Dez
anos de Django Livre e a Escravidão
Alessandra
Loyola[1]
No
ano da reeleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, o cinema
recebia outro brilhante longa de Tarantino e que também seria o primeiro de sua
carreira encenado em um cenário que foi fundamental em sua cultura cinéfila: o
Western. O filme era Django Livre,
título retirado da enorme simpatia do cineastas à recriação do Velho Oeste pelo
olhar de diretores italianos como Sergio Leone e Sergio Corbucci.
O
filme se passa no sul dos EUA dois anos antes da Guerra de Secessão - um
cenário interessante para a história do filme, pois as tensões do pré-guerra e
suas funestas consequências são anunciadas ali - e inicialmente é apresentado o
alemão Dr. Schultz (Chistopher Waltz, de Spectre) que apesar de ser dentista
leva a vida como um caçador de recompensas que para seu próximo ganho necessita
da ajuda de um escravo que conhece o alvo próximo alvo do alemão. Aí entra em
cena Django (Jammie Foxx, de Ray). Shulz propõe então que se o mesmo o ajudar
após o trabalho concluído lhe concederá sua alforria e alguns dólares; estando
de acordo com a oferta ambos vão e realizam o serviço. Uma vez concluída sua tarefa,
Django, agora um homem livre, declara que seu próximo passo é resgatar sua
esposa, Broomhilda (Kerry Washington (da série Scandal) tal fato chama a
atenção do Dr. Schultz, que faz uma analogia entre a história do liberto e o
folclore alemão com a lenda da Saga dos Volsungos, uma guerreira que foi
colocada em um castelo cercado por um dragão, o que prontamente faz o alemão a
ajudá-lo e juntos partem em direção à próxima jornada.
Nessa
perspectiva, a pergunta a ser feita enquanto se assiste o longa metragem de 2
horas e 45 minutos é: passados dez anos, o que essa narrativa tem a nos dizer?
Primeiramente,
é importante compreender que o filme se passa no contexto escravocrata do sul e
oeste estadunidenses dois anos antes da escravidão ser abolida, apresentando de
forma clara a tortura e o terror que foi a escravidão para o negro. Ademais,
uma questão importante é que o foco da história está na busca de um negro liberto por sua esposa ,
essa a qual está em Candyland (uma piada por não ser uma terra de candura ou
doce), a quarta maior plantação de algodão do estado do Mississipi,
demonstrando, portanto que não será fácil seu resgate, uma vez que a mão de
obra escrava era a base do latifúndio da época. É a simbologia do dragão.
Assim
que Django começa sua "nova vida" ao lado do Dr. ele sai por ai
montado em um cavalo, o que acaba por gerar espanto a todos que os vêem, sejam
negros ou brancos. Em outros momentos no filme a incredulidade de um negro
estar fazendo determinada ação é demonstrada, como quando Django é apresentado
como o valete de Schultz, ou quando o próprio escravo da Casa Grande, Stepen, inicialmente
se recusa a arrumar um quarto para o negro, dizendo até que se o patrão
permitisse isso seria necessário queimar os lençóis e a cama.
O
ideal é que os espantos como os citados se findassem junto a abolição da
escravidão, no entanto até hoje a população preta tem de lidar com os mesmos
olhares de espanto quando assumem altos cargos, ganham prêmios renomados ou
fazem qualquer coisa que tenha o respeito ou admiração da supremacia branca ou
até mesmo de negros que acabam por demonstrar
um racismo em diálogo com a classe social.
É
interessante também a percepção de que durante sua trajetória Django tem que
ouvir atrocidades e lidar até mesmo com hierarquias estabelecidas pelos os
próprios escravos - algo que, de forma análoga, lembra o que por vezes próprio
movimento negro atual faz – tornando notório que, às vezes, tomado pela dor, o
oprimido pensa apenas em como é possível causar a mesma sensação ao outro. O
grande nó oferecido pelo diretor é quando percebemos que o grande vilão do
filme é Samuel L. Jackson (Os oito odiados) que magnificamente interpreta
Stepen, o cérebro da fazenda de Leonardo DiCaprio (O regresso).
Além disso, no filme há referências satíricas
como o simulacro da formação da Ku Klux Klan e o dilema quanto ao buraco da máscara
na região dos olhos que “da próxima vez será melhor”. Outra questão são
os detalhes irônicos presentes na obra, como a ignorância de Candie que apesar
de gostar da cultura francesa e de preferir ser chamado de Monsieur Candie não
sabe uma palavra em francês e em contraste tem uma escrava que fala
fluentemente o alemão. Nesse ponto, Tarantino inverte Hery James, cujos
personagens americanos são corrompidos pelos europeus, aqui, Shulz, um
antepassado do “caçador de judeus” vivido pelo mesmo ator em Bastardos
Inglórios do mesmo diretor, se indigna com a devassidão moral da escravidão que
se reflete em todos os estratos sociais, do senhor ao escravo.
Django
Livre é um bom filme, coloca de maneira inteligente a crítica ao
sistema escravocrata e permite uma aplicação e nosso cotidiano enquanto houver
preconceito racial. Mescla ação, humor, violência, sátira naquela que é a maior
homenagem de Tarantino à obra de sua referência maior (cada vez mais influente
no amadurecimento do diretor americano), o clássico Três Homens em Conflito
(1966). O filme era um alerta para a sociedade americana. Não bastava ter um
negro na presidência por conta da “representatividade”, mas mudar uma estrutura
econômica de uma sociedade escravocrata marcada pela violência e exclusão para
homens e mulheres, pois se o “lugar de fala” fosse determinante não se
explicaria a quantidade maciça de Stepens terem votado na eleição presidencial
seguinte no herdeiro de Candyland.
[1]
Graduanda em Letras - UERJ
3 comentários:
Muito boa lembrança de resgatar esse filme. É importante resgatar a cultura para o ano decisivo de 2022 para nós, brasileiros democratas.
Ótimo comentário sobre o filme, ja tinha visto, mas revi devido ao artigo, parabéns!
Texto corajoso ao tocar numa macula aberta de nossa trajetória de 200 anos que à despeito dos esforços de Joaquim Nabuco e tantos outros no XIX precisou ser musicada pelo gênio musical de Caetano Veloso no início do XXI para nos recordar que a escravidão vive seus transformismos e suas fantasmagorias seguem a nos assombrar. Uma coisa que talvez a Alessandra Loyola nos traga futuramente é a discussão aberta a respeito do gênero e natureza literária dos roteiros cinematográficos.
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