segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 16 - ELEIÇÕES LEGISLATIVAS EM PORTUGAL


 Primeiro-ministro de Portugal, António Costa (PS) - Fotografia Agência Reuters

LUSOFRENTISMO

Por Vagner Gomes de Souza

 

No ano de 2015, a geografia política lusa foi reinventada pela formação da “Geringonça” que seria uma Frente Política opositora da política rígida de austeridade econômica da política fiscal recomendada para a União Europeia para superar os efeitos da crise econômica de 2008. O termo pejorativo veio de um líder da CDS-Partido Popular, organização política de inspiração democrata cristã e liberal-conservadora, mas ganhou gosto entre os novos partidos governistas.

A reinvenção se deveu pelo fato de o Partido Socialista (PS) ter organizado um Governo de Maioria mesmo com ficando em segundo lugar nos resultados de voto e número de assentos em 2015 (32,3% e 86 parlamentares eleitos). Em sequência, se uniu ao Bloco de Esquerda e a Coligação Democrática Unitária (PCP-PEV) para referendar a derrota política do “Portugal à Frente”, uma aliança entre PSD e CDS-PP. As legendas aliancistas deram uma errônea impressão de que se estava a começar uma “Era de Frente Popular”, ou seja, a “Geringonça” seria uma unidade da esquerda portuguesa em polarização com a Direita.

 Essa foi a origem dos erros políticos que levaram a derrocada dos atores políticos à esquerda nas eleições legislativas de ontem (30 de janeiro). Avaliavam que estavam num governo frentista para forçar as correlações de forças políticas internas no sentido de levar o debate programático orçamentário mais a esquerda no caso do CDU enquanto o Bloco de Esquerda começou a introduzir uma pauta mais “americanizada” na política das forças progressistas. Não perceberam que estava no interior de uma coligação de Centro-Esquerda que fez Portugal atingir um pleno emprego e ter uma elogiada política de vacinação da população no combate a pandemia.

Todavia, os indicadores positivos na geração de empregos não foram acompanhados pela redução das desigualdades sociais. CDU e Bloco de Esquerda mais uma vez calculavam que esses números forçariam que mais a esquerda o eleitor se posicionaria nas eleições legislativas. Nesse cálculo político se descartou o “eleitor silencioso”, ou seja, a parcela do eleitorado que começou a não votar desde 2005.

Nesse ano, 64,26% dos portugueses compareceram para votar e os números foram declinando em cada eleições até essa mais recente (2009 – 59,74%; 2011 – 58,07%; 2015 – 55,86%; 2019 – 48,57%; 2022 – 57,96%). Sugerimos que os eleitores “centristas tradicionais” foram aderindo a abstenção o que permitiu a “solução Geringonça”. Agora, esse segmento silencioso, como se fosse uma “revolução passiva” lusa teria comparecido as urnas para sufragar o PS.

O “eleitor silencioso” gravitou na busca da volta de Governos de Maioria como primado da moderação da política portuguesa. A “solução Geringonça” descartou o peso desse “centro político” que derrotou política e eleitoralmente Bloco de Esquerda e CDU que continuam com a “ilusão” de foram derrotados pelo “voto útil”, ou seja, eleitores deles teriam “migrado” para o partido de Antonio Costa. O ensaio político dessa “cegueira” não se permite a considerar que aproximadamente 350 mil eleitores agora teriam aderido a abstenção? Um erro primário em considerar que o eleitor da Esquerda não faz abstenção impede novas possibilidades analíticas.

Por outro lado, uma “Geringonça” de Direita (unindo PSD, CHEGA e Iniciativa Liberal) foi, por ora, adiada com a maioria absoluta conquistada pelo PS. Essa maioria eleitoral teria uma base mais “frentista” que “socialista” e/ou “social-democrata” uma vez que seria um voto de confiança pela continuidade de mudanças graduais e com estabilidade. Nas democracias do Mediterrâneo, o eleitor português deve temer as incertezas das eleições legislativas semelhantes à Espanha, Itália e Grécia. Portanto, o “Lusofrentismo” é uma noção conceitual ao qual propomos.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

EPÍSTOLA NÚMERO 2


 

Carta aberta aos amados líderes e membros das mais diversas congregações cristãs.

 

Amados, como sabemos “os propósitos do coração do homem são águas profundas, mas quem tem discernimento os traz à tona” (Provérbios 20:5 NVI). Nesse momento, no início do terceiro ano pandêmico, peço a gentileza de sua reflexão quanto ao que foi determinado pelas autoridades do escopo federal, estadual e municipal naquilo que o ex-prefeito – e bispo de uma igreja – chamava de “regras de ouro”: o uso de máscaras (no máximo 2 horas), do álcool gel e o distanciamento – agora reduzido – de um metro de uma pessoa para outra.

Caros irmãos e irmãs, essas regras não são de desobediência, elas vêm de autoridades e, portanto, cada um “lembre a todos que se sujeitem aos governantes e às autoridades, sejam obedientes, estejam sempre prontos a fazer tudo o que é bom (Tito 3:1 NVI); não entremos no terreno da discórdia, da confusão, “se o sábio der ouvido, aumentará seu conhecimento, e quem tem discernimento obterá orientação” (Provérbio 1:5 NVI).

Os termos colocados nas redes sociais acerca da imunidade do povo de Cristo tem mais conexão com o conceito de “corpo fechado” de outras  religiões do que com a fé em nosso Deus. A vigilância com a nossa saúde é necessária, pois “estejam vigilantes, mantenham-se firmes na fé, sejam homens de coragem, sejam fortes” (1 Coríntios 16:13 NVI).

Com muita humildade uso esse espaço concedido para que pensemos e reflitamos naquilo que nos foi deixado como legado, orientação e herança maior, aquilo que está em Tiago 2:8; João 15:12. As palavras de Cristo Jesus sobre o amor ao próximo devem ser nosso guia, pois “quem examina cada questão com cuidado, prospera, e feliz é aquele que confia no Senhor” (Provérbios 16:20).  Mensagens que podem nos vangloriar de nós mesmos porque tão somente professamos a fé cristã pode nos manchar com orgulho, soberba. Aquele que nos diz que é a luz e a verdade tem que ser confrontado com a consciência do Espírito Santo que Deus deu a cada um de nós e lembremos que “isso não é de admirar, pois o próprio Satanás se disfarça de anjo de luz” (2 Coríntios 11:14)

Acautelai-vos e rogo, mais uma vez, amemos o nosso próximo. Usemos a máscara não porque somos santos, mas para nos lembrar de nossas imperfeições e vulnerabilidades. Escudo da fé e máscara no rosto; capacete da salvação e álcool nas mãos.

Graça e Paz!

Eremildo

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 7

Breves lembranças de “Brave”

Por Micaela Luz

 

Rover Curiosity, uma das missões mais bem-sucedidas da NASA. Gagnam Style, do sul-coreano Psy. Corinthians bicampeão. O fim do mundo, previsto por 27 povos antigos diferentes, que não aconteceu. O lançamento do filme que uniu os principais heróis da Marvel em tela. O fim da trilogia de Nolan, com Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge.

A princípio a ligação entre esses acontecimentos parece não existir, mas há sim uma característica que os une. Todos esses episódios marcaram o ano de 2012 e, agora em 2022, irão completar 10 anos.

Valente (“Brave”) possui essa mesma característica em comum. Lançado a quase 10 anos atrás, o filme conta a história de uma princesa que decide lutar pela sua liberdade e ir contra as tradições impostas a ela. Mesmo que para isso tenha que ir contra sua mãe, uma mulher estritamente rígida em relação às leis e aos costumes.

Merida, a protagonista do filme, queixa-se das expectativas, responsabilidades e deveres que a ela foram impostos pelo fato de ser uma princesa, princesa essa que precisa, acima de tudo, ser perfeita. Logo é possível ver quem é o originador de tais imposições, a mãe de Merida, Elinor. A rainha, a todo o momento, restringe a filha, colocando tradições como leis imutáveis e, de certa forma, retraindo o espírito livre que a filha possui.

Ao contrário das princesas mais tradicionais, Merida não se apaixona por um príncipe, ou espera por resgate, ela, na verdade, busca moldar seu próprio destino. O destino, aliás, é uma parte muito presente no filme, ele começa sendo entendido como algo imutável e predestinado e, no final, passa a ser entendido como um fruto das escolhas, como algo moldável as vontades e circunstâncias.

Merida é uma adolescente tentando se descobrir e sendo limitada pela visão que o mundo tem de uma princesa. Ela faz besteira, assim como todo adolescente, e depois se desdobra para tentar consertar, gerando assim um aprendizado e uma mudança, não só nela, mas também em sua mãe, mostrando como a experiência é sim algo formador de novas opiniões e visões. E, trazendo a questão da experiência, é possível trazer esse ensinamento para o mundo real, para fora da animação. A rigidez com a qual defendemos nossas visões de mundo é o que permite que loucos antivacinas e terraplanistas existam, pessoas que não se permitem experimentar um mundo fora de suas convicções.

No decorrer do filme é possível ver a personalidade de ambas, mãe e filha, por meio de traços físicos, tais quais roupas, postura e cabelo. A filha, com um espírito livre e aventureiro, possui roupas mais largas, cabelos soltos e uma postura confiante. A mãe, por sua vez, com sua personalidade rígida, possui roupas perfeitamente alinhadas, cabelos lisos e uma postura ereta, digna de uma rainha. O peso de uma tradição não pode nos aprisionar e nem as castas políticas, midiáticas, pastorais, jurídicas, dentre outras, carregarem consigo o monopólio da hereditariedade, como vemos políticos de gerações dominando o Estado com ações assistencialistas ou com uma “valentia” baseada na coerção como no caso de milícias. Nessa toada, o Rio de Janeiro nos oferece um triste cenário rico, seja o caso selvagem que nos assombrou com a morte do menino Henry Borel, seja com os “zeros” que assolaram a política fluminense.

No caso da animação, cabe destacar que foi a primeira a ter recebido um Oscar para uma mulher, a sua co-diretora, e que a produtora Pixar antecipou a conservadora Disney em um ano que foi forçada a pensar em uma dialética sem síntese com o lançamento de Frozen (cujo enfoque sobre o papel da princesa foi cobrado na UERJ em contraposição à Branca de Neve). O interessante das recentes histórias de princesas é que se não há a busca por príncipes abre-se a possibilidade pelo fim de monarquias e a criação de repúblicas democráticas inclusivas para todas e todos.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 6


Dez anos de Django Livre e a Escravidão

Alessandra Loyola[1]

 

No ano da reeleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, o cinema recebia outro brilhante longa de Tarantino e que também seria o primeiro de sua carreira encenado em um cenário que foi fundamental em sua cultura cinéfila: o Western. O filme era  Django Livre, título retirado da enorme simpatia do cineastas à recriação do Velho Oeste pelo olhar de diretores italianos como Sergio Leone e Sergio Corbucci.

O filme se passa no sul dos EUA dois anos antes da Guerra de Secessão - um cenário interessante para a história do filme, pois as tensões do pré-guerra e suas funestas consequências são anunciadas ali - e inicialmente é apresentado o alemão Dr. Schultz (Chistopher Waltz, de Spectre) que apesar de ser dentista leva a vida como um caçador de recompensas que para seu próximo ganho necessita da ajuda de um escravo que conhece o alvo próximo alvo do alemão. Aí entra em cena Django (Jammie Foxx, de Ray). Shulz propõe então que se o mesmo o ajudar após o trabalho concluído lhe concederá sua alforria e alguns dólares; estando de acordo com a oferta ambos vão e realizam o serviço. Uma vez concluída sua tarefa, Django, agora um homem livre, declara que seu próximo passo é resgatar sua esposa, Broomhilda (Kerry Washington (da série Scandal) tal fato chama a atenção do Dr. Schultz, que faz uma analogia entre a história do liberto e o folclore alemão com a lenda da Saga dos Volsungos, uma guerreira que foi colocada em um castelo cercado por um dragão, o que prontamente faz o alemão a ajudá-lo e juntos partem em direção à próxima jornada.

Nessa perspectiva, a pergunta a ser feita enquanto se assiste o longa metragem de 2 horas e 45 minutos é: passados dez anos, o que essa narrativa tem a nos dizer?

Primeiramente, é importante compreender que o filme se passa no contexto escravocrata do sul e oeste estadunidenses dois anos antes da escravidão ser abolida, apresentando de forma clara a tortura e o terror que foi a escravidão para o negro. Ademais, uma questão importante é que o foco da história está na  busca de um negro liberto por sua esposa , essa a qual está em Candyland (uma piada por não ser uma terra de candura ou doce), a quarta maior plantação de algodão do estado do Mississipi, demonstrando, portanto que não será fácil seu resgate, uma vez que a mão de obra escrava era a base do latifúndio da época. É a simbologia do dragão.

Assim que Django começa sua "nova vida" ao lado do Dr. ele sai por ai montado em um cavalo, o que acaba por gerar espanto a todos que os vêem, sejam negros ou brancos. Em outros momentos no filme a incredulidade de um negro estar fazendo determinada ação é demonstrada, como quando Django é apresentado como o valete de Schultz, ou quando o próprio escravo da Casa Grande, Stepen, inicialmente se recusa a arrumar um quarto para o negro, dizendo até que se o patrão permitisse isso seria necessário queimar os lençóis e a cama.

O ideal é que os espantos como os citados se findassem junto a abolição da escravidão, no entanto até hoje a população preta tem de lidar com os mesmos olhares de espanto quando assumem altos cargos, ganham prêmios renomados ou fazem qualquer coisa que tenha o respeito ou admiração da supremacia branca ou até mesmo de negros que acabam por demonstrar  um racismo em diálogo com a classe social.

Outra crítica presente no filme é a da normalidade que circunda escravidão, apresentada de forma brutal quando o dono de escravos Calvin Candie manda que matem um escravo fugido, D’Artagnan, sendo comido por cachorros e apenas o Dr. fica aparentemente incomodado com a cena, Candie, não satisfeito, questiona Django sobre o porquê do espanto de Schultz, e ele responde que o parceiro não está tão familiarizado com os americanos como ele. Nesse ponto, o diretor nos remete a um Alexis de Tocqueville, um clássico das Ciências Sociais que fez sua obra-prima a partir de um estudo comparativo entre a Europa e os EUA. “Estar acostumado com os americanos’’ era estar acostumado a brutalidade que envolvia a escravidão e é estar acostumado com a violência e a negligência das autoridades para com a minoria negra social atual.


É interessante também a percepção de que durante sua trajetória Django tem que ouvir atrocidades e lidar até mesmo com hierarquias estabelecidas pelos os próprios escravos - algo que, de forma análoga, lembra o que por vezes próprio movimento negro atual faz – tornando notório que, às vezes, tomado pela dor, o oprimido pensa apenas em como é possível causar a mesma sensação ao outro. O grande nó oferecido pelo diretor é quando percebemos que o grande vilão do filme é Samuel L. Jackson (Os oito odiados) que magnificamente interpreta Stepen, o cérebro da fazenda de Leonardo DiCaprio (O regresso).

 Além disso, no filme há referências satíricas como o simulacro da formação da Ku Klux Klan e o dilema quanto ao buraco da máscara na região dos olhos que “da próxima vez será melhor”.  Outra questão são os detalhes irônicos presentes na obra, como a ignorância de Candie que apesar de gostar da cultura francesa e de preferir ser chamado de Monsieur Candie não sabe uma palavra em francês e em contraste tem uma escrava que fala fluentemente o alemão. Nesse ponto, Tarantino inverte Hery James, cujos personagens americanos são corrompidos pelos europeus, aqui, Shulz, um antepassado do “caçador de judeus” vivido pelo mesmo ator em Bastardos Inglórios do mesmo diretor, se indigna com a devassidão moral da escravidão que se reflete em todos os estratos sociais, do senhor ao escravo.

Django Livre  é um bom filme, coloca de maneira inteligente  a crítica ao sistema escravocrata e permite uma aplicação e nosso cotidiano enquanto houver preconceito racial. Mescla ação, humor, violência, sátira naquela que é a maior homenagem de Tarantino à obra de sua referência maior (cada vez mais influente no amadurecimento do diretor americano), o clássico Três Homens em Conflito (1966). O filme era um alerta para a sociedade americana. Não bastava ter um negro na presidência por conta da “representatividade”, mas mudar uma estrutura econômica de uma sociedade escravocrata marcada pela violência e exclusão para homens e mulheres, pois se o “lugar de fala” fosse determinante não se explicaria a quantidade maciça de Stepens terem votado na eleição presidencial seguinte no herdeiro de Candyland.


[1] Graduanda em Letras - UERJ

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 15 - DEBATENDO AS PRIVATIZAÇÕES


As coisas que perdemos no fogo da Nossa parte de noite

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A realidade pode conter o macabro e o perturbador e As coisas que perdemos no fogo (2016 lá e 2017 aqui pela Intrínseca), a coletânea de contos da escritora argentina Mariana Enríquez, faz isso com maestria mobilizando o medo e o terror cotidiano que vem das profundezas históricas de seu país (e não só) e deságua no cenário do governo de Mauricio Macri (2015-2019). Em um olhar de relance, as doze narrativas da escritora argentina poderiam parecer surreais para os leitores brasileiros. Entretanto, elas se mostram com uma familiaridade estonteante e o cotidiano se transforma em pesadelo.

Personagens e lugares comuns não ocultam um universo insólito e comum de argentinos e brasileiros e tal como ocorreu com o apagão de 2001 lá e cá e que fez desnudar a luz do dia que a crise energética que vivenciamos era o resultado de opções históricas equivocadas de nossas ditaduras, que não planejaram a expansão e a diversificação do sistema elétrico.

São esses os elementos junto com os da pandemia e não arroubos revogatórios que devem nos informar na leitura atenta do Decreto argentino nº 389, de 16 de junho de 2021 que dá nova redação ao artigo 4 e os apenas derrogados artigos 6, 8, 9, 10 e 11 do Decreto nº 882, de 31 de outubro de 2017, reposicionando a política anterior pró-mercado dos ativos energéticos agora considerados estratégicos.

O novo decreto retoma a regulamentação e a política iniciada em 2005 com Néstor Kirchner (1950-2010) com o Fundo de Investimento no Mercado Atacadista de Energia Elétrica (FONINVEMEM), que busca uma articulação de ações com o setor privado. O FONINVEMEM estabeleceu que as dívidas que o Estado tinha com os entes privados seriam saldados mediante a cobrança futura dos valores obtidos com a geração de energia elétrica mais suja carbonácea das usinas termoelétricas Manuel Belgrano e José de San Martín e que seriam construídas com o remanejamento do orçamento das dívidas e novos aportes do Estado. Ao reposicionar as dívidas, essas usinas seriam transferidas para o patrimônio do Estado. Havia uma projeção de que a demanda por energia estaria em ascensão ao considerar a economia em constante crescimento, diferente do que acabou por gerar a crise de governo.

O Decreto 389/2021 de igual forma recupera a área exploratória no oceano atlântico sul argentino (óleo e gás, energia mais suja, pois carbonácea) localizada na bacia das Malvinas onde, através da Integración Energética Argentina S.A. (IEASA), onde o Estado durante os anos 2014 e 2015 fez investimentos em estudos técnicos de 50 milhões de dólares. Apesar de contar com um programa de perfuração exploratório, em 2017 a área ficou a cargo do Estado junto com todos os estudos sísmicos, técnicos, econômicos e financeiros que a IEASA tinha desenvolvido com enorme esforço próprio.



O novo decreto revaloriza esse projeto para que, além de retomar e dar sequência ao FONINVEMEM se redefine por força da pandemia a presença do Estado argentino com a IEASA na bacia das Malvinas a poucos quilômetros das ilhas da discórdia.

Sob vários aspectos, a Argentina está redirecionando os destinos da IEASA segundo as diretrizes e promessas propostas no ano de sua criação, em 2004. Uma empresa energética estratégica. Vetor de desenvolvimento energético com inclusão social. O estado atual do setor onde se busca resolver a equação energética e se define o desenvolvimento planetário e produtivo da República Argentina, sempre em colaboração com os demais atores para que a equação inclua a todos.

Contando com a lucidez a IEASA e o Estado sabe que não farão essa mudança de rumos sozinhos, pois é necessário contar com o acompanhamento inabalável da república e da democracia que reconhecem na IEASA o valor do esforço, dedicação e perseverança exigidos pelas suas equipes para cumprir os objetivos traçados. A partir da pandemia, o Estado argentino mais uma vez se reposiciona como ator dentro do setor de energia.

Mas onde está a beleza literária nisso tudo? É que Nossa parte de noite (dezembro de 2019 lá e 2021 aqui pela Intrínseca) romance da Mariana Enríquez mostra que as crises também existem para fazer com que aqueles que souberem decifrar seus sinais como o pai Gaspar (não seria ele um Gasparzinho?) possam crescer e aprender com os erros, e até mesmo tornar visível a escuridão para que o seu filho Juan não seja tragado por ela. E esse episódio literário energético nos ajuda a entender o que está acontecendo conosco e nos conecta com certas partes que queríamos cobrir, mas que a bandeira vermelha tarifária nos patamares 1 e 2 não nos deixam calar.

 

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2022


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 5

Não olhe para trás

Por Pablo Spinelli

 

O filme O ataque dos cães, disponível na Netflix, cujo título em português é muito ruim diante da tradução mais correta e pertinente, O poder do cão, tem um roteiro muito simples. Uma dupla de irmãos saiu da costa leste para criarem gado em uma fazenda em Montana. Um dos irmãos acaba por se casar com a dona de um pequeno restaurante local, viúva, que tem um filho que destoa do ambiente rústico pela sua sensibilidade e introspecção. O irmão mais jovem decide por infernizar a vida da cunhada e de seu filho em uma tensa construção de tortura psicológica.

Nesses termos, nada faz parecer que essa história seja um faroeste ambientando na década de 1920 pela falta de pistoleiros, saloon, duelos e outros clichês do gênero. O filme, dirigido por Jane Campion, a segunda mulher na história do Oscar a ser indicada a categoria de direção por O Piano, é um complexo drama psicológico onde os personagens apresentam várias camadas e o duelo de pistolas é substituído pelo domínio do conhecimento e do poder de sedução, temas também presentes no filme O Piano – também tinha um personagem bruto que foi interpretado por Sam Neill (Peaky Blinders). Nesse caso, a trama se concentra no quarteto brilhantemente vivido por Benedict Cumberbatch (Dr. Estranho), Jesse Plamons (O Irlandês e Breaking Bad), Kirsten Dunst (Entrevista com Vampiro) e o surpreendente Kodi Smith-McPhee (X-Men: Apocalypse) que usa com inteligência uma imagem andrógina que enfrenta a brutalidade do personagem de Cumberbatch. Aqui, o intérprete de Sherlock, faz uma de suas melhores performances, ao interpretar um vaqueiro rude e grosseiro que cultiva uma animosidade com os pais e que tem o hábito estranho de dormir na cama junto com o irmão – hábito rompido com o casamento daquele, criador de animosidades com indígenas, cultivador de um passado que fez do linguista formado em Yale um vaqueiro nas mãos do falecido e cultuado Bronco Henry, aquele que o teria feito ser homem. O espectador tem que entender que o vaqueiro é uma persona de Cumberbatch, pois ele não era daquele meio e foi introduzido por Bronco Henry nas planícies selvagens do Meio-Oeste.

Foto: Marcio Jose Sanchez/AP

Plamons tem uma pequena participação, mas trabalhada com minucioso silêncio e olhares, uma relação de respeito e imposição à fera selvagem que é seu irmão. Dunst, mulher de Plamons na vida real, tem uma atuação sem exageros para destacar a fragilidade mental e emocional que passa na segunda metade do filme nas mãos do cunhado. A cena do ensaio ao piano é exemplar desse jogo psicológico. Certeira a sua indicação ao Oscar, assim como as de Benedict e Smith-McPhee. Jane Campion faz referências não só ao seu filme de maior sucesso, como também a Rebecca – a mulher inesquecível (1940) e a O Segredo de Brokeback Mountain (2005), sem ficar abaixo de nenhuma delas. Passa pela brutalidade do Oeste ao drama e suspense psicológicos em um cenário que remonta a uma sociedade ateniense clássica, repleta de homoerotismo e com as mulheres em um papel secundário. A imensidão da paisagem numa excelente fotografia propositalmente dialoga com os infernos interiores dos personagens. A luz externa e as sombras da casa são um parâmetro das almas e da luz da ciência pode sair uma solução das sombras. Todavia, o filme é uma referência bíblica do Velho Testamento.

O filme, na modesta opinião de quem escreve, foi a melhor produção americana do ano. Ficou irônico ouvir a primeira e melhor Mary Jane chamar por “Peter” ao longo do filme em tom de angústia e medo. Na semana que se relembrou a trágico episódio do ataque ao Capitólio há um ano no coração da democracia americana, país da Revolução – em termos de Hannah Arendt - que colocou vários ideais iluministas em prática, o filme tem muito a nos dizer sobre o poder do ressentimento, seja para entendermos o eleitor de Trump, seja para pensar em nem olhar para cima e nem para trás, como o principal partido de oposição ao presidente reiteradamente faz. É necessário sair do saudosismo de um passado idílico que nunca existiu com Bronco Henry e pensar em um programa, especialmente para os jovens, pois uma geração abaixo de vinte anos não viu o impacto da festa popular ocorrida em Brasília em 2003 e nem viu a transição elegante e republicana da troca de faixas de um sociólogo para um torneiro mecânico, ambos representantes da socialdemocracia germinada em São Paulo. Esses jovens abraçaram Bronco Henry e precisam de uma vacina democrática e republicana.


PS: Temos um leve SPOILER nas linhas abaixo.

Interessante notar o silêncio dos identitários aguerridos no cancelamento quanto ao que o filme propôs. Um homossexual usando de sadismo contra uma mulher. Se falar que o filme é homofóbico vai ter o nó com o personagem jovem. Se tentar explicar a violência pela força do meio acaba por legitimar o machismo gay. Se disser que a mulher é fraca será homofobia. Tem que torcer muito para que Duna ganhe o Oscar, pois será um golpe no fascismo de esquerda que foi engendrado...por uma mulher.


quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 14 - SOBRE O EMPREGO: SEM LUGAR AO SOL E OS SEGUIDORES DE D. QUIXOTE


Imagem retirada de Brasil de Fato

Sobre as medidas urgentes espanholas com vistas a reforma trabalhista

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A pandemia da COVID-19 é uma emergência de saúde pública internacional, que originou grandes impactos a nível social e econômico, e que se teve de dar uma resposta imediata no plano sanitário, bem como através de um conjunto significativo de medidas de apoio aos desempregados e desempregadas, as empregadas e empregados e seus rendimentos.

A União Europeia (UE), tomando consciência da severidade da crise pandémica e dos seus profundos efeitos nos diferentes Estados-Membros, promoveu uma resposta coletiva e concertada, tendo os Estados-Membros acordado simultaneamente o Quadro Financeiro Plurianual para o período 2021-2027 e os instrumentos de recuperação europeia, designado de Próxima Geração da UE, aprovado no Conselho Europeu, em julho de 2020, ou seja, já havia a previsão de perdas geracionais ainda no princípio do primeiro ano pandêmico. Com efeito, os Estados-Membros comprometeram-se com uma visão de futuro conjunto, para dar forma nas mitigações dos efeitos que decorreriam da capacidade de resposta totalmente assimétrica dos Estados-Membros.

É neste contexto que se deve falar da proposta de reforma trabalhista na Espanha, pois evoca um processo complexo de tempos diferentes onde a pandemia cruza um conjunto longuíssimo de mudanças que não conseguiram acabar com os seus graves problemas no seu mercado de trabalho. A conjunção de pandemia com a história institucional trabalhista espanhola extremamente complexa fez com que o trabalho por lá (e não só lá) fosse afetado ainda mais pelo desemprego, pelas más condições de emprego e impede a plena cidadania no trabalho.

Desde a aprovação do Estatuto dos Trabalhadores em 1980, logo que foi lançada a Democracia do Pacto de Moncloa, trabalhar em Espanha seguiu e segue carregando um pesado fardo da falta de liberdade por conta do caudilho Francisco Franco (1892-1975) que acabou por impedir que uma parte significativa das trabalhadoras e trabalhadores de reivindicar plenamente seus direitos e criou uma inércia, de dimensão epocal, que com a pandemia só se agravou.

Assim, é determinante entender que a proposta de reforma trabalhista espanhola de dezembro de 2021 se insere num reclame da UE, que já havia insistido na necessidade de se enfrentar as carências desse mercado de trabalho que praticamente constitui-se numa anomalia naquele continente.

Por isso que essa iniciativa conta com os procedimentos dos fundos europeus de inscrição orçamentária e da assunção de encargos plurianuais, e respectivos mecanismos de controle, relativamente a instrumentos financeiros europeus, enquadrados na Próxima Geração da UE, cujos programas para Espanha seguem elegíveis e legalmente estabelecidos na proposta da reforma, o que permite a execução de despesa para 2022 por conta desses programas.

Pois foi, também, estabelecido o modelo de governança dos fundos europeus atribuídos a Espanha através do Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência (PRTR), que foi formalmente aprovado pelas instituições europeias (através do Conselho de Assuntos Económicos e Financeiros – ECOFIN) em 13 de julho de 2021, após ter sido adotado pelo Conselho de Ministros a 27 de abril, apresentado à Comissão Europeia em 30 de abril, sendo positivamente avaliada por aquelas instituições até junho.


Neste contexto, a proposta de reforma trabalhista espanhola nada tem a ver com visões simplistas revogatórias e trata-se sim de medidas urgentes por conta do enfrentamento da UE frente a COVID-19, da qual a Espanha é participe. Esse regime de urgência, inclusive de execução orçamentária e de agilização de procedimentos e definição de competências referentes à execução da proposta de reforma que integra o PRTR aprovado pela Comissão Europeia, por parte das ações das entidades da administração ministerial e da segurança social espanhola, de modo a agilizar a concretização dessas medidas, de forma célere e transparente.

Não à toa que recentemente (novembro e dezembro de 2021) o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman em suas colunas semanais no New York Times, que tem recebido versões das mesmas no jornal Folha de São Paulo explica por que a Europa está se saindo melhor do que os EUA na recuperação do mercado de trabalho. É isso o que de fato está em questão e que podemos refletir para sairmos do nosso atoleiro de ideias e imaginação no nosso bicentenário.

 

Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 2022




[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/ NÚMERO 13 - PENSAR UM PROGRAMA


“Não Olhe para Cima” e a Casa Comum

 

Marcio Junior[1]

 

Em entrevista por conta do lançamento do filme O Lobo de Wall Street, produzido e protagonizado por Leonardo DiCaprio, Margot Robbie (que contracenou sendo a esposa do personagem de Leo) contou uma anedota engraçada: o tempo interminável que Leo falava sem parar sobre a questão ambiental, tema caro para o ator. Nas palavras de sua colega, em tom reclamão, "ele é muito nerd nisso". Talvez ele tenha falado demais ou algo do tipo e isso pode ter chateado a moça no set, mas, a despeito disso, ela tem razão no fato em si. Leo é aplicado em outras questões para além da atividade de ator.

Em 24 de maio de 2015, data da Solenidade de Pentecostes daquele ano, Francisco (que já recebeu Leo no Vaticano) publicou a encíclica Laudato Si[2] (Louvado Sejas), onde inicia citando o Cântico das Criaturas, de Francisco de Assis, que intitula o texto[3]. Trata-se de uma discussão acerca de linhas de ação, e não só, para a proteção da Casa Comum. Foi, na prática, o documento com o qual a Igreja Católica entrou na discussão que resultou no Acordo de Paris, a COP21. Em um dos pontos, acentua que as estratégias de compra e venda de créditos de emissão de gases poluentes[4], se não viabilizadas e praticadas objetivamente, não seriam eficazes como ação de mitigação do efeito estufa. No Acordo de Paris[5], seu Artigo 6 propõe as balizas para essa tarefa e elas seriam de responsabilidade das partes, ou seja, dos países signatários e, consequentemente, dos seus governos.

Leonardo DiCaprio, que anos atrás personificou um desenhista pobre que morreu após o naufrágio de um navio a carvão em 1912, discursou em Glasgow, na COP26, em novembro do ano que terminou a pouco. Este evento marcou, entre muitas coisas, o consenso das partes sobre as balizas objetivas relacionadas ao mercado de carbono, construindo as regras e procedimentos acerca do Artigo 6 do Acordo de Paris[6].

Em 2020 a ConaREDD++[7] publicou suas três resoluções existentes até o momento. A Resolução Nº 3[8], em especial, reconhece um mercado voluntário de carbono florestal, porém é de tamanho mínimo, sem nem ao menos definir o que é isso. Em outras palavras, letra morta. O problema, a nosso ver, é maior do que parece: trata-se de problemas múltiplos, mas todos se voltam para a ausência de programa político.



Em Não Olhe para Cima (2021), de Adam McKay, Leonardo DiCaprio se transforma em Dr. Randall Mindy, astrônomo que, junto a Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), sua aluna e orientanda, precisam convencer o mundo de que o planeta Terra será atingido por um cometa e toda vida será extinta. A maioria, porém, não lhe dá ouvidos, inclusive a Presidente dos EUA, negacionista. A saída das personagens, então, é gritar a plenos pulmões ao mundo o perigo que todos correm. Sem política, no grito.

Entre nós, mesmo se fosse vontade daqueles que compõem o governo discutir seriamente e fazer coisas quanto a essa questão, haveria pessoas que dariam conta do recado, com espírito republicano e democrático para tal? Os estudiosos dessas questões não podem e não devem ajudar na preparação de um programa político para qualquer governo eleito em 2022, o que inclui a possibilidade de reeleição do governo que está em exercício agora? Trata-se de uma questão urgente para o mundo e não é bom, nem para nós nem pra ninguém, que peguemos o bonde andando. Não são as bravatas e a estupidez contra quem quer que seja que irão ajudar, mas sim uma política programática e inteligente. Ou será que estarmos em maus lençóis, principalmente educacionais, não seja algo de responsabilidade de todos e todas ou até mesmo daqueles que tem como atividade fazer ciência?

“Nada deste mundo nos é indiferente”. Escreveu Francisco.



[1] Professor do Instituto Devecchi. Mestre em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ.

[3]“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.

[4]Em síntese, o mercado de carbono consiste na agregação de um valor à quantidade emitida de gases do efeito estufa por um país, em forma de crédito. Caso este país não emitisse a quantidade de gases que lhe é permitido em determinado tempo, a diferença poderia ser vendida para outro país. Este mercado tem gênese na Rio 92, cuja cidade-sede é de onde escrevo este texto.

[7]A Comissão Nacional para REDD++, presidida pelo Ministério do Meio Ambiente e com vários Ministérios a integrando, foi criada em 2015 e implementado sob o Governo Temer, para coordenar os trabalhos de redução de emissões provenientes de degradação florestal, afim de atender os requisitos para receber os incentivos financeiros estabelecidos no Marco de Varsóvia para REDD++, resultante da COP19, de 2013.