Sobre a importância da reserva de vagas na educação no bicentenário brasileiro
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Tudo começou em fevereiro de 1999. A deputada Nice
Lobão, recém-eleita e empossada em primeiro mandato pelo Partido da Frente
Liberal (PFL) pelo Estado do Maranhão, tornou-se conhecida por ser autora do
Projeto de Lei (PL) N° 73, de 1999, que propôs a reserva de 50% das vagas em
universidade públicas para estudantes oriundos de escolas públicas. O projeto
de lei tramitou por 13 anos até chegar à sanção com vetos em 2012.
Hoje, preocupados com os desafios de nosso tempo
pandêmico, os brasileiros provavelmente ainda dedicam pouca atenção a década da
Lei Nº 12.711 de 29 de agosto de 2012, a era turbulenta que se seguiu. Isso é
lamentável, pois esse período histórico merece nossa observação ardente.
Questões que agitam a política brasileira hoje –
acesso aos serviços cidadãos e direitos, os poderes relativos aos governos
nacional, estadual e municipal, a relação entre democracia política e a
economia, a resposta adequada a pandemia – todas essas são questões que
impactaram a década dessa lei. Mas essa época tem sido mal compreendida.
A década da reserva de vagas refere-se ao período,
datado de 2012 a 2022 (ano do nosso bicentenário), durante o qual a lei e a
Constituição da nação foram reescritas com o propósito de garantir os direitos
básicos da educação a um conjunto enorme de jovens, que permitisse um
tratamento equânime para a chegada da juventude em todo o sistema educacional do
nível médio ao superior. Durante essa década, esses anos ainda não foram amplamente
vistos e entendidos como um ponto importantíssimo da saga do avanço da democracia
brasileira. De acordo com essa visão, o papel de justiça reparadora que nos empenhamos,
estabeleceu um novo regime educacional, promovendo o gradativo processo de percepção
e entendimento no exercer direitos democráticos e republicanos. Os heróis dessa
história somos todas e todos que restauraram o amplo acesso à educação do
Grande Número.
Este retrato, ainda não recebeu expressão acadêmica
nas obras do início do século XXI. Ele fornece uma base intelectual para a
abertura do sistema educacional contra qualquer segregação e privação de
direitos. Daí que todo o esforço para restauração de direitos, implica numa reconstrução
e afastamento de horrores que poluem a nossa história.
Os historiadores não rejeitaram essa percepção lúgubre,
embora ela seja disputada na imaginação popular. Mas para quem acompanhou a
década em tela, sabemos que muito se avançou por conta dessa tentativa
reparadora.
A reserva de vagas realmente começou após 11 de
outubro de 2012, quando se editou o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº
12.711, de 29 de agosto de 2012. O Decreto institui o Comitê de Acompanhamento
e Avaliação das Reservas de Vagas nas Instituições Federais de Educação
Superior e de Ensino Técnico de Nível Médio, para acompanhar e avaliar o seu
cumprimento. Importa reter que a reserva de vagas concede uma oportunidade
educacional à maioria da população, desde que se encontrem dentro dos critérios
estipulados para as vagas, mas nada disse sobre os direitos que essas vagas
comportam além da admissão. Em vez de um projeto integral para as vagas, esta
foi uma medida parcial de direito à educação no sentido tão só de
acessibilidade. Claro que ao longo dessa década da reserva de vagas, como em
outras questões, as ideias entorno da sua operacionalidade se desenvolveram.
Quem sancionou a lei com veto (um outro capítulo
dessa história que é a Mensagem Nº 385, de 29 de agosto de 2012) não acompanhou
sua operacionalização até o final do mandato. Sobre o veto parcial, o Congresso
não o derrubou, mas ainda assim se promulgou uma das leis mais importantes da
história brasileira, a Lei de Reserva de Vagas, já alterada e ainda em vigor
hoje. Ela afirmou que a cidadania educacional era para todos os nascidos no
Brasil, independentemente da raça (inclusive dos povos originários).
A lei passou a exigir que todos os cidadãos
usufruíssem dos direitos educacionais básicos da melhor maneira. A mensagem de
veto dizia veladamente que poderia se incorrer numa discriminação reversa, ao
se usar o Coeficiente de Rendimento (CR) como critério adequado para a reserva
de vagas, uma vez que “não se baseia em exame padronizado comum a todos os
candidatos e não segue parâmetros uniformes para a atribuição de nota.” De
fato, na ideia de que expandir os direitos educacionais de alguma forma, não
deveria se valer de mecanismos que pudessem vir a vedar inadvertidamente o
Grande Número ao acesso as vagas. Assim, o Veto Nº 32/2012, de 30 de agosto não
recebeu relatório pela Comissão Mista do Congresso Nacional e assim não foi
apreciado.
O acompanhamento operacional seguiu com os sucessores,
Michel Temer e Jair Bolsonaro. O primeiro, outrora celebrado como um heroico
defensor da Constituição, hoje é visto pelos historiadores como o que alterou a
lei da reserva de vagas ao sancionar a Lei Nº 13.409, de 28 de dezembro de
2016, e se encontra como uma figura soturna dessa década. Ele foi incorrigivelmente
relutante em ouvir críticas e foi incapaz de trabalhar com a chapa que o elegeu
a Vice-Presidente da República. Temer na sequência editou o Decreto Nº 9.034,
de 20 de abril de 2017 que altera o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº
12.711, de 29 de agosto de 2012, decorrente da alteração da lei de reserva de
vagas. O Decreto modifica a fórmula de cálculo da reserva das vagas,
reconfigurando o acompanhamento e metodologia avaliativa do seu cumprimento. O
segundo, que se encontra bem perto de sair do governo, que por todos os meios atuou
obsessivamente no sentido de erradicar as obras da democratização do país, e
por conseguinte, a lei de reserva de vagas.
Com essas medidas, a discussão sobre a reserva de
vagas mudou de patamar, o que em si implica uma nova configuração avaliativa
dessa política, uma vez que ao ampliar a incorporação de novos possíveis
beneficiários dela, não trouxe consigo a questão orçamentaria necessária para
esse devido acolhimento.
Inclusive, a sanção de 2016 seguia-se a um
confronto político importante, a luta dentro do processo de impedimento da
Presidência da República Interina, e a assunção definitiva e término da
interinidade. Daí que o Congresso ter incorporado a cidadania educacional as/os
deficientes possibilitou a ampliação da igualdade legal na legislação infraconstitucional.
Também marcou uma mudança significativa no poder federal, capacitando o governo
nacional para proteger os direitos educacionais dos cidadãos.
Os Decretos das reservas de vagas inauguraram, cada
qual a seu modo, um período de ampliação do Estado (Hegel e Gramsci), quando a
comunidade politicamente mobilizada, com seus aliados, levou um novo
contingente ao mundo educacional em todo o país. Pela primeira vez, os pretos, pardos, indígenas, e os cidadãos com deficiência, adentraram
em grande número nas instituições federais de ensino técnico, de nível médio, e
nas universidades federais.
A maioria das unidades educacionais envolvidas na
reserva de vagas, implicou numa mudança sociológica de grande relevância e em
duas ondas. Com o advento de pretos, pardos e indígenas e os cidadãos com
deficiência no sistema educacional, isso despertou uma pauta de pesquisa ainda
em curso sobre os efeitos dessa política. Tanto os
artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, estabeleceram métricas a serem
realizadas sobre os novos integrantes do sistema educacional que não se
encontram disponíveis.
A reserva de vagas tem ainda que ser estudada no
impacto, e no que também possibilitou na consolidação de novas percepções dos
domiciliares, responsáveis, e familiares que acompanharam essa incorporação.
Até porque, ao desonerar um pouco economicamente esses cidadãos com despesas
educacionais, isso aduz uma relação ao ideal de igualdade, pois implica em possibilitar
a elevação das classes mais baixas da sociedade.
Está claro que a reserva de vagas deve compor um
sistema abrangente de erradicação das desigualdades. É por isso que devemos fazer
a avaliação dessa política pública, por esse conjunto de variáveis elencadas e
outras que por ventura se façam necessárias, uma vez que representa até aqui
uma inspiração para todo o mundo.
Embora ainda não realizados os artigos 7º e 8º da Lei de
Reserva de Vagas, no entanto, permaneceram a serem apresentadas, o que implica
numa vacância que não deve ensejar solução de continuidade a essa política. Inclusive
por que com a alteração legal de 2016, é de bom tom indicar o novo marco de
2026, para se valer da métrica prevista no próprio diploma. Além disso, como a
vigência legal prevista da década do diploma originário de 2012, implica
reconhecer até aqui, que essa política fornece a base legal para uma revolução
dos direitos educacionais.
Cidadania, direitos, república, democracia –
enquanto estes conceitos permanecerem incompreendidos, o mesmo acontecerá com a
necessidade de uma compreensão precisa, da reserva de vagas. Mais do que a
maioria dos assuntos históricos, como pensamos sobre esta década, realmente
importa, pois nos força a refletir sobre o tipo de sociedade que desejamos para
o Brasil e o mundo.
1 de setembro de 2022
[1] Professor do Instituto
Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
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