Hobsbawm,
História & O Poderoso Chefão
Por
Pablo Spinelli
À memória de Jabor,
de Milton Gonçalves e aos 30 anos do Impeachment de Collor
O historiador Eric
Hobsbawm foi um fenômeno na venda de livros para um público leitor leigo –
especialmente a partir dos anos 1990 com o bem-sucedido “A Era dos Extremos – o
breve século XX: 1914-1991”[1] –
o que não significa que tenha sido realmente
lido e analisado, e mesmo hoje, ao se analisar a bibliografia nas
disciplinas de cursos de ensino superior no país é perceptível seu lento
desaparecimento quando comparado há duas décadas.
Por mais que sua
identificação com o marxismo – foi membro do Partido Comunista britânico, um partido
muito discreto dentro no contexto dos partidos comunistas europeus, mas que
muito contribuiu para a resistência ao fascismo e na socialização de acadêmicos
com o movimento operário inglês.[2]
Sua enorme erudição enciclopédica e sua formação política fez estudar
movimentos camponeses rurais das Américas – o termo cunhado por ele de
“banditismo social” para o fenômeno, dentre outros, do cangaço brasileiro é
encontrado em qualquer livro didático de História no país -; com estudos no
desenvolvimento da Revolução Industrial inglesa ao jazz, Hobsbawm entrou para a
historiografia e no mundo leigo pela tetralogia das “Eras” para explicar a
formação; consolidação; expansão; crise e reconfiguração do mundo burguês. [3]
Atualmente, há no meio
acadêmico novos olhares da historiografia como “história global” e “história
pública” e pelos motivos expostos acima, nos surpreende a raridade ou o sumiço
do historiador inglês na bibliografia estudada nesses cursos, pois o
historiador teve papel de destaque em ambos os temas. É possível que seja
reflexo da persistência do pós-modernismo ao ver a sua obra como uma “grande
narrativa” (mesmo que tenha escrito um livro falando das fraturas nos tempos
modernos) ou por ser um homem branco europeu (nascido no Cairo e de origem
judaica) heteronormativo. Cumpre destacar uma faceta desse historiador que não
ganha tanto relevo em suas obras e que nos permite estudos instigantes sobre esse
objeto espalhado em várias obras do autor: o cinema.
Hobsbawm, um crítico
irônico dos movimentos e manifestos vanguardistas – que muito nos lembram da
abordagem do nosso poeta Ferreira Gullar – identificou somente duas
manifestações vanguardistas que vieram da América e prosperaram: o jazz e o
cinema (criado na Europa e metamorfoseado em produto de massa nos EUA). Foi e é
o cinema uma ponte ininterrupta entre os artistas europeus e a indústria
americana. O mais popular e genial personagem do cinema foi o inglês Charles
Chaplin, assim como o estúdio Universal (de um alemão) bebeu na fonte da
literatura do final do XIX para consolidar seu perfil em filmes de terror como
Drácula; Lobisomen e Frankestein. O historiador destacava a importância do
cinema soviético menos pelo perfil propagandístico e mais pela revolução em sua
técnica, como o feito pelo icônico Sergei Einsenstein de “Outubro” (1927) e
“Encouraçado Potemkin” (1925) – cuja montagem serviu de base para a revolução
no cinema feita pelo recém-falecido Jean Luc-Goddard nos anos 1960.
O cinema, para ele,
além do fascínio da imagem em ação tinha um papel democrático porque
incorporava uma massa de iletrados ao lazer e que alcançou uma escala
internacional. No mundo ocidental a produção de Hollywood era industrial – uma
fonte importante para geração de empregos como na Grande Depressão de 1929 – e
incorporava de artistas a técnicos europeus que migraram no período
entreguerras e, em especial, na ascensão dos fascismos na Europa. De Greta
Garbo a Otto Preminger; de Fritz Lang a Marlene Dietrich; de Billy Wilder a
Alfred Hitchcock, o cinema americano era inclusivo, sem muros e, com exceção de
negros, latinos e asiáticos (cujo cinema japonês era igual ao americano quanto
à produção), permitia o esplendor da tela (muitos dos grupos excluídos das
telas eram incorporados nos bastidores e com presença expressiva em sindicatos)
em milhares de cinema mundo a fora.
Por outro lado, o autor, contemporâneo do fascismo, nazismo e stalinismo, fez eco aqueles que viram no cinema uma máquina poderosa de propaganda de regimes políticos. O “American way of life” vendido nas telas (uso de cigarros e automóveis, por exemplo) foi uma ferramenta poderosa nas mãos de tiranos. Porém, diferente de analistas pessimistas como Adorno, Eric Hobsbawm via no cinema uma perspectiva poderosa de influir na denúncia, na crítica social, no retrato de um tempo, na adaptação literária que permitiria a popularização de autores como John Steinbeck (As vinhas da ira) e o desconhecido B. Traven (O Tesouro de Sierra Madre).
Por fim, Hobsbawm em um
artigo sobre os usos e abusos da memória sobre um bandido siciliano que gerou
livros e adaptações cinematográficas, nos deixou um legado valioso enquanto
crítico de cinema e historiador, trajetórias sincrônicas na análise de uma
obra. No artigo intitulado “Bandido
Giuliano”[4],
o autor, que estudou “rebeldes primitivos”, começa a falar do fenômeno popular
que foi e é o filme O Poderoso Chefão, que nesse ano completa meio século. Sua
enorme perenidade no imaginário coletivo, a presença na cultura pop nas mais
diversas faixas etárias deve-se, segundo Hobsbawm, à perspectiva de
organização, planejamento, valores familiares que se incorporam a um estilo
empresarial na cadeia de comando (o filme foi lançado em plena Guerra do
Vietnã).
A máfia não era a de
Bonnie, Clyde, Dillinger, mas a de Vito Corleone e uma hierarquia definida. A
família não era diversa da gestão de empresas que passam por gerações – em uma
época que não se mascarava a sucessão com termos como meritocracia - e nem era
refratária ao Estado, ao contrário, bancava candidaturas de senadores e deputados;
subornava juízes e delegados. Por sua vez, o historiador-crítico percebe que a
aura dos Corleone é fruto da utopia romântica de um passado no qual as
autoridades eram respeitadas; os chefes eram pais substitutos de imigrantes
pobres como os italianos do Sul italiano que “iam fazer a América”. Em uma
frase que pode gerar o “cancelamento” de Hobsbawm e do filme de Coppola, “os
homens eram homens, e as mulheres eram felizes com isso”[5].
Hobsbawm, de forma perspicaz fez um paralelo da vitória de uma família que
migrou de uma ilha na Europa nos EUA com a trajetória da mais superestimada e
pop família americana, os irlandeses Kennedy; daí seu sucesso no inconsciente
coletivo americano além dos valores destacados acima. Ainda nesse artigo, há
uma excelente análise comparativa sobre o enfoque dado pelo escritor Mario Puzo
(de O Poderoso Chefão) e do filme Francesco Rosi à trajetória conturbada do
bandido Salvatore Giuliano – um miliciano que servia aos interesses dos
potentados locais da Sicília que depois foi traído nesse e um “Robin Hood”
belo, varão e defensor da comunidade aldeã para aquele.
Por fim, Eric Hobsbawm nos deixa um legado nesses tempos fraturados. Ele foi um intelectual no espaço público, sabia escrever para o público leigo, lido por pessoas de ideologia diversa da dele, mas que sabia escrever como se dialogasse com o leitor sentado em um sofá. Seu espírito renascentista – fruto de sua formação política - lhe deu um inigualável posto no terreno da História, algo esmagado pelos particularismos e sectarismos seja da política ou d academia ou de ambos. A tarefa que se impõe é tirar os livros desse autor da estante e começar a realmente lê-lo.
[1] A
Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
[2]
Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras,
2002. Especialmente os capítulos “Contra o fascismo” e “Ser comunista”
[3]
Estamos nos referindo aos livros Era das Revoluções : 1789-1848. São Paulo: Paz
e Terra, 2009; Era do Capital: 1848-1875, 1996. São Paulo: Paz e Terra; Era dos
Impérios: 1875-191, São Paulo: Paz e Terra, 1988 e o já citado Era dos
Extremos.
[4] In. HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
[5] Idem. p.278.
2 comentários:
Excelente artigo!
A escola francesa tem sido cada vez mais hegemônica nesse sentido. Exceção ao Eric talvez seja o Thompson, que confesso ter mais proximidade.
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