terça-feira, 13 de setembro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 32 - UM BALANÇO SOBRE A LEI DE RESERVA DE VAGAS


 Sobre a importância da reserva de vagas na educação no bicentenário brasileiro


                                                                                   Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Tudo começou em fevereiro de 1999. A deputada Nice Lobão, recém-eleita e empossada em primeiro mandato pelo Partido da Frente Liberal (PFL) pelo Estado do Maranhão, tornou-se conhecida por ser autora do Projeto de Lei (PL) N° 73, de 1999, que propôs a reserva de 50% das vagas em universidade públicas para estudantes oriundos de escolas públicas. O projeto de lei tramitou por 13 anos até chegar à sanção com vetos em 2012.

Hoje, preocupados com os desafios de nosso tempo pandêmico, os brasileiros provavelmente ainda dedicam pouca atenção a década da Lei Nº 12.711 de 29 de agosto de 2012, a era turbulenta que se seguiu. Isso é lamentável, pois esse período histórico merece nossa observação ardente.

Questões que agitam a política brasileira hoje – acesso aos serviços cidadãos e direitos, os poderes relativos aos governos nacional, estadual e municipal, a relação entre democracia política e a economia, a resposta adequada a pandemia – todas essas são questões que impactaram a década dessa lei. Mas essa época tem sido mal compreendida.

A década da reserva de vagas refere-se ao período, datado de 2012 a 2022 (ano do nosso bicentenário), durante o qual a lei e a Constituição da nação foram reescritas com o propósito de garantir os direitos básicos da educação a um conjunto enorme de jovens, que permitisse um tratamento equânime para a chegada da juventude em todo o sistema educacional do nível médio ao superior. Durante essa década, esses anos ainda não foram amplamente vistos e entendidos como um ponto importantíssimo da saga do avanço da democracia brasileira. De acordo com essa visão, o papel de justiça reparadora que nos empenhamos, estabeleceu um novo regime educacional, promovendo o gradativo processo de percepção e entendimento no exercer direitos democráticos e republicanos. Os heróis dessa história somos todas e todos que restauraram o amplo acesso à educação do Grande Número.

Este retrato, ainda não recebeu expressão acadêmica nas obras do início do século XXI. Ele fornece uma base intelectual para a abertura do sistema educacional contra qualquer segregação e privação de direitos. Daí que todo o esforço para restauração de direitos, implica numa reconstrução e afastamento de horrores que poluem a nossa história.

Os historiadores não rejeitaram essa percepção lúgubre, embora ela seja disputada na imaginação popular. Mas para quem acompanhou a década em tela, sabemos que muito se avançou por conta dessa tentativa reparadora.

A reserva de vagas realmente começou após 11 de outubro de 2012, quando se editou o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. O Decreto institui o Comitê de Acompanhamento e Avaliação das Reservas de Vagas nas Instituições Federais de Educação Superior e de Ensino Técnico de Nível Médio, para acompanhar e avaliar o seu cumprimento. Importa reter que a reserva de vagas concede uma oportunidade educacional à maioria da população, desde que se encontrem dentro dos critérios estipulados para as vagas, mas nada disse sobre os direitos que essas vagas comportam além da admissão. Em vez de um projeto integral para as vagas, esta foi uma medida parcial de direito à educação no sentido tão só de acessibilidade. Claro que ao longo dessa década da reserva de vagas, como em outras questões, as ideias entorno da sua operacionalidade se desenvolveram.

Quem sancionou a lei com veto (um outro capítulo dessa história que é a Mensagem Nº 385, de 29 de agosto de 2012) não acompanhou sua operacionalização até o final do mandato. Sobre o veto parcial, o Congresso não o derrubou, mas ainda assim se promulgou uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei de Reserva de Vagas, já alterada e ainda em vigor hoje. Ela afirmou que a cidadania educacional era para todos os nascidos no Brasil, independentemente da raça (inclusive dos povos originários).

A lei passou a exigir que todos os cidadãos usufruíssem dos direitos educacionais básicos da melhor maneira. A mensagem de veto dizia veladamente que poderia se incorrer numa discriminação reversa, ao se usar o Coeficiente de Rendimento (CR) como critério adequado para a reserva de vagas, uma vez que “não se baseia em exame padronizado comum a todos os candidatos e não segue parâmetros uniformes para a atribuição de nota.” De fato, na ideia de que expandir os direitos educacionais de alguma forma, não deveria se valer de mecanismos que pudessem vir a vedar inadvertidamente o Grande Número ao acesso as vagas. Assim, o Veto Nº 32/2012, de 30 de agosto não recebeu relatório pela Comissão Mista do Congresso Nacional e assim não foi apreciado.


Nice Lobão numa reunião com apoiadores 

O acompanhamento operacional seguiu com os sucessores, Michel Temer e Jair Bolsonaro. O primeiro, outrora celebrado como um heroico defensor da Constituição, hoje é visto pelos historiadores como o que alterou a lei da reserva de vagas ao sancionar a Lei Nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016, e se encontra como uma figura soturna dessa década. Ele foi incorrigivelmente relutante em ouvir críticas e foi incapaz de trabalhar com a chapa que o elegeu a Vice-Presidente da República. Temer na sequência editou o Decreto Nº 9.034, de 20 de abril de 2017 que altera o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, decorrente da alteração da lei de reserva de vagas. O Decreto modifica a fórmula de cálculo da reserva das vagas, reconfigurando o acompanhamento e metodologia avaliativa do seu cumprimento. O segundo, que se encontra bem perto de sair do governo, que por todos os meios atuou obsessivamente no sentido de erradicar as obras da democratização do país, e por conseguinte, a lei de reserva de vagas.

Com essas medidas, a discussão sobre a reserva de vagas mudou de patamar, o que em si implica uma nova configuração avaliativa dessa política, uma vez que ao ampliar a incorporação de novos possíveis beneficiários dela, não trouxe consigo a questão orçamentaria necessária para esse devido acolhimento.

Inclusive, a sanção de 2016 seguia-se a um confronto político importante, a luta dentro do processo de impedimento da Presidência da República Interina, e a assunção definitiva e término da interinidade. Daí que o Congresso ter incorporado a cidadania educacional as/os deficientes possibilitou a ampliação da igualdade legal na legislação infraconstitucional. Também marcou uma mudança significativa no poder federal, capacitando o governo nacional para proteger os direitos educacionais dos cidadãos.

Os Decretos das reservas de vagas inauguraram, cada qual a seu modo, um período de ampliação do Estado (Hegel e Gramsci), quando a comunidade politicamente mobilizada, com seus aliados, levou um novo contingente ao mundo educacional em todo o país. Pela primeira vez, os pretos, pardos, indígenas, e os cidadãos com deficiência, adentraram em grande número nas instituições federais de ensino técnico, de nível médio, e nas universidades federais.

A maioria das unidades educacionais envolvidas na reserva de vagas, implicou numa mudança sociológica de grande relevância e em duas ondas. Com o advento de pretos, pardos e indígenas e os cidadãos com deficiência no sistema educacional, isso despertou uma pauta de pesquisa ainda em curso sobre os efeitos dessa política. Tanto os artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, estabeleceram métricas a serem realizadas sobre os novos integrantes do sistema educacional que não se encontram disponíveis.

A reserva de vagas tem ainda que ser estudada no impacto, e no que também possibilitou na consolidação de novas percepções dos domiciliares, responsáveis, e familiares que acompanharam essa incorporação. Até porque, ao desonerar um pouco economicamente esses cidadãos com despesas educacionais, isso aduz uma relação ao ideal de igualdade, pois implica em possibilitar a elevação das classes mais baixas da sociedade.

Está claro que a reserva de vagas deve compor um sistema abrangente de erradicação das desigualdades. É por isso que devemos fazer a avaliação dessa política pública, por esse conjunto de variáveis elencadas e outras que por ventura se façam necessárias, uma vez que representa até aqui uma inspiração para todo o mundo.

Embora ainda não realizados os artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, no entanto, permaneceram a serem apresentadas, o que implica numa vacância que não deve ensejar solução de continuidade a essa política. Inclusive por que com a alteração legal de 2016, é de bom tom indicar o novo marco de 2026, para se valer da métrica prevista no próprio diploma. Além disso, como a vigência legal prevista da década do diploma originário de 2012, implica reconhecer até aqui, que essa política fornece a base legal para uma revolução dos direitos educacionais.

Cidadania, direitos, república, democracia – enquanto estes conceitos permanecerem incompreendidos, o mesmo acontecerá com a necessidade de uma compreensão precisa, da reserva de vagas. Mais do que a maioria dos assuntos históricos, como pensamos sobre esta década, realmente importa, pois nos força a refletir sobre o tipo de sociedade que desejamos para o Brasil e o mundo.

 

1 de setembro de 2022


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

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