sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 006 - CRISES DA DEMOCRACIA

Desemperrando as Democracias

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Que as democracias na América vinham sendo emperradas podia parecer ser uma lenda a poucos anos atrás. Nos últimos tempos não mais. Os motivos desse estado de coisas são bem conhecidos e os eventos também. Mas é conveniente revisar rapidamente três histórias e suas raízes.

Brasil, Peru e El Salvador são as experiências icônicas da conjuntura. Em 8 de janeiro próximo, uma multidão invadiu o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palacio do Planalto da Presidência em Brasília, protestando contra uma fake news de fraude eleitoral contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, sem a menor evidência correspondente. Eles causaram estragos, fizeram com que imagens vergonhosas - análogas a do ataque ao Capitólio dos Estados Unidos da América em 6 de janeiro de 2021 - fossem transmitidas em todo o mundo e fizeram com que o novo governo recorresse as prisões, investigações e atos simbólicos em defesa da democracia, mostrando sua robustez. Não tanto pelos manifestantes, mas pelo grande número de brasileiros que, de fato, acreditam nessas teorias da conspiração sobre o resultado das eleições. O evento vai além da ideia dominante de polarização, que pode até existir em outros países ou mesmo no Brasil em outros momentos.

O exemplo do Peru é diferente. A disputa lá não foi sobre os resultados eleitorais, mas em relação ao conjunto de instituições existentes no país. Certamente, as eleições de 2021, onde Pedro Castillo foi eleito no segundo turno por pequena diferença, foram questionadas por seus adversários. E o Congresso peruano, poderoso devido ao sistema híbrido que existe no país, passou um ano e meio dificultando a vida de Castillo, tentando destituí-lo em diversas ocasiões, acusando-o de corrupção e incompetência.


O país de Mariátegui não enfrentava um simples conflito de poderes. Por trás do confronto havia - e hoje mais do que nunca - divisões de classes, regionais e étnicas. Apesar do bom desempenho econômico insustentável deles no conjunto da América desde o ano 2000, subsiste uma reivindicação ancestral da maioria das peruanas e peruanos contra exclusões multifacetadas. Os protestos que começaram no sul do país após a destituição de Castillo e se estenderam até Lima foram violentamente reprimidos - com mais de 50 mortos - e às vezes parecem assumir um caráter quase insurrecional. Os manifestantes exigem a renúncia da Presidente, que substituiu Castillo, eleições imediatas em vez de 2026 - como anunciou Boluarte - e uma Assembleia Constituinte.

Ao contrário do Brasil, onde o andamento econômico tem sido mais difícil, e sem que se culpe a democracia representativa pelos graves atrasos sociais, no Peru esperava-se uma prosperidade graças à democracia, ou pelo menos uma profunda redistribuição. O sentimento também surgiu em outros países: dezenas de milhões de Americanos pedem à sua democracia - nova ou antiga - bem-estar, saúde, educação, moradia, preços justos e melhores empregos. A rigor, a democracia serve para retirar legalmente os governos que não entregam bons resultados e, quando possível, para distribuir de forma mais justa e sustentáveis o crescimento econômico, quando ele existir. Mas isso aconteceu nas velhas democracias após intermináveis lutas, reformas, guerras, eleições e crises: não foi feito de um dia para o outro. As peruanas e peruanos sentem a necessidade premente em exigir mais de sua democracia e isso é bom quando conduzido democraticamente, mas sempre tendo a clareza de que por ela esse intento levará tempo.


Em El Salvador, a democracia deve muito aos seus cidadãos. Ao final de décadas de autoritarismos, violências, pobreza e exílio entre outras intempéries, os acordos de paz de 1992 abriram caminho para um sistema bipartidário de democracia representativa que poderia ter mudado as entranhas do país. As partes em guerra – a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional e as elites salvadorenhas, com o Exército, empresários e partidos políticos - deram uma grande lição de sabedoria e habilidade. Mas tudo o que se seguiu foi para minar essas conquistas. Os quase 30 anos seguintes foram de destruição. A corrupção atingiu extremos e as violências das gangues fez o reembarque no caminho autoritário supostamente apagado.

Nayib Bukele, após eleito em 2019, instalou outra vez a mão autoritária no país. Ao obter resultados contra a violência, o povo o aplaude de acordo com as pesquisas de popularidade, e quase ninguém defende os acordos de paz de Chapultepec e/ou a democracia hoje precária que eles deram origem em outrora. Ele é o ditador mais legal do mundo, um dos líderes mais populares do mundo, e está prestes a ser reeleito - até agora ilegalmente - por ampla margem. Quase toda a sociedade parece aprovar a regressão autoritária, acreditando que isso resolverá seus problemas.

Por enquanto, os partidos, movimentos e lideranças que contribuíram para a instalação de regimes democráticos na América - exceto as ditaduras de Cuba, Nicarágua e Venezuela - tem mantido o ideal democrático vivo, apesar de todas as suas deficiências como ficou claro no encontro da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, as instituições construídas ao longo de várias décadas são preferíveis a qualquer ditadura, mesmo que ainda não proporcionem o tão desejado e digno bem-estar. Novos eventos surgem na Argentina - pelo crescente conflito entre Executivo e Judiciário - e no México, ante a investida do Executivo contra a autoridade eleitoral. A América não é a Europa, onde há tentações autoritárias em vários países - e em alguns governos, como o da Hungria - tem sido rejeitado, até agora, pelos eleitorados sensatos. Mas desemperrar as democracias é o caminho a ser seguido planetariamente.

 

26 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 16 - A PÁLIDA CEGUEIRA DA SERPENTE

O Pálido Olho do Horizonte

Pablo Spinelli[1]

Dedicado à lembrança dos trinta anos das chacinas da Candelária e de Vigário Geral – o ovo da serpente carioca.

Os acontecimentos em Brasília no dia 8 desse mês abre um leque de questões que o espaço não permite, mas ao vincular com o filme em questão, podemos abrir uma seara importante seja como análise do passado, seja como proposta de intervenção no porvir. Qual a faixa etária dos manifestantes de 2023? Haveria uma relação com uma parte da sociedade que aos 25, 30 anos participou dos movimentos de 2013? E os cinquentões, será que colocaram o verde e o amarelo nos rostos enquanto “cara-pintadas”, movimento que trouxe à luz uma liderança da UNE na época? E os militares, tanto os do Exército, como os policiais, que tipo de ensino há nas academias? O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do Governo Bolsonaro foi alinhado ao Ministro Sílvio Frota, um dos líderes da “linha-dura” do exército que foi enquadrado pelo então Presidente Geisel na transição da “Ditadura Escancarada” para a “Ditadura Derrotada” iniciada após o falso suicídio do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto nas instalações do II Exército, em São Paulo, sendo que este nunca defendeu a luta armada como Marighella; mas a luta pela política, com a defesa pela Frente Democrática.

Essas perguntas sobre a cultura política na formação do seio militar são importantes porque não houve em nenhum momento desde a redemocratização o diálogo para uma revisão acerca de termos e conceitos da Guerra Fria, como por exemplo, a permanência da Doutrina de Segurança Nacional que tinha (e tem) como princípio a busca pelo inimigo interno, anacronismos conceituais que perpassam gerações de soldados a futuros generais e coronéis da AMAN, dentre outras instituições. Além disso, as irrupções da massa nas ruas sem a política – ou com a sua carnavalização com adesão às paixões extra-institucionais – desde os anos 1990 em diante não sofreram uma contribuição crítica nas escolas, nos sindicatos, nos partidos políticos ou pela mídia tradicional. Com as mudanças estruturais – e a estrutura sempre fala -, houve um brado, um grito de caráter individualista, ególatra, iconoclasta (a destruição do patrimônio cultural em Brasília com a visualização nas redes sociais sem se preocupar com o amanhã demonstram o paroxismo desse brado) no último dia 8.

O filme O Pálido Olho Azul, que estreou há dias na Netflix tangencia nossas perguntas. O filme começa com um enforcamento à Herzog – pernas arqueadas que demonstram que foi um homicídio – cujo corpo sofreu uma profanação que será investigada. O detalhe é que o morto era um cadete das boas famílias americanas na famosa academia militar de West Point.

A pedido do oficial Hitchcock (sim, bela homenagem em um filme de suspense com muitas loiras), a investigação caberá ao bem afamado  Augustus Landor (que tem a religião no nome), interpretado pela excelência costumeira de Christian Bale, que carrega em cada ruga a tristeza da tragédia familiar do personagem. Em um cenário de cores frias e paixões e sangues quentes, com uma fotografia de muitos, muitos azuis, o investigador Landor tem o apoio do jovem cadete Edgar Allan Poe (aquele que será o autor americano mais conhecido do mundo gótico, sombrio, romântico e que é o patrono da escola de Wandinha), vivido com competência e sensibilidade por Harry Melling, “primo” de Harry Potter.

A narrativa é de um filme lento, mas não entediante, que acaba por envolver o espectador mais na relação entre o investigador e o jovem poeta do que na resolução do crime em si. Como de hábito, após um cadáver haverá outros. O isolamento do lugar com um serial killer à solta nos remete ao icônico O Nome da Rosa (1986). Cumpre chamar a atenção para o binômio que Landor enfrenta e discute: o fanatismo religioso – instrumentalizado para interesses egoístas – e o militarismo (similar às críticas de Stanley Kubrick em alguns de seus filmes). Da boca de Landor/Bale surge a pergunta: “que tipo de homens vocês (militares) estão formando aqui?”. Levando-se em conta a faixa etária dos cadetes e que o filme se passa em 1830, aqueles jovens foram formados para serem os generais no mais sangrento conflito estadunidense: a Guerra de Secessão (1861-1865). Essa pergunta também está presente no filme A Fita Branca (2009), assim como está ecoando na nossa conjuntura. O que foi formado até aqui? O que será formado adiante? Seria o caso de parafrasear o corvo do poema de  Allan Poe e diante do ocorrido dizer: “Nunca mais! Nunca Mais!”. Não adianta um manancial de boas intenções sem a práxis democrática universalista. Do contrário, tudo será pálido e cinzento, como no final do filme.

Pálido Olho Azul (2022)- disponível: Netflix

Direção: Scott Cooper

Roteiro Scott Cooper

Elenco: Christian BaleHarry MellingGillian Anderson

 




[1] Professor de História da Rede Privada de Educação Básica do Rio de Janeiro.

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 15 - CINEMA É HORIZONTE

Contatos Imediatos com o Cinema

Gina Lollobrigida, PRESENTE!

Por  Vagner Gomes de Souza

 

Entrar num cinema é uma diversão cada vez menos associada as camadas populares no aguardo da “Terra Prometida” da picanha e cerveja. As salas de cinema saíram da convivência com as ruas das grandes metrópoles e foram inseridas nos Shoppings Centers como já denunciava uma das temporadas de Stranger Things. Além disso, o avanço tecnológico do audiovisual reduziu as intervenções do homem como se um filme fosse uma obra de arte “pasteurizada” na inteligência artificial. Por fim, o filme foi “uberizado” pelas redes de streeming em ascensão nesses tempos de pandemia. Mais dinheiro, mais tecnologia, mais mercado, morte dos empregos gerados pelo ir ao cineminha. Na residência o telespectador fica isolado do espetáculo do cinema e pode fraturar um filme para cuidar seus outros afazeres. Ganha espaço as séries em episódios de menos de 40 minutos e um filme se fragmenta mais ainda na mente do público. As cenas de ação ganham mais velocidade e menos tempo é dado para longos diálogos ou longos dramas. Não se espera ouvir os personagens ou destrinchar seus sentimentos, mas simplesmente compartilhar um pouco de adrenalina com menos reflexão. Aparentemente, o grande cinema estaria morto pelos novos tempos, que são sombrios, pois devemos refletir mais e nos reeducar a ouvir os outros.

Então, eis que o diretor de Indiana Jones (Steven Spielberg) nos faz o convite para viver a  emoção do cinema numa trajetória de uma família Os Fabelmans deu título ao filme que se apresenta como a frente democrática na resistência as derivas autoritárias que esse mundo sem cinema está fazendo. O diretor não aceitou fazer um lançamento nos streemings, pois deseja que o público vá ao local aonde ele teve seu primeiro contato com a sétima arte. Antes da exibição, nos lembrando de Alfred Hitchcok que aparecia em seus filmes, Spielberg faz um agradecimento ao público que saiu de sua residência para viver um momento de sonho e emoção no cinema. O filme começa em 1952, tempos em que o macarthismo (caça aos comunistas norte-americanos como atividade contra a pátria) desestruturava a vida de muitos artistas e intelectuais que tinham se aproximado da União Soviética por causa da luta antifascista[1].

Os pais levam Sammy a sua estreia ao cinema para o sugestivo filme “O Maior Espetáculo da Terra” de Cecil B. DeMille. A reação do garoto ficou entre o susto, mas o desejo de buscar entender aquele processo como se fosse a metodologia de ensino do incentivo pela curiosidade. Da infância até a fase jovem adulta ele passa por esse processo de luta para buscar adquirir um entendimento do que lhe está ao seu redor o que lhe fez descobrir segredos na própria família. Os olhos de Sammy se abriram para uma tradução da realidade naquilo que poderia ser somente uma expressão artística. Arte, técnica e ciência são os ingredientes que o personagem principal agrega ao “modus operandi” do filme. Aqueles que assistiam ao drama familiar ou autobiográfico do cineasta na verdade estavam sendo apresentados ao horizonte de um mundo em que o Sonho Americano tinha suas contradições. Por exemplo, nos alertar para a força do antissemitismo na Califórnia dos anos 60 ainda antes do Governo do Cowboy Ronald Reagan.

Consequentemente, os personagens não são apresentados como  paradigmas da essência tóxica, mas se abrem para que o espectador busque compreender suas motivações. Está em aberto muito do que se assiste para que se pense muito. Até que nos aproximamos aos momentos da belíssima interpretação de David Lynch que merece destaque por muito bem caracterizar um John Ford entusiasmado com o olhar para frente. Spielberg realiza uma justa homenagem ao diretor de Rastros de Ódio (1956) e nos brinda com Lynch magnífico sob a sua direção. Enfim, tudo como o bom velho cinema nos ensina a ser para sempre como espaço democrático de convivência.


[1] Há inúmeros filmes em Hollywood sobre esse período, sugerimos  Trumbo – Lista Negra direção de Jay Roach (2015).

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 005 - LIÇÕES SOBRE FRENTE DEMOCRÁTICA

Visão sobre os graves incidentes de Brasília

 

Para Frida Pimentel Gomes de Souza para saber um pouco sobre Filipinas e Frente Democrática.

Por Vagner Gomes de Souza

 

Imaginemos uma família de filipinos acompanhando os graves incidentes de Brasília no dia 8 de janeiro e seus desdobramentos. A longínqua Filipinas teve um governo centralizador de 21 anos de Ferdinand Marcos que foi eleito em 1964 (ano do Golpe Militar do Brasil). As sucessivas reeleições foram questionadas como fraudulentas e feitas por uma administração corrupta desse quase desconhecido país que foi colonizado pelos hispânicos. Seu processo de independência, muito diferente do brasileiro, foi “abortado” pelo Tratado de Paris em que passou a ser um "protetorado" dos Estados Unidos. As forças do Eixo invadiram esse país na Segunda Guerra Mundial agravando sua desigualdade social. A vitória das forças coligadas contra o Nazifascismo garantiu que ela se tornasse independente em 1945. A Segunda República das Filipinas é uma dádiva da luta antifascista o que não impediu a triste política autoritária que vai durar de 1965 até 1986.

Sem falar das extravagâncias da esposa do Presidente, Imelda Marcos, Aos 18 anos de idade, Imelda Marcos venceu um concurso de beleza local, conquistando o título de "Rosa de Tacloban". Depois venceu concurso semelhante, conquistando o título de "Miss Leyte". Em 1950, conquistou o título de "Musa de Manila", uma espécie de prêmio de consolação que ganhou do prefeito de Manila, após ter sido derrotada no concurso para eleger a Miss Manila. Imelda teria contestado o resultado desse último concurso, alegando que sua derrota não teria passado de "marmelada". Em 1954, ela conheceu o então deputado Ferdinando Marcos. O noivado foi brevíssimo: 11 dias depois eles se casaram na Catedral de Manila. Para manter seu estilo de vida extravagante, Imelda desviou milhões de dólares dos cofres públicos para comprar joias, roupas, casas e apartamentos em diversas partes do mundo. Costumava fazer compras em lojas caras de Nova York e de cidades da Europa. Ela comprou diversas propriedades em Manhattan, entre as quais os edifícios Crown e Herald Centre.

Nossa família fictícia de filipinos poderia muito opinar sobre os descaminhos dos laços familiares na política uma vez que Imelda Marcos chegou a ser eleita Deputada após o retorno a Filipinas e dois filhos do casal seguiram na carreira política ao ponto do atual Presidente ser um Marco (acrescentemos que a Vice é filha do autoritário Rodrigo Duterte). Os traços do patriarcado não se acabam por decreto ou outros atalhos nos territórios e lugares de fala.


Em 1986, Corazón Aquino tomou posse na Presidência fazendo um "L"

Essa seria a distante possibilidade de visão distante que nos recorda o quanto não se pode distanciar das lições da vitoriosa  Frente Democrática no segundo turno no Brasil. Corazon Aquino não foi uma oposicionista feminista, mas a esposa de um líder assassinado que chegou a ter um filho na Presidência. Os sucessores Fidel Ramos e seu próprio filho não impediram que uma política reacionária de Duterte/Marcos se instalasse pela via do voto. Recordemos que nossa Frente foi vitoriosa por uma histórica pequena margem de votos o que nos ensina a ser cautelosos nas posturas de governança e nas falas em todos seus lugares. Uma vez que os fantasmas do populismo reacionário são um espectro muito real a rondar as ações antipolíticas e antidemocráticas. O isolamento e possível derrota política dessas forças requerem muito tempo, paciência e saber fazer pontes com todos aqueles que se sentiram até iludidos pelos “acampamentos pacíficos”.

O inimigo comum não pode ser esquecido pelos cálculos eleitorais, o que estava a se desenhar. Muitos estavam também iludidos que o jogo de 2022 já estava jogado. Não se preveniram da pulsação de um movimento internacional iliberal que se consolida nas Filipinas e deseja reverter a situação aqui no Brasil pela via do voto. Não nos iludamos que querem fazer do voto uma arma para que se instale a “soberania das multidões” como uma ameaça do igualitarismo empreendedor. Uma soberania do social pela base sem mediação de atores da política uma vez que os Partidos Políticos são vistos como lugares de construção de espaços políticos individuais até por figuras do campo progressista. Menos individualismo se exige das novas lideranças que devem defender a República e a Democracia. Olhai as vinhas sem vinho da ira dos nossos hermanos do Chile para se ver que temos que aprofundar os caminhos de respostas institucionais aos graves acontecimentos de Brasília. “Democracia Sempre” será uma tarefa para uma maior unidade com as forças da Democracia desde já nesse movimentado ano de 2023 pois 2024 está para “brotar” na política como diria no “carioquês”.

sábado, 7 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 004 - GOVERNO LULA


 Foto: Equipe de VOTO POSITIVO 01/01/2023

Visões da Posse Presidencial Brasileira

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

De Paris, pelas capas e páginas do Le Monde, as notícias que se conhecem sobre a América (salvo os EUA) são muito escassas, exceto, aliás, o triunfo da Argentina na Copa do Mundo, naquela esplêndida final contra a França e a posse de Lula.

Como se era de esperar os franceses ficaram tristes, mas com uma tristeza contida, que se combina com as baixas temperaturas deste inverno, os dias de chuva e muitos dias em que o céu tem uma cor acinzentada.

Após a Copa do Mundo, que agora parece distante, as notícias continuaram a se concentrar principalmente na invasão russa da Ucrânia e esse relance sobre o país de Pelé, inclusive a sua despedida e as homenagens.

A Ucrânia, já se disse, tem uma história difícil, complexa e até inconstante na sua relação com a Europa, mas hoje se tornou um símbolo europeu não só como realidade geográfica, mas como portadora dos valores que incorporou desde o fim da Segunda Guerra Mundial e por meio de um espírito de incrível resistência à anacrônica lógica imperial do século XIX da Rússia contemporânea.

A chancelaria do Brasil não errou em condenar tamanha invasão e é motivo de orgulho, pois só no confuso e triste momento que a América atravessava inclusive com o Presidente daqui a época que brincava de aprendiz de feiticeiro e assumira posições alheias à condenação da invasão, reagindo com posições ambíguas.

Claro que aquele populismo reacionário que imaginava viver na velha guerra fria e até pensou que o regime oligárquico russo havia um que de similitude com o que aqui se fazia. Mas Bolsonaro, um personagem de extrema direita, viúvo de Trump, também fez o que é de praxe fazia diuturnamente em sua conduta: o disparate total.

Nossa América tem em seu radar ser a favor o abraço e respeito ao Direito Internacional e a defesa das democracias, por mais imperfeitas que sejam. E é aí que a cerimônia da Posse Presidencial Brasileira entrou nos jornais planetários.

Ficou claro nela que nosso lugar é no Ocidente, com base em nossos valores fundadores e históricos, incluindo a miscigenação e o sincretismo intercultural, e o gesto brilhante da subida e entrega da faixa repôs a bela realidade do nosso extremo ocidente, como apontou Alain Rouquié.


Pedro Castillo quando assumiu o mandato.

Paralelamente a situação que o Peru atravessa fez pouco barulho, embora tenha sido manchete o autogolpe do ex-presidente Pedro Castillo, depois de um mandato presidencial tão inútil quanto perigoso, indecifrável, pitoresco, etéreo, sem orientação conhecida, por onde passaram numerosos ministros e ministras, de diversas cores políticas, cujo trabalho ninguém conhecia, até porque duraram muito pouco. Foi declarado pelo Parlamento com "incapacidade moral permanente", conceito muito elaborado, onde bastava dizer incapaz tout court.

Também se falou em corrupção. O Parlamento, que também não é um caldeirão de virtudes democráticas e republicanas, agiu legalmente nesta ocasião contra o autogolpe.

Já faz algum tempo que o Peru quase não tem sistema político. Sua economia cresceu e tem riqueza, mas a desigualdade é grande e a pobreza social e territorial continua alta. Os partidos políticos são fragmentados e nas mãos de caudilhos e seus presidentes muitas vezes terminam muito mal. Nada que Mariátegui não tenha visto e escrito.

No entanto, não podemos considerar o Peru como uma exceção. Os fenômenos descritos estão presentes em toda a América (e não só) de forma mais ou menos aguda.

Ninguém na América poderia atirar a primeira pedra. Em todos os países, a crise das instituições democráticas tendeu a se agravar, a pobreza e a desigualdade aumentaram, a insegurança cidadã e o aumento da criminalidade existem em todos os lugares. Embora as Américas Central e do Sul representem 8,6% da população mundial, um terço dos crimes do mundo ocorre por aqui.

Estamos longe do período de prosperidade que terminou em 2013. Como aponta o último Balanço Preliminar das Economias da CEPAL, na década de 2014-2023 experimentaremos um crescimento ainda menor do que o dá década perdida da crise da dívida, ocorrida nos anos 1980.

O esforço que devemos fazer para sair desta prolongada crise, certamente agravada pela pandemia, será enorme.

A retórica populista, seja qual for sua cor, mostrou uma total incapacidade de combinar mais crescimento, mais igualdade e mais liberdade para a sociedade dos indivíduos. Os três elementos que John Maynard Keynes definiu como o problema político das humanidades.

O Brasil que quase não era falado passou para as manchetes e talvez isso seja, afinal, um bom sinal. Em comparação com a grande maioria dos países da América, o Brasil resistiu e conseguiu manter muitas vantagens acumuladas pelos anos democráticos. Mas essa perspectiva só renderá mais frutos com um impulso permanente, boa governança republicana, melhor prática da política da frente democrática, mais cooperação do que conflito. Pelo que se anunciou voltamos a este caminho, as situações mais negativas que vimos à nossa volta nos últimos 4 anos, devem fazer parte da coleção tristonha de nosso passado de murmúrios e que não mais voltem a nos assombrar.   

                                                                                             5 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.