A
MAIS-VALIA ACABOU, SEU EDGAR
Por
Ana Beatriz Camarinha[1]
Nos
últimos anos, a política brasileira observa um crescimento exponencial de
temáticas identitárias como pautas de debates políticos. Os chamados “coletivos”
se apresentam principalmente através da internet nas redes sociais no campo à
esquerda, atraindo a atenção majoritária dos jovens, no entanto, os mesmos não
se posicionam politicamente além do seu individualismo. Com a ausência de uma
política efetiva – nesse caso, até mesmo uma teoria política aprofundada – os coletivos
apresentam um caráter purista e que beira o pensamento liberal individual. Ou
seja, agem como “coletivos individuais”, em que negros se unem para discutir
sobre negros para negros, mulheres sobre mulheres para mulheres. O ponto em
questão não é a discussão. Como uma mulher, acredito que a pauta sobre muitas
questões que versam intolerância e preconceitos que ainda no século XXI esse
grupo enfrenta é importante. É ainda necessário, por exemplo, nos posicionarmos
em relação ao feminicídio. Ao racismo. Porém, a pauta por si só não impede que
mulheres continuem sendo mortas ou negros sofrendo pelo sistema desigual.
O diálogo “eu x os outros”
transmitidos por muitos dos coletivos não apresentam a real preocupação com
temas da esquerda histórica do século passado, dentre eles: democracia, questão
nacional e luta de classes. A identidade sobrepôs os três assuntos que compõe o
debate e o choque com o sistema em que a mesma está inserida e diz combater. As
apropriações em favor da pauta, logo, se intensificam como uma forma de
“politizar” o movimento. Dessa forma, a Frida se torna uma feminista anos após
sua morte pelo seu desejo por liberdade sendo uma mulher, um deslocamento um
tanto anacrônico. Por sua vez, a parcela ativa como sujeito político da artista
mexicana em prol do Comunismo se desmancha no ar. Mais uma vez, o político se
esvazia para o identitário prevalecer.
Diante do cenário trágico do Afeganistão, uma das
discussões mais ocorridas nas redes sociais é a opressão das mulheres diante do
uso do hijab. Segundo uma reportagem da BBC, veiculada pelo G1, que entrevistou
a antropóloga e pesquisadora da USP Francirosy Campos, houve, após a tomada de
poder pelo Talibã, um aumento expressivo de preconceito e ataques a mulheres
fiéis do Islã no Brasil pelo mesmo motivo. O uso do hijab se constitui como uma
obrigação alcorânica, existindo o livre arbítrio e podendo ser enxergado de
diversas formas exatamente pela diversidade cultural presente entre os
mulçumanos. Algumas mulheres afegãs o enxergam como um artefato religioso,
parte de costumes, outras como ato político e até instrumento de empoderamento.
Entender a diversidade cultural, mesmo quando através da matéria do costume e
do religioso, deveria ser uma questão a se sobrepor à mera luta vendada contra
o patriarcado. O machismo, nesse caso, não estaria necessariamente no lenço.
Isso me faz lembrar do filme recente da Viúva Negra (2021), dirigido por Cate
Shortland e que trata do protagonismo feminino a partir de uma ótica ocidental.
As personagens controladas fisiologicamente e emocionalmente são “libertas” por
uma mulher vingadora que retorna dos Estados Unidos. Será mesmo que poderíamos
afirmar que as afegãs e mulçumanas se sentem manipuladas pelo uso do hijab como
se fosse algo implantado à força nelas, sem ouvi-las? Será que o hijab é
realmente o ponto mais importante de debate nesse contexto?
Estaríamos
tentando preencher a posição de vingadora ocidental?
Mais uma vez, não desconheço a
importância de pautas que abordem o feminino, LGBTQI+ ou negros, mas o discurso
sem um planejamento, agenda e ação política não gera mudança social efetiva.
Ficamos, dessa maneira, restritos a simplificações, a um purismo que desconhece
a pluralidade, a discursos que se intitulam decoloniais por modismo e a grupos
hermeticamente fechados em si. O esquecimento das pautas de democracia, questão
nacional e luta de classes, outra vez, provoca uma esfera política vazia e
individualista, puramente militante e carente de formação intelectual no campo
político. Enquanto isso, conceitos como
“verdadeira democracia, a liberdade e o Estado de Direito” estão sendo
apropriados pela direita que está no poder, a qual repetidamente também utiliza
a palavra “povo” em seus discursos, por mais que não reflita essa intenção em
suas ações. Mas isso é pauta para outra conversa.
Se as agendas políticas dos
partidos enfraqueceram, se os coletivos se reduzem a pauta identitária não
dialogando com as premissas da esquerda histórica, me pergunto: onde está a
política que visa, de forma conjunta e diversificada, o povo? Às vésperas do
bicentenário da independência, qual o legado do Brasil como uma nação? Na arena
política? Qual será daqui a alguns anos o legado dessa esquerda atual na
política? Coletivos que realizam lutas individuais? Uma busca incessante por
particularismos? Apropriação de conceitos que deveriam estar no debate
progressista pela direita motoqueira? Estamos, sim, vivendo um mal estar
escatológico. Assim como Tatooine, um território afegão, precisamos de novas
fontes de água-viva sob a sombra de romanzeiras; discussões programáticas sobre
emprego, educação e saúde na República que ainda resiste sob os combalidos
alicerces da Constituição de 1988.
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