terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 6


Dez anos de Django Livre e a Escravidão

Alessandra Loyola[1]

 

No ano da reeleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, o cinema recebia outro brilhante longa de Tarantino e que também seria o primeiro de sua carreira encenado em um cenário que foi fundamental em sua cultura cinéfila: o Western. O filme era  Django Livre, título retirado da enorme simpatia do cineastas à recriação do Velho Oeste pelo olhar de diretores italianos como Sergio Leone e Sergio Corbucci.

O filme se passa no sul dos EUA dois anos antes da Guerra de Secessão - um cenário interessante para a história do filme, pois as tensões do pré-guerra e suas funestas consequências são anunciadas ali - e inicialmente é apresentado o alemão Dr. Schultz (Chistopher Waltz, de Spectre) que apesar de ser dentista leva a vida como um caçador de recompensas que para seu próximo ganho necessita da ajuda de um escravo que conhece o alvo próximo alvo do alemão. Aí entra em cena Django (Jammie Foxx, de Ray). Shulz propõe então que se o mesmo o ajudar após o trabalho concluído lhe concederá sua alforria e alguns dólares; estando de acordo com a oferta ambos vão e realizam o serviço. Uma vez concluída sua tarefa, Django, agora um homem livre, declara que seu próximo passo é resgatar sua esposa, Broomhilda (Kerry Washington (da série Scandal) tal fato chama a atenção do Dr. Schultz, que faz uma analogia entre a história do liberto e o folclore alemão com a lenda da Saga dos Volsungos, uma guerreira que foi colocada em um castelo cercado por um dragão, o que prontamente faz o alemão a ajudá-lo e juntos partem em direção à próxima jornada.

Nessa perspectiva, a pergunta a ser feita enquanto se assiste o longa metragem de 2 horas e 45 minutos é: passados dez anos, o que essa narrativa tem a nos dizer?

Primeiramente, é importante compreender que o filme se passa no contexto escravocrata do sul e oeste estadunidenses dois anos antes da escravidão ser abolida, apresentando de forma clara a tortura e o terror que foi a escravidão para o negro. Ademais, uma questão importante é que o foco da história está na  busca de um negro liberto por sua esposa , essa a qual está em Candyland (uma piada por não ser uma terra de candura ou doce), a quarta maior plantação de algodão do estado do Mississipi, demonstrando, portanto que não será fácil seu resgate, uma vez que a mão de obra escrava era a base do latifúndio da época. É a simbologia do dragão.

Assim que Django começa sua "nova vida" ao lado do Dr. ele sai por ai montado em um cavalo, o que acaba por gerar espanto a todos que os vêem, sejam negros ou brancos. Em outros momentos no filme a incredulidade de um negro estar fazendo determinada ação é demonstrada, como quando Django é apresentado como o valete de Schultz, ou quando o próprio escravo da Casa Grande, Stepen, inicialmente se recusa a arrumar um quarto para o negro, dizendo até que se o patrão permitisse isso seria necessário queimar os lençóis e a cama.

O ideal é que os espantos como os citados se findassem junto a abolição da escravidão, no entanto até hoje a população preta tem de lidar com os mesmos olhares de espanto quando assumem altos cargos, ganham prêmios renomados ou fazem qualquer coisa que tenha o respeito ou admiração da supremacia branca ou até mesmo de negros que acabam por demonstrar  um racismo em diálogo com a classe social.

Outra crítica presente no filme é a da normalidade que circunda escravidão, apresentada de forma brutal quando o dono de escravos Calvin Candie manda que matem um escravo fugido, D’Artagnan, sendo comido por cachorros e apenas o Dr. fica aparentemente incomodado com a cena, Candie, não satisfeito, questiona Django sobre o porquê do espanto de Schultz, e ele responde que o parceiro não está tão familiarizado com os americanos como ele. Nesse ponto, o diretor nos remete a um Alexis de Tocqueville, um clássico das Ciências Sociais que fez sua obra-prima a partir de um estudo comparativo entre a Europa e os EUA. “Estar acostumado com os americanos’’ era estar acostumado a brutalidade que envolvia a escravidão e é estar acostumado com a violência e a negligência das autoridades para com a minoria negra social atual.


É interessante também a percepção de que durante sua trajetória Django tem que ouvir atrocidades e lidar até mesmo com hierarquias estabelecidas pelos os próprios escravos - algo que, de forma análoga, lembra o que por vezes próprio movimento negro atual faz – tornando notório que, às vezes, tomado pela dor, o oprimido pensa apenas em como é possível causar a mesma sensação ao outro. O grande nó oferecido pelo diretor é quando percebemos que o grande vilão do filme é Samuel L. Jackson (Os oito odiados) que magnificamente interpreta Stepen, o cérebro da fazenda de Leonardo DiCaprio (O regresso).

 Além disso, no filme há referências satíricas como o simulacro da formação da Ku Klux Klan e o dilema quanto ao buraco da máscara na região dos olhos que “da próxima vez será melhor”.  Outra questão são os detalhes irônicos presentes na obra, como a ignorância de Candie que apesar de gostar da cultura francesa e de preferir ser chamado de Monsieur Candie não sabe uma palavra em francês e em contraste tem uma escrava que fala fluentemente o alemão. Nesse ponto, Tarantino inverte Hery James, cujos personagens americanos são corrompidos pelos europeus, aqui, Shulz, um antepassado do “caçador de judeus” vivido pelo mesmo ator em Bastardos Inglórios do mesmo diretor, se indigna com a devassidão moral da escravidão que se reflete em todos os estratos sociais, do senhor ao escravo.

Django Livre  é um bom filme, coloca de maneira inteligente  a crítica ao sistema escravocrata e permite uma aplicação e nosso cotidiano enquanto houver preconceito racial. Mescla ação, humor, violência, sátira naquela que é a maior homenagem de Tarantino à obra de sua referência maior (cada vez mais influente no amadurecimento do diretor americano), o clássico Três Homens em Conflito (1966). O filme era um alerta para a sociedade americana. Não bastava ter um negro na presidência por conta da “representatividade”, mas mudar uma estrutura econômica de uma sociedade escravocrata marcada pela violência e exclusão para homens e mulheres, pois se o “lugar de fala” fosse determinante não se explicaria a quantidade maciça de Stepens terem votado na eleição presidencial seguinte no herdeiro de Candyland.


[1] Graduanda em Letras - UERJ

3 comentários:

Pablo De Las Torres disse...

Muito boa lembrança de resgatar esse filme. É importante resgatar a cultura para o ano decisivo de 2022 para nós, brasileiros democratas.

John Lennon disse...

Ótimo comentário sobre o filme, ja tinha visto, mas revi devido ao artigo, parabéns!

Ricardo Marinho disse...

Texto corajoso ao tocar numa macula aberta de nossa trajetória de 200 anos que à despeito dos esforços de Joaquim Nabuco e tantos outros no XIX precisou ser musicada pelo gênio musical de Caetano Veloso no início do XXI para nos recordar que a escravidão vive seus transformismos e suas fantasmagorias seguem a nos assombrar. Uma coisa que talvez a Alessandra Loyola nos traga futuramente é a discussão aberta a respeito do gênero e natureza literária dos roteiros cinematográficos.