sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 006 - CRISES DA DEMOCRACIA

Desemperrando as Democracias

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Que as democracias na América vinham sendo emperradas podia parecer ser uma lenda a poucos anos atrás. Nos últimos tempos não mais. Os motivos desse estado de coisas são bem conhecidos e os eventos também. Mas é conveniente revisar rapidamente três histórias e suas raízes.

Brasil, Peru e El Salvador são as experiências icônicas da conjuntura. Em 8 de janeiro próximo, uma multidão invadiu o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palacio do Planalto da Presidência em Brasília, protestando contra uma fake news de fraude eleitoral contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, sem a menor evidência correspondente. Eles causaram estragos, fizeram com que imagens vergonhosas - análogas a do ataque ao Capitólio dos Estados Unidos da América em 6 de janeiro de 2021 - fossem transmitidas em todo o mundo e fizeram com que o novo governo recorresse as prisões, investigações e atos simbólicos em defesa da democracia, mostrando sua robustez. Não tanto pelos manifestantes, mas pelo grande número de brasileiros que, de fato, acreditam nessas teorias da conspiração sobre o resultado das eleições. O evento vai além da ideia dominante de polarização, que pode até existir em outros países ou mesmo no Brasil em outros momentos.

O exemplo do Peru é diferente. A disputa lá não foi sobre os resultados eleitorais, mas em relação ao conjunto de instituições existentes no país. Certamente, as eleições de 2021, onde Pedro Castillo foi eleito no segundo turno por pequena diferença, foram questionadas por seus adversários. E o Congresso peruano, poderoso devido ao sistema híbrido que existe no país, passou um ano e meio dificultando a vida de Castillo, tentando destituí-lo em diversas ocasiões, acusando-o de corrupção e incompetência.


O país de Mariátegui não enfrentava um simples conflito de poderes. Por trás do confronto havia - e hoje mais do que nunca - divisões de classes, regionais e étnicas. Apesar do bom desempenho econômico insustentável deles no conjunto da América desde o ano 2000, subsiste uma reivindicação ancestral da maioria das peruanas e peruanos contra exclusões multifacetadas. Os protestos que começaram no sul do país após a destituição de Castillo e se estenderam até Lima foram violentamente reprimidos - com mais de 50 mortos - e às vezes parecem assumir um caráter quase insurrecional. Os manifestantes exigem a renúncia da Presidente, que substituiu Castillo, eleições imediatas em vez de 2026 - como anunciou Boluarte - e uma Assembleia Constituinte.

Ao contrário do Brasil, onde o andamento econômico tem sido mais difícil, e sem que se culpe a democracia representativa pelos graves atrasos sociais, no Peru esperava-se uma prosperidade graças à democracia, ou pelo menos uma profunda redistribuição. O sentimento também surgiu em outros países: dezenas de milhões de Americanos pedem à sua democracia - nova ou antiga - bem-estar, saúde, educação, moradia, preços justos e melhores empregos. A rigor, a democracia serve para retirar legalmente os governos que não entregam bons resultados e, quando possível, para distribuir de forma mais justa e sustentáveis o crescimento econômico, quando ele existir. Mas isso aconteceu nas velhas democracias após intermináveis lutas, reformas, guerras, eleições e crises: não foi feito de um dia para o outro. As peruanas e peruanos sentem a necessidade premente em exigir mais de sua democracia e isso é bom quando conduzido democraticamente, mas sempre tendo a clareza de que por ela esse intento levará tempo.


Em El Salvador, a democracia deve muito aos seus cidadãos. Ao final de décadas de autoritarismos, violências, pobreza e exílio entre outras intempéries, os acordos de paz de 1992 abriram caminho para um sistema bipartidário de democracia representativa que poderia ter mudado as entranhas do país. As partes em guerra – a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional e as elites salvadorenhas, com o Exército, empresários e partidos políticos - deram uma grande lição de sabedoria e habilidade. Mas tudo o que se seguiu foi para minar essas conquistas. Os quase 30 anos seguintes foram de destruição. A corrupção atingiu extremos e as violências das gangues fez o reembarque no caminho autoritário supostamente apagado.

Nayib Bukele, após eleito em 2019, instalou outra vez a mão autoritária no país. Ao obter resultados contra a violência, o povo o aplaude de acordo com as pesquisas de popularidade, e quase ninguém defende os acordos de paz de Chapultepec e/ou a democracia hoje precária que eles deram origem em outrora. Ele é o ditador mais legal do mundo, um dos líderes mais populares do mundo, e está prestes a ser reeleito - até agora ilegalmente - por ampla margem. Quase toda a sociedade parece aprovar a regressão autoritária, acreditando que isso resolverá seus problemas.

Por enquanto, os partidos, movimentos e lideranças que contribuíram para a instalação de regimes democráticos na América - exceto as ditaduras de Cuba, Nicarágua e Venezuela - tem mantido o ideal democrático vivo, apesar de todas as suas deficiências como ficou claro no encontro da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, as instituições construídas ao longo de várias décadas são preferíveis a qualquer ditadura, mesmo que ainda não proporcionem o tão desejado e digno bem-estar. Novos eventos surgem na Argentina - pelo crescente conflito entre Executivo e Judiciário - e no México, ante a investida do Executivo contra a autoridade eleitoral. A América não é a Europa, onde há tentações autoritárias em vários países - e em alguns governos, como o da Hungria - tem sido rejeitado, até agora, pelos eleitorados sensatos. Mas desemperrar as democracias é o caminho a ser seguido planetariamente.

 

26 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

2 comentários:

John Lennon disse...

Muito bom o artigo.

Pacelli Lopes disse...

É preocupante a necessidade que temos de "desemperrar" nossas democracias para conseguirmos construir um futuro pacífico. Fica claro que a ausência de lideranças democráticas, responsáveis e éticas geram o estado da coisa: regimes democráticos que não conseguem alcançar plenamente seus objetivos mais elementares.