domingo, 26 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 6 - DEBATE SOBRE A EDUCAÇÃO NA "IDADE DA PEDRA"


 Por um ensino republicano e democrático

 

Pacelli H. S. Lopes

 

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

 

In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.338. (Biblioteca luso-brasileira). Série brasileira.

 

Como as escolas podem operar frente aos desencantos democráticos e republicanos? Não é nenhuma novidade, que desde meados da segunda metade do século XX vemos nossas democracias e repúblicas entrarem em ruínas, essas não conseguiram cumprir tudo que prometeram no pós-guerra.

A pandemia sepultou a educação como a conhecíamos, deixando um vazio entre o que deve vir a ser uma nova forma de construção de conhecimento. Como disse Gramsci, “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem.”



A princípio precisamos nos perguntar: por que morreu? Como morreu? E de que forma morreu? Entendendo melhor o óbito, quem sabe não poderemos construir uma nova organização do que fazer para um renascer da aprendizagem. Frente a isso, como educador e educadoras, como gestores e gestoras escolares, devemos usar as microescalas de observação e análise da nossa prática diária sobre o dia a dia das escolas, pois acreditamos que nos pequenos detalhes das poucas coerências e das muitas incoerências poderemos encontrar valiosas pistas para as mudanças.

Construímos nas nossas práticas diárias a busca por uma educação na e para a democracia e a república. Com isso, buscamos nos provocar: quando e quais das nossas ações diárias no chão da escola contribuem para a civilidade democrática e republicana? Quando falamos em frentes amplas e democráticas para o futuro da política entre nós será que fazemos isso no dia a dia das escolas? Será que nos revoltamos de tamanha maneira contra os descalabros dos governos da mesma maneira quando os colegiados escolares são engolidos pelas sanhas autoritárias dos diretores e diretoras? Será que ficamos indignados com a ausência de dispositivos democráticos como grêmios estudantis e assembleias de alunas e alunos em nossas escolas? Será que conhecemos e lutamos pela implantação e aprimoramento permanente dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas?

De forma científica e ética, buscarmos operar na realidade com o objetivo e valores claramente democráticos. Não tenhamos a pretensão de dizer que já temos condições de parir o novo, porém, lutemos para construir nas nossas práxis uma escola de bases republicanas.



Para isso, buscamos dialogar com todos os setores da comunidade em busca dos seus valores, filosofias e sonhos para se construir um Projeto Político Pedagógico exequível e real. Depois fortalecemos e possibilitemos a autonomia aos grêmios estudantis e aos colegiados escolares. Criarmos redes com setores políticos, sociais e econômicos dialogando com diferentes correntes políticas que permitam trazer o melhor para a escola.

Dentre tudo que fazemos algo parece ser a pedra angular para a construção de uma cultura democrática e republicana: a percepção palpável de que sozinhos nada podemos fazer, nem mudar a nós mesmo. É necessário irmos aos diálogos para com todos e todas aquelas que queiram ensinar e aprender. E nós todos, o que fazemos na prática cotidiana que possibilita reforçar a república e a democracia?




sábado, 18 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 5 - HARRY POTTER E O BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA


 

                                                  Lord Voldemort e nós

Por Marcio Junior

 

Fenômeno curioso, a literatura costuma ser marcante, por muitas vezes, para o leitor durante toda a sua vida. Alguns personagens são fonte de admiração e sentimento afetivo por muitos no mundo, principalmente se produções vendidas em larga escala, tendo sido conhecidos por leituras feitas em diversas línguas. Por vezes, alegorias e metáforas trabalhadas por autores fazem parte do arcabouço formativo de parte significativa de uma geração, inclusive com adaptações para o cinema.

Vejamos um exemplo: a jornada do vilão Lord Voldemort, construída por J. K. Rownling em Harry Potter e disseminada em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. Ao saber que um menino poria em risco a sua busca pela imortalidade, resolve matá-lo, e, ao fazer a tentativa após assassinar seus pais, não tem sucesso e é reduzido à apenas uma parte ínfima de criatura humana e mágica que é. Mais do que isso, termina preso em laço profundo ao menino, que virá a ser o herói em sua jornada (laço este vai sendo descoberto pelo leitor ao longo da saga), sendo formado continuamente para enfrentar o desafio de enfrentá-lo quando estiver pronto, o que põe em evidência a figura do professor. Os próximos anos de “vida” do vilão, assim, são marcados por descobrir e tentar recuperar seus atributos físicos, inclusive o próprio corpo, para dar continuidade na expansão de seu domínio de tudo e todos, enquanto muitos acreditavam erradamente, inclusive, que seu destino fora a morte, libertando o mundo da ameaça maligna. Seu nome, inclusive, não é dito em voz alta.

            O fato é que mesmo a literatura de gênero fantasia, se de qualidade, tem os pés fincados no chão do mundo real, e não há a mágica que encanta a vida sem nosso esforço, sobretudo quanto a resolução dos nossos problemas. Para além dos problemas de longa data, como a imensa desigualdade que podemos ver a olho nu, estamos em apuros e não chegamos à toa neste estado de coisas, resultado de nossos próprios erros.

Tivemos formação social peculiar, fruto de um processo de colonização complexo e estudado em alto nível por intelectuais do Pensamento Social Brasileiro. Não é de pouca diferença, sobretudo quanto aos países vizinhos a nós, nossa face moderna, fruto da proximidade antropológica entre escravas e patrões, por muitas vezes violentas, mas que forneceu equilíbrio aos antagonismos daqueles que vieram de vários territórios do planeta e habitavam os espaços da colônia, a casa-grande, a senzala, a capela, o engenho, o canavial. Demos ao mundo um novo tipo social, o brasileiro: criatura mestiça, indefinida, plástica, emotiva, de guerra e de paz. Um povo.

Sendo assim, dada a pouca idade do país (faremos 200 anos em 2022), refletirmos sobre o futuro é pertinente, porém complexo. A título de exemplo, Sérgio Buarque de Holanda se dedicou, em Raízes do Brasil (1936) a dissertar sobre, entre outras coisas, as perspectivas para o país no capítulo Nossa Revolução, último do livro.

A despeito deste e de outros estudos, desviamos, porém, a rota. O século XX, por exemplo, foi momento de importantes marcações quanto a evolução política do país, como a Semana de Arte Moderna e a fundação do Partido Comunista Brasileiro, ambos em 1922, fenômenos de animação da sociedade no sentido de reivindicar para ela o papel de protagonista no enfrentamento de nossos problemas. Com a Revolução de 30, o Estado elencou para si esta responsabilidade, sendo bem sucedido principalmente na formação do mercado de trabalho do país, fenômeno paradoxal da nossa história.

Já sob a Constituição de 1988, principalmente nos governos do Partido dos Trabalhadores, fez-se leitura próxima: o PT, fruto de animações sociais iniciadas nos parques industriais do ABC durante o regime militar e crítico do fenômeno do Estado enquanto protagonista da vida, cedeu à esta lógica, instrumentalizando os movimentos sociais e os fazendo perder a luz própria, sujeitando-os à política de Estado. Sendo assim, estava aberta a via para as afirmações de interesses, inclusive patrimoniais, e as movimentações da sociedade foram impregnadas pela lógica mercantil em seus modos de operação.

            Assim, a sociedade brasileira cedeu molecularmente à cultura do indivíduo, resultado de experiências outras, na qual a vida social seria determinada pela construção e afirmação da própria identidade. Esse exercício, puramente individual, seria a via de superação das mazelas do passado, sobretudo as desigualdades e diferenças de cor e outras. A partir desta formatação e com a cultura identitária se tornando hegemônica, constituiu-se na sociedade um tribunal da história, a pretexto de, como que em exercício de laboratório, separar o que é “bom” e o que é “mau” e, sob este pretexto, excluindo das salas de aulas das academias grande parte do conhecimento produzido do Pensamento Social.

            Nesse sentido, na conjuntura da condução de Bolsonaro à Presidência da República, a atuação de Paulo Guedes como Ministro da Economia se justifica e se põe como sintomática de um problema maior. Não há direita ou esquerda em Guedes, assim como, na prática, não há nos coletivos que se multiplicam principalmente nas favelas cariocas, havendo somente o indivíduo a se afirmar, principalmente no mercado. Feita a constatação, as dificuldades que estamos enfrentando se mostram mais complexas, de maior duração. Mesmo com a derrota de Bolsonaro no pleito de 2022, muitas dificuldades conjunturais permanecerão, sobretudo educacionais e de formação das crianças e jovens.

Sendo assim, retornamos ao exercício de J. K. Rownling, que pode nos servir de lição: não é porque o mal possivelmente sairá de cena que ele estará morto. Ele pode estar vivo e invisível aos olhos, mas, mesmo combalido, agirá nas sombras, esperando a hora de retornar. A saída, como construiu a autora, deverá ser professoral.

           

sábado, 11 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 4 - VIVA O SUS E O POVO BRASILEIRO!


 Mesa de Abertura da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986)


Viva o SUS, Viva o Povo Brasileiro!

 

Tiago Martins Simões[1]

 

Há algumas interpretações de que, no Brasil, a modernização foi (e é) um processo lento e molecular, sem rupturas no formato de revoluções europeias do século XVIII. Trata-se de correntes que buscam compreender o que há de singular em nossa história e interpretá-la a partir de chaves de longa duração. A história do Sistema Único de Saúde, em sua maior parte, infelizmente pendeu para o lado oposto, como se o mesmo houvesse saído da Constituinte como uma faísca, ainda que nela resida parte importante de sua construção. De outra parte, deixou mal caracterizada sua conformação política nos anos que antecederam esse nascimento, em especial a partir do final da década de 1970.

Recentemente, uma feliz iniciativa da Fundação Astrojildo Pereira, no contexto preparatório dos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mobilizou personagens importantes de uma geração que participou do movimento sanitarista na construção do SUS, através de uma videoconferência intitulada “O PCB, o movimento sanitarista e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)” que está disponível ao público, no seu canal do YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=sZSxDDPzGUI). Escutar a história viva, a partir de personagens reais, é um exercício importante para minha geração (nascida na década de 1980) e para as gerações seguintes. De igual importância é a aprendizagem sobre nossa história, despida, na medida do possível, de preconceitos e assuntos mal compreendidos.

Dentre estes, destaca-se a generalizada confusão que o senso comum faz do comunismo. Isso veio à tona mais uma vez em nosso 7 de setembro, com bizarros cartazes propondo o “afastamento” do comunismo de nosso país. Não é algo novo, mas persistente no imaginário de muitas pessoas. É pouco sabido, por exemplo, que a expressão “viva o SUS”, talvez uma das mais bradadas desde 2020, carrega uma profunda herança comunista, que contribuiu decisivamente para um dos mais avançados e democráticos sistemas sanitários do mundo.

Em entrevista concedida ao site jornalístico “Outras Palavras” (https://www.youtube.com/watch?v=WOEXvTeJsak&t=267s), Sônia Maria Fleury Teixeira (importante estudiosa e militante da reforma sanitária, uma das fundadoras do pioneiro Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), ao final da década de 1970) reconhece que, a despeito das concepções e estudos que avançaram para uma compreensão abrangente de uma Saúde Coletiva, inclusive pelo próprio CEBES, a mobilização e organização política para a concretização das propostas ficaram sob a responsabilidade dos integrantes do PCB, mesmo durante os difíceis anos da Ditadura.

O PCB conseguiu, antes mesmo do nascimento do SUS, realizar rupturas moleculares com a pesada lógica previdenciária que regia nossa seguridade: a saúde era, nada mais, que uma prestação previdenciária para alguns trabalhadores urbanos com carteira de trabalho assinada. Os rurais sequer tinham acesso ao sistema previdenciário stricto sensu. Apenas para dimensionar o tamanho dessa empreitada, ao longo da década de 1980, inúmeros quadros do PCB ocuparam postos no Poder Executivo, em especial no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), e contribuíram decisivamente para emplacar, parcialmente, princípios estruturantes do SUS, como a universalização do acesso. Abriu-se, por exemplo, uma rubrica no orçamento do INAMPS para que este financiasse as Ações Integradas de Saúde (1983) - primeira ruptura real com a lógica previdenciária da seguridade, mantida a mesma, até então, desde sua origem em Vargas.

Sairia do escopo deste texto abrir essa discussão, através de marcos e personagens. O fato é que o SUS carrega uma história das mais exemplares, especialmente nos dias que vivemos. Comunistas, liberais, conservadores e inúmeros outros atores conseguiram pensar e trabalhar por uma pauta pública, inclusive com políticos dos mais variados espectros políticos no Poder Executivo, no Congresso, na Constituinte. Longe de ter sido um processo pacífico foi, antes de tudo, um marco de nossa democracia e da nossa república, de como elas podem e devem funcionar. Distanciamos-nos disso, mas ainda temos pilares da democracia e da república. Precisamos urgentemente qualificar a política, os partidos, a vida pública.

 

Rio, 9 de setembro de 2021



[1] Professor do Município do Rio de Janeiro


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 3 - OS COLETIVOS E SEU EDGAR


 

A MAIS-VALIA ACABOU, SEU EDGAR

Por Ana Beatriz Camarinha[1]

 

Nos últimos anos, a política brasileira observa um crescimento exponencial de temáticas identitárias como pautas de debates políticos. Os chamados “coletivos” se apresentam principalmente através da internet nas redes sociais no campo à esquerda, atraindo a atenção majoritária dos jovens, no entanto, os mesmos não se posicionam politicamente além do seu individualismo. Com a ausência de uma política efetiva – nesse caso, até mesmo uma teoria política aprofundada – os coletivos apresentam um caráter purista e que beira o pensamento liberal individual. Ou seja, agem como “coletivos individuais”, em que negros se unem para discutir sobre negros para negros, mulheres sobre mulheres para mulheres. O ponto em questão não é a discussão. Como uma mulher, acredito que a pauta sobre muitas questões que versam intolerância e preconceitos que ainda no século XXI esse grupo enfrenta é importante. É ainda necessário, por exemplo, nos posicionarmos em relação ao feminicídio. Ao racismo. Porém, a pauta por si só não impede que mulheres continuem sendo mortas ou negros sofrendo pelo sistema desigual.

O diálogo “eu x os outros” transmitidos por muitos dos coletivos não apresentam a real preocupação com temas da esquerda histórica do século passado, dentre eles: democracia, questão nacional e luta de classes. A identidade sobrepôs os três assuntos que compõe o debate e o choque com o sistema em que a mesma está inserida e diz combater. As apropriações em favor da pauta, logo, se intensificam como uma forma de “politizar” o movimento. Dessa forma, a Frida se torna uma feminista anos após sua morte pelo seu desejo por liberdade sendo uma mulher, um deslocamento um tanto anacrônico. Por sua vez, a parcela ativa como sujeito político da artista mexicana em prol do Comunismo se desmancha no ar. Mais uma vez, o político se esvazia para o identitário prevalecer. 

Diante do cenário trágico do Afeganistão, uma das discussões mais ocorridas nas redes sociais é a opressão das mulheres diante do uso do hijab. Segundo uma reportagem da BBC, veiculada pelo G1, que entrevistou a antropóloga e pesquisadora da USP Francirosy Campos, houve, após a tomada de poder pelo Talibã, um aumento expressivo de preconceito e ataques a mulheres fiéis do Islã no Brasil pelo mesmo motivo. O uso do hijab se constitui como uma obrigação alcorânica, existindo o livre arbítrio e podendo ser enxergado de diversas formas exatamente pela diversidade cultural presente entre os mulçumanos. Algumas mulheres afegãs o enxergam como um artefato religioso, parte de costumes, outras como ato político e até instrumento de empoderamento. Entender a diversidade cultural, mesmo quando através da matéria do costume e do religioso, deveria ser uma questão a se sobrepor à mera luta vendada contra o patriarcado. O machismo, nesse caso, não estaria necessariamente no lenço. Isso me faz lembrar do filme recente da Viúva Negra (2021), dirigido por Cate Shortland e que trata do protagonismo feminino a partir de uma ótica ocidental. As personagens controladas fisiologicamente e emocionalmente são “libertas” por uma mulher vingadora que retorna dos Estados Unidos. Será mesmo que poderíamos afirmar que as afegãs e mulçumanas se sentem manipuladas pelo uso do hijab como se fosse algo implantado à força nelas, sem ouvi-las? Será que o hijab é realmente o ponto mais importante de debate nesse contexto?

Estaríamos tentando preencher a posição de vingadora ocidental?

Mais uma vez, não desconheço a importância de pautas que abordem o feminino, LGBTQI+ ou negros, mas o discurso sem um planejamento, agenda e ação política não gera mudança social efetiva. Ficamos, dessa maneira, restritos a simplificações, a um purismo que desconhece a pluralidade, a discursos que se intitulam decoloniais por modismo e a grupos hermeticamente fechados em si. O esquecimento das pautas de democracia, questão nacional e luta de classes, outra vez, provoca uma esfera política vazia e individualista, puramente militante e carente de formação intelectual no campo político.  Enquanto isso, conceitos como “verdadeira democracia, a liberdade e o Estado de Direito” estão sendo apropriados pela direita que está no poder, a qual repetidamente também utiliza a palavra “povo” em seus discursos, por mais que não reflita essa intenção em suas ações. Mas isso é pauta para outra conversa. 

Se as agendas políticas dos partidos enfraqueceram, se os coletivos se reduzem a pauta identitária não dialogando com as premissas da esquerda histórica, me pergunto: onde está a política que visa, de forma conjunta e diversificada, o povo? Às vésperas do bicentenário da independência, qual o legado do Brasil como uma nação? Na arena política? Qual será daqui a alguns anos o legado dessa esquerda atual na política? Coletivos que realizam lutas individuais? Uma busca incessante por particularismos? Apropriação de conceitos que deveriam estar no debate progressista pela direita motoqueira? Estamos, sim, vivendo um mal estar escatológico. Assim como Tatooine, um território afegão, precisamos de novas fontes de água-viva sob a sombra de romanzeiras; discussões programáticas sobre emprego, educação e saúde na República que ainda resiste sob os combalidos alicerces da Constituição de 1988.

             

 



[1] Graduanda de História na Universidade Federal Fluminense (UFF)

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

POLÊMICA - O PARTIDO BRASILEIRO


 As Cortes de Lisboa (quadro de Oscar Pereira da Silva)

Você conhece o Partido Brasileiro?

 

Em memória de Ana Carla Magni (1972-2021)

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Sobre as efemérides de 2022 dedicadas ao nascimento do Brasil devesse acrescentar a perseverança e a resistência do Partido Brasileiro (que contou, entre outros, com Cipriano Barata [1762-1838], Muniz Tavares [1793-1876], que haviam participado da Revolução Pernambucana de 1817 e do Padre Diogo Antônio Feijó [1784-1843]) frente à proposta da recolonização do Brasil apresentada nas sessões das Cortes de Lisboa em 1821, pois foi ali que os nativos revolucionários desenvolveram uma das nossas virtudes ao dotar o sentimento da nacionalidade brasileira de uma pluralidade e nunca ter concedido, e não podia realmente conceder, uma unívoca definição de gênero, étnica ou de raça. O que mais se aproximava de sua natureza era o entusiasmo pelo junto e misturado das múltiplas identidades amalgamadas ou não na miscigenação e noutras modalidades de mestiçagens, mas que no final eram as brasileiras e brasileiros que estavam lá e aqui e ponto.

Em parte pelo mito - antigo - e pela realidade - bem mais recente - da miscigenação e mestiçagens no Brasil (de Gilberto Freyre [1900-1987]) e em alguns outros países ibero-americanos, especialmente no Mexico (de José Vasconcelos Calderón [1882-1959]), no Peru (de José Carlos Mariátegui [1894-1930]) e no Equador (de Alfredo Pareja Díez-Canseco [1908-1993], a nacionalidade brasileira e de outras nações da região nunca tiveram uma conotação única de gênero, etnia ou raça que outras sociedades reivindicam, seja desde sua origem ou adquirindo ao longo do tempo.

Isso está começando a sofrer ataques no México, Peru, Equador e Brasil. No Brasil, não tanto pela quantidade de disparates que temos vivido por conta do identitarismo de um lado e pelo resultado eleitoral de 2018 com Bolsonaro de outro, onde ambas as manifestações desejam ver pelas costas o bicentenário do Partido Brasileiro nesse segundo ano pandêmico de 2021 e pela sua ausência de comemorações agora e de sua projeção para 2022, que acabam por anunciar em essência de que nada há a comemorar e os subtextos esdrúxulos que acompanharão essas posturas. Por enquanto, essas manifestações são algo marginal e provavelmente também o serão de curta duração. Se Bolsonaro e os candidatos do identitarismo forem derrotados em 2022, isso não será mais do que um fenômeno passageiro ou um breve pesadelo que felizmente terminará quando todos nós acordarmos.

Mas não vamos nos enganar. Algo de conotação étnica e ou racial na nacionalidade brasileira começa a emergir, como em outros países ibero-americanos, com governantes semelhantes. Não deve ser silenciado ou escondido. O fenômeno não é muito diferente do que aconteceu, por exemplo, na França nos últimos tempos. Muitos intelectuais e políticos franceses ficaram alarmados, ou mesmo angustiados, com a chegada ao país do Iluminismo de estranhas importações da academia norte-americana. Não é tanto sobre o Me Too, que é tão válido e atual na França quanto nos Estados Unidos da América, ou qualquer outro país. Referimo-nos antes aos cultos dos identitarismos, às tentativas de mudar o texto e a gramática francesas para acomodar etnias, raças, gêneros ou outras aspirações ou demandas e, acima de tudo, às diferentes formas de reagir a certas presenças do Islã, por um lado, inegáveis na França, e ao islamismo radical, tão existente e alarmante por outro.

Houve um tempo em que era a academia norte-americana que importava conceitos e teorias de Paris. Talvez primeiro Althusser e Lacan, depois Foucault e Derrida, fizeram fortuna nas grandes universidades dos Estados Unidos da América (e não só por lá), contribuindo em muitas abordagens com construção de conhecimentos extraordinários - ver os pontos de Foucault sobre a prisão, a clínica, a medicina, a sexualidade, entre outras dimensões. Agora é o contrário, mas a qualidade do fluxo reverso não é necessariamente a mesma.

Começa a surgir no Brasil um sentimento que deve preocupar a todos nós. Alguns brasileiros e brasileiras seriam menos brasileiras e brasileiros do que outros, e não porque sejam do Norte ou do Sul do país, porque são ricos ou pobres, porque são migrantes ou de comunidades dos povos isolados como bem pontuou Sebastiao Salgado, mas porque são pardos, mestiços, miscigenados e não identitários, numa palavra, brasileiras e brasileiros. Haveria pelo menos dois tipos de brasileiros e brasileiras: os verdadeiros e verdadeiras e os demais. Isso, além de terrivelmente perigoso, põe em causa um suposto fundamentalismo de identitarísmos à nacionalidade brasileira, com toda a mitologia que se deseja, banindo ad absurdum a miscigenação e a mestiçagens. Sabemos que, essa realidade, pode ter tido um uso político com um que de falso e, talvez, até mesmo tardiamente. Também sabemos que, como uso mítico, tem sido extraordinariamente útil, certamente, para tentar exercer uma forma de dominação doce e poder açucarado, uns dos outros. Mas foi isso que nos permitiu coexistir no que começou a se delinear como nação no final do século XIX ou no início do século XX, em um país que tinha Estado, mas não tinha absolutamente nada como uma Nação. Como diz lucidamente Antonio Risério, é preciso ter cuidado com isso, porque, por mais complexa que tenham sido a miscigenação e a mestiçagem (e o foram como sabemos), é a principal história inclusiva que existe entre nós desde quando nascemos e passamos a existir.

 

1 de setembro de 2021



[1] Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi.