 segundos. Pensemos em quantos morreram sem saber que Tony Stark não iria chegar à pandemia. Isso para não aprofundar que isso afetou o personagem mais longevo do cinema, James Bond, que com Daniel Craig virou uma série.


Essa estratégia de seriar a saga de heróis, considerada maravilhosa por muitos youtubbers (onde vários desempregados ou subempregados começam a monetizar com especulações de mortes de heróis ou easter eggs) encontra problemas com a obviedade: pessoas morrem (Chadwick Boseman), pessoas envelhecem (Robert Downey Jr, Scarlett Johansson), além de não contribuir, como já vimos, para uma diversidade de gostos ou experiências da escola cinematográfica, basta ver as limitações dos irmãos Russo sem o CGI, pois fica claro que os filmes individuais de heróis são artisticamente muito melhores que Os Vingadores.  A força dos personagens da Marvel no cinema hodierno não é por conta de como o mercado a exibe, mas pela força quase mitológica de seus personagens que eram e são lidos e pela grandeza de atores como os citados acima.

Isso tudo exposto, chegamos à conexão dialética entre a infantilização do gosto e dos filmes em uma retroalimentação que pode e deve exaurir esse modelo. Senão, vejamos. O Homem-Aranha de 2002, escrito pelo autor de Jurassic Park e Missão Impossível (outro exemplo de série até a artrite parar Tom Cruise) obedeceu aos cânones da história clássica de Stan Lee e Steve Ditko. E tem pontos interessantes. Tio Bem Parker é um idoso que sustenta a esposa e um sobrinho. Suas primeiras falas são relativas ao tema do emprego na velhice, pois o que tinha como aposentadoria privada não iria sustentar mais a família. A família Parker tem uma vizinha que é vítima de maus tratos por parte do padrasto alcoólatra. Em outra frente, o empresário Norman Osborn é repaginado para o cinema. Ele é um empresário que não é mais dono da empresa que fundou. Ele é pressionado por um representante do complexo militar americano a não respeitar o tempo que a ciência exige pois pode perder o contrato com o Estado para um concorrente (vemos depois que já estava tudo acertado entre o general e o outro empresário). Diante da perda iminente, o cientista e empresário Osborn ataca de Prevent Senior e rompe toda a ética científica possível. Seu filho, por sua vez, não conseguiu se ajustar em nenhuma escola privada americana e se sente acolhido na rede pública de ensino. J.J. Jameson é a profética encarnação de sites ou blogs atuais: notícias falsas, exageradas, para que haja visualização. Peter Parker vira um fotógrafo sem vínculo trabalhista e não é dito que isso é bom para o espírito empreendedor, já que com a morte do tio ele virou arrimo de família. Esse ponto é importante. Tia May é – como nos quadrinhos clássicos – uma senhora de cabelos brancos que dá e recebe um amor ao sobrinho. O Duende Verde – a enésima encarnação de Dr. Jekill e Mr. Hyde – antecipa em anos (coisa que os youtubbers batedores de carteira não viram) o complexo Venom (2018) interpretado por Tom Hardy, ambos vivendo o dilema paulino (“Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim.”). Essa síntese é para mostrar o abismo de abordagens em menos de duas décadas! A oportunista Disney, em conformidade com o mercado identitário criado pela intelectualidade americana criou um universo paralelo. Tia May é encarnada pela ainda estonteante Marisa Tomei (as feministas não falaram do etarismo feminino), a MJ foi encarnada pela mestiça ex-estrela da Disney que acha que interpretar uma adolescente é ter uma eterna cara de arrogância de quem sofre de constipação. Tem um gordinho que tem quer o ponto de humor que fica com a loirinha nerd (bem verossímel). A ciência, estudada e cultivada pelo pré-adolescente Parker agora vem pronta do empresário do bem, nem uniforme rasgado ou para lavar tem mais (falo do primeiro filme da nova trilogia) e, para ter um bom mercado na Índia, Flash Thompson virou um filho da Khan Academy.

A terceira parte da trilogia trouxe ventos novos como sofrimento, perdão e maturidade porque teve que ir na fonte da tradição da própria mitologia para que se fizesse uma frente política, inclusive, com um icônico vilão.  Dito isso, a pergunta que não quer calar é: jovens, vocês terão ano que vem um grande poder. Irão assumir  também a grande responsabilidade?


terça-feira, 21 de dezembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 12 - O SEGUNDO TURNO NO CHILE (2021)

Encontro Bachelet e Boric 

Nova ode elementar

 

A memória do xará Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto (1904-1973)

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Há pouco mais de algumas horas do resultado do último turno da eleição presidencial no Chile, parece-me que maior parte das hipóteses interpretativas sobre a natureza desse segundo turno agora com os dados concretos nos permitem discernir e tirar conclusões.

Uma das coisas mais superficiais era afirmar que o eleitorado chileno estava polarizado entre dois extremos, e que a votação ficaria entre dois extremos: a extrema direita, na pessoa de José Antonio Kast, e a extrema esquerda (ou como a imprensa malsã tem chamado de esquerdista), representada por Gabriel Boric. Esta interpretação que já era uma lenda entre nós a bastante tempo graças as análises de Alberto Aggio[2] e que não houve a lucidez necessária entre nós (também na imprensa) para subscrevê-la. Mas, há motivos para que isso não se de em todos os lados.

Pode-se argumentar que, na realidade, a eleição era disputada entre um personagem da extrema direita que não precisava desesperadamente buscar votos do Centro e um jovem candidato de esquerda que precisa dialogar com eles, mas também de fincar suas raízes e compromissos com a tradição da Centro-Esquerda no Chile. Kast, por sua vez, conseguiu com alguma facilidade, obter os votos de grande parte do resto da direita - que pode ser quase tão radical quanto ele - e do candidato que rejeitava a ambos, Franco Parisi, que ficou em terceiro lugar com 13% dos votos, e vivendo fora do Chile, sem nenhum compromisso com moderação e Sebastián Sichel que ficou em quarto lugar com também quase 13% dos votos.

Boric sabia que seus eleitores radicais podem vê-lo como a única opção de voto, embora ele também soubesse que não venceria se não obtivesse a maioria dos votos do Centro (inclusa aqui a Centro-Esquerda) e de toda a Esquerda e de alguns eleitores que se abstiveram no primeiro turno. Importa reter que aconteceu um fenômeno nova na era democrática moderna  no Chile, a saber, de que os dois principais candidatos do primeiro turno mal ultrapassaram a metade dos votos. Em outras palavras, metade dos votos expressos naquela ocasião, e mais uma parte das abstenções, foram parcialmente encontrados ontem. Dito de outra forma: havia um concurso para o Centro, e o Boric fez o melhor aceno para ele do que Kast.


Boric com a Presidente da Democracia Cristã no Chile

Como ele fez isso? Boric é um filho ou neto da Concertación. Como se sabe, esta é a aliança que governou o Chile de 1990 a 2010, e com modificações, novamente entre 2014 e 2018. É uma coalizão que, entre suas diferentes versões e lideranças, pôs em prática um programa de Centro-Esquerda, sem cair em nenhuma conversa fiada de esquerdismo daquele atribuído a Boric agora.

Nunca deu azo a cultura autoritária, não fechou o país, nem se alinhou a nenhum país com uma política que coloca em dúvida a democracia. Existe uma disjuntiva difícil analiticamente que é a responsabilidade da Concertación aos impasses econômico, político e social que levou aos protestos massivos de 2019[3]. Talvez sim, talvez não, mas a verdade é que durante um quarto de século no poder, a Concertación constatou-se de fato o quão é limitado o espaço no Chile para recorrer a políticas públicas para atender os sentimentos de sua sociedade.


Professor Alberto Aggio

Embora sua carreira política tenha começado com os protestos estudantis de 2011, e muitos dos ex-dirigentes ou apoiadores da Concertación não o tenham apoiado no primeiro momento, Boric vem de lá. Grande parte da esquerda chilena sabe de uma forma ou de outra, que os limites da mudança no Chile são reais e antigos: eles datam de pelo menos no início dos anos 1970 e da memória da triste experiência de Salvador Allende (1908-1973). Boric se dissociou do esquerdismo em todos os momentos, e personalidades mais próximas da Concertación começaram a se aproximar. Tanto o ex-presidente Ricardo Lagos como a ex-presidente Michelle Bachelet, não demoraram a apoiar Boric no segundo turno.

Por isso é espantoso que a melhor interpretação da eleição chilena expressa por Alberto Aggio[4] ao contradizer a análise da quase totalidade dos observadores do nosso país e quiçá de estrangeiros não tenha tido se quer o justo debate de ideias. Também contrasta com a visão de uma nova maré na região, impulsionada por movimentos sociais e reações à desigualdade ausentes de política. Mas, seja como for, o Chile mais uma vez pode enviar, um sinal do caminho da nova ode elementar que se pode cantar lá, cá e no planeta.

 

20 de dezembro de 2021





[1] Professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional.

[2] https://podcast.unesp.br/15619/mundo-e-politica-mudanca-na-constituicao-e-avanco-extraordinario-na-democracia-do-chile-avalia-historiador-da-unesp

[3]  https://podcast.unesp.br/14516/mundo-e-politica-contradicoes-sociais-formam-base-da-onda-de-protestos-no-chile-explica-historiador-da-unesp

[4] https://podcast.unesp.br/16545/mundo-e-politica-vitoria-de-gabriel-boric-abre-nova-fase-democratica-no-chile-explica-professor-de-historia-da-unesp

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - PARA QUE SERVE UM VICE-PRESIDENTE?


Era uma vez Mandela

Por Vagner Gomes de Souza

 

Que considerava que a política se fazia num campo de luta com inimigo-adversários. Fez o CNA se armar de armas ao contrário de se armar de ideias e programa, pois achava que o Apartheid cairia pela luta armada assim como, erroneamente, desejou um mestiço dirigente da ALN brasileira. Afinal, a Ditadura Militar brasileira seria derrotada politicamente por via de uma longa transição política.

A desumanidade do Apartheid na África do Sul fez muitos justificarem esse radicalismo. Sua consolidação oficial ocorreu em 1948 quando o Partido Nacional chegava ao poder. No Brasil, o “partido de Minervino de Oliveira”, teve seus parlamentares eleitos com o mandato cassado por simples acusação de filiação partidária. Também, os brasileiros tentaram trilhar pelo radicalismo como se a política de União Nacional deveria ser abandonada. Foram posturas de sectarismo e ressentimento com forças políticas próximas.

A luta política deve sempre respeitar a mobilização das massas que não se orientam pelos “quadrantes” avaliativos da militância de vanguarda. Pelo contrário, mobilização das massas só ocorre pela via da sinalização das lideranças políticas ao encontro da UNIDADE daqueles que seriam de posições equivalentes apesar de distantes em disputas eleitorais. A gravidade política da conjuntura explicaria essa postura para aqueles que fazem parte do “povão”.

Mandela demorou a perceber esse aprendizado. Preso pela primeira vez em 1956. Foi na prisão de 1960 que se abriu um processo para a sua condenação a prisão perpétua. Muitos apontariam que só a destruição do regime racista lhe devolveria a liberdade outra vez. Pelo contrário, foi o “giro” político pelo diálogo que deu um “furo” nesse sistema de violência e desumanidade. Os 27 anos de cárcere na Ilha de Robben engrandeceram sua liderança em favor da unidade e diálogo. Imagine que ele estudou o Africâner, língua imposta pelos dominadores brancos e racistas, para melhorar nas negociações que passou a conduzir em 1989[1].

Não podemos deixar de mencionar a memória do último presidente soviético, Mikhail Gorbachev, ao relatar em 2013 que Mandela reconhecia a Perestroika como um fator decisivo nessas negociações no cenário da conjuntura internacional[2]. Sugerimos que há também uma aproximação “Sul-Sul” nessa correlação de forças a espera de uma pesquisa uma vez que 1988 marcou o Plebiscito que derrotou no voto a Ditadura Militar chilena (aproximando Democracia Cristã, Socialistas e Comunistas entre outras forças plurais) e a promulgação da Carta Constitucional no Brasil.

Em 11 de fevereiro de 1990, o presidente da África do Sul Frederik de Klerk, do Partido Nacional, liberta Mandela num processo que abriu a transição para uma nova Constituição Sul Africana. A maior liderança da luta contra o Apartheid atravessa o portão que o aprisionava e conclama o país a reconciliação nacional.  Ao ponto de se destacar essa passagem de seu discurso:

“Tenho lutado contra a dominação branca e tenho lutado contra a dominação negra. Defendo o ideal de uma sociedade livre e democrática onde as pessoas vivam em harmonia, com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual desejo viver e atingir. Mas se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer”

Entretanto, somente em 1994 Mandela foi eleito para presidir a África do Sul numa surpreendente escolha do Ex-Presidente de Klerk como companheiro de chapa como Vice-Presidente. Assim, marcava-se que a reconciliação iria para além das palavras e assumiria um caminho de transição política. Essa é uma lição brasileira presente na composição da chapa de oposição no Colégio Eleitoral de 1985 e os bons ensinamentos políticos sempre reaparecem em nosso país em nome da reconstrução nacional.



[1] Sugerimos a leitura de Venter, Sahm – Cartas da Prisão de Nelson Mandela. Editora Todavia, São Paulo, 2018. Leitura obrigatória para a militância democrática uma vez que é muito conhecida pelos ativistas do movimento negro brasileiro.

domingo, 19 de dezembro de 2021

TEXTOS DA JUVENTUDE


 

O DEBATE SOBRE O LIVRO Lindolfo Hill: um outro olhar para a esquerda

Por Micaela Luz

 

Um dos temas caros para a política brasileira no cenário que nos encontramos é aquilo que o pensador florentino Maquiavel escreveu na sua mais célebre obra, O Príncipe, quanto à necessidade de uma boa governança a partir da aliança entre a virtú e a fortuna. De maneira bastante superficial, destacamos que a virtú seria os posicionamentos, ações, cálculos do ator político e a fortuna, bem, a fortuna seria aquilo que não depende do ator, mas que com uma virtú bem afinada seria capaz de trazer a má sorte em um cenário benfazejo. Os homens e mulheres não criam a fortuna, mas podem ser capaz de dominá-la. Quando apontamos que esse tema nos é inerente é por conta da necessidade urgente de uma virtú potente que alie um programa político e econômico para o país – que vive uma derruição de suas instituições republicanas e democráticas – a partir de um programa voltado ao futuro. Ao que parece, parte da sociedade que se opõe ao atual estado das coisas prefere a face de Jano voltada para um passado, dias de um futuro esquecido pela juventude que não a viveu. No caso do nosso folclore, precisamos fugir da tentação de sermos um Curupira

Tendo isso em vista, se é do passado que se pode extrair algo para um ano de difícil eleição – que terá uma mudança no plano federal e estadual, tanto no executivo quanto no legislativo (ponto central que muitos esquecem), é bom tirar da cultura política brasileira algum ensinamento para o olhar quanto ao futuro. Dessa forma, resgatar as trajetórias ziguezagueantes do PCB enquanto partido político mais longevo da república e com presença ativa na cultura brasileira do século passado pode ser uma lâmpada para nossos pés caminharem.

O PCB, fundado em 1922, marcha rumo ao seu centenário. Juntamente a isso, a biografia de uma figura ilustre para o partido é lançada. Lindolfo Hill tem sua trajetória imortalizada por Alexandre Müller Hill no livro Lindolfo Hill: um outro olhar para a esquerda, livro esse que foi discutido no encontro online que contou com a participação do autor e de professores, jovens do bairro de Campo Grande na Zona Oeste do Rio de Janeiro, além de remotamente, várias pessoas de diferentes idades tantoto em Minas Gerais quanto no Rio de Janeiro. A proposta do encontro teve como norte discutir o livro e também o Brasil como anunciou o mediador Vagner Gomes.


Inicialmente foi apresentada pelo autor uma pequena síntese de quem foi Lindolfo Hill e como seu pensamento e sua ação dialogariam com o contexto atual do país. No livro, como comentado pelo professor Ricardo Marinho, foi trazida a questão das perseguições, das prisões e das torturas que o biografado sofreu pelo Estado brasileiro, o que justifica o medo, ou melhor, o receio, de muitos familiares de Hill a se esconderem e não participarem de relatos para  o livro. O professor ainda divaga sobre os desafios enfrentados pela democracia atual, de modo a que ela se aplique verdadeiramente no país, visto que, em um período da trajetória de Hill, a cassação dos políticos comunistas eleitos democraticamente na década de 1940 acabava por revogar os papéis políticos desses indivíduos.

O posicionamento de Lindolfo acerca da eleição de Juscelino Kubitschek em 1955, trazido em forma de pergunta, é ainda uma incógnita, de certa forma, pois Hill não teve apenas seus direitos políticos cassados, mas também muitos documentos que revelariam mais de seus posicionamentos e a ação política foram ou destruídos ou escondidos, o que dificulta muito uma funda investigação de seu papel e posições no partido e fora dele.

Em síntese, o encontro se fez de grande importância para a abertura de uma discussão, mas, principalmente, para a implantação de uma pesquisa mais aprofundada acerca da personagem central do debate. Ademais, como afirmado por Ricardo Marinho, ainda há muito a ser descoberto sobre Lindolfo Hill, sobre sua trajetória e posicionamentos, assim como de outros quadros pecebistas. Ainda há, infelizmente, muitas limitações de informações devido, sobretudo, à cassação supracitada, dificultando um total entendimento dessa tão importante figura para o PCB e para Juiz de Fora, mas essa tarefa cabe a nós, evoé, jovens à vista.

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA Número 1


 

Paolo Sorrentino Sem a Renúncia da Casa

Por Vagner Gomes de Souza

"É o que digo, se for... Existe é homem humano. Travessia"

Guimarães Rosa - Grande Sertão Veredas

 

Uma semana de estreia na NETFLIX de mais um filme do cineasta italiano Paolo Sorrentino (ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro por Grande Beleza em 2014). A Mão de Deus (2021) é o desafio de um cineasta em atrair a juventude para o gosto pela sétima arte. A produção cinematográfica de um italiano atrair uma nova geração pela via da globalização do streeming é uma hipótese desde que o roteiro trabalhe muito bem os sentimentos humanos como a memória.

Faz parte de esse desafio pensar sobre os impactos da Pandemia da COVID19 nas relações humanas e suas sensibilidades quanto à dramaticidade da dor. Em primeiro lugar, o Gramsci, que escrevia em Il grido del popolo (9 de fevereiro de 1918), poderia ser convocado por conta do tema agregador da família. “A família é, essencialmente, um organismo moral. É o primeiro núcleo social que supera o indivíduo, que impõe ao indivíduo obrigações e responsabilidades.”[1] As lembranças do personagem principal do filme partem desse núcleo nos anos 80 do século passado, o que faz muitos críticos se limitarem a ver uma influência de Frederico Fellini (1920 – 1993) por conta do filme Amarcord (1973).

Entretanto, há um diálogo memorialístico com outros cineastas italiano que pedirá ao leitor um pouco de curiosidade e responsabilidade para se tornar mais um familiar desse mundo fascinante do Cinema. Digamos que A Mão de Deus também celebra a memória de Ettore Scola (1931 – 2016) que hoje seria patrulhado pelos “cancelamentos” das redes sociais por conta de seu filme de estreia (Fala-se de mulheres, 1964). Mas Scola muito bem visitava a memória do passado em seus personagens para espelhar um momento histórico. Fez uma produção cinematográfica da Casa Comum que muitos achavam ser de “vermelhos”, porém eram os humanos valores encantando muitos jovens nos anos 80/90 ao assistir seus filmes e formar uma geração.

Paolo Sorrentino se globaliza pela NETFLIX sem que renuncie a essa Casa Comum. Está muito mais de volta ao lar como se fosse um herói da Marvel a dar saltos e mais saltos em referências cinematográficas do cinema italiano para a alegria dos “Eremildos” de plantão. Se as teias da memória estariam em Nápoles, não podemos deixar sem menção a Nova York do “aracnídeo” David  Aaronson que também voltou ao seu lar no Brooklyn ao som de “Yesteday”. O diretor faz referência a Era uma vez na América constante pela fita em VHS, o que reforça ainda mais sua pluralidade familiar nessa Casa de cineastas nessa homenagem a Sergio Leone (1929 – 1989).


O personagem/cineasta Antonio Capuano praticamente berra ao jovem Fabietto Schisa que há muito que se inspirar na realidade de sua cidade. Há um interessante debate se a dor justificaria a fuga da realidade. Não se poderia fazer da fantasia uma fuga, mas a manifestação da interpretação em outras vias dessa realidade. Como essa pandemia que fez muitos ficarem sem volta para casa. A juventude é convidada a persistir no reencontro de caminhos que mantenham a memória desses tempos sombrios. Portanto, o roteiro transita muito bem da comédia para um drama sentimental. E forte fica a frase que ecoa: “São tempos de se pensar no futuro!”

Consequentemente, Giuseppe Tornatore (ainda em atividade) é como se fosse um “irmão” mais velho nesse lar de interpretação da memória no cinema que se fez presente na Itália por conta da “Questão Meridional” assim como a música dos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil povoam as lembranças dos anos 80 de uma geração. Um compromisso histórico entre as forças políticas através da música brasileira poderia estar em paralelo a esse ensaio de A Mão de Deus para o cinema italiano nesses tempos pós Ennio Morricone (autor de uma brilhante parceria com Tornatore).


Entretanto, não é um cinema que mais sensibiliza o jovem Schisa, mas o Estádio de futebol.  Nada como a passagem de 1984 a 1991 de Diego Maradona (1960 – 2020) no Napoli para explicar a mudança do nome do Estádio de São Paulo em dezembro de 2020. Afinal, a referência ao gol de mão na vitória da Argentina na Copa de 1986 (qual brasileiro torceu contra a Argentina nessa final!?!) é uma ponte do título para esse Estádio. “Foi uma vitória contra anos de exploração” diria o tio Alfredo do filme, provavelmente leitor de Eduardo Galeano, hoje nos grupos de Zap das famílias.

Por fim, o que poderemos dizer sobre A Mão de Deus (2021) para a juventude que enche os cinemas para assistir Homem-aranha Sem Volta para a Casa? As linhas acima já seriam um bom desafio para que se pense no futuro. Esse se faz com respeito a memória de uma tradição que fez o mundo melhorar com os valores humanos vinculados a República e a Democracia. A memória das vítimas da COVID19 exige dos jovens um 2022 que se faça com autocrítica em relação a 2018. Todavia, 2026 está logo ali.

[1] Gramsci, Antonio. Escritos Políticos. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2004, p. 141.