domingo, 31 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 10

Ernesto Geisel e Sylvio Frota: o primeiro general ficou no Planalto (na Presidência da República) e o segundo general caiu na planície(fora do Ministério do Exército) | Foto: Reprodução

Sedimentos de 1964 sessenta anos depois

Tiago Martins Simões

Professor da Educação Básica

 

Para revisitar o período da ditadura de 1964, faz-se necessário, além da leitura e da pesquisa, o diálogo geracional. Afinal, eu, como muitos e muitas, nascemos já no curso da abertura democrática e, no que diz respeito ao tempo, existe um suposto afastamento. Suposto porque a não linearidade do tempo histórico em nosso contexto do conservar-mudando carrega sedimentações daquele período, que não são de pouca importância.

 Assim é que, apesar de desgastante, a menção ao fenômeno Jair Bolsonaro - tanto pela sua eleição quanto pela sua quase reeleição -, demonstra traços importantes, a começar pela crença da maioria dos votantes, de que ele viria com um suposto projeto liberal. É curioso que a geração que nasce e cresce embriagada na internet não tenha dado um rápido “Google” na biografia do ex-presidente para constatar certa desconfiança neste discurso, até mesmo pelas constantes referências a personagens da ditadura, representando o que nela havia de pior.

No plano mais interpretativo, faz sentido este ator ter carregado determinados aspectos daquele americanismo perverso, especialmente dois: o uso do Estado de forma alheia ao bem estar da sociedade e um aspecto que extrapola o período 2019-2022. Apesar de minoritários, houve apontamentos sobre traumas da ditadura na emergente sociedade civil da década de 1980. Infelizmente suas virtudes, que surgiam naquele momento, ofuscaram seus vícios, como o apartamento da matriz do interesse ao da opinião e do interesse geral[1]. A crítica viria como tentativa de qualificar os atores sociais e políticos e explorar suas virtudes.

Os sinais confirmam aquele diagnóstico feito nos difíceis anos 1990 e a política manteve-se como espaço de reserva, em que os atores sociais seguem majoritariamente suas vidas de forma inorgânica com a vida pública, ou atendendo interesses cotidianos, imediatos. É o que mostram, por exemplo, as sensíveis palavras do colega Vagner, publicado neste blog[2] ao resgatar o que há de mais recente na cidade do Rio de Janeiro através da história do assassinato de Marielle.

É importante o registro dos preocupantes rumos da Frente Democrática que elegeu Lula 3. Vivemos uma política refém das circunstâncias e de um Congresso ostensivo, ao custo de concessões políticas particularistas e que vem inflamando movimentos de greve na educação[3], que fora esquecida pela pandemia, de sua origem à atualidade. Se, pela sociedade, esse desencontro com a política já está crônico, deveria a classe política auscultar melhor nossa história, inclusive de 1964, sob o risco de se esfacelar a Frente e de abrir novamente rumos obscuros ao país.

Por mais trágico que tenha sido o recente flerte com um novo Golpe de Estado, talvez ele nunca tenha estado presente de forma tão clara em minha geração como agora. A lição para os mais novos e para os formadores e educadores, é analisar, dentro de cada conjuntura, nossa história política tendo como horizonte a democracia, valor universal que parece que fora esquecido pelas pautas identitárias e pela representação política em suas várias formas, desta vez não capturadas pelo Estado, mas voluntariamente postas a serviço deste, e com uma impressionante miopia acerca dos problemas sociais.

 

[1] Vianna, Luiz Werneck. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994.

[2] Souza, Vagner Gomes. 1964 e a “bestialização” carioca. Voto Positivo. Rio de Janeiro, 28 de março de 2024. Disponível em: https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/03/especial-19642024-numero-03.html?m=1. Acesso em 29/03/2024.

[3] O Governo vem anunciando a abertura de 100 Institutos Federais, em pleno ano eleitoral, em mais um movimento de expansão sem planejamento, enquanto que a estimativa de greve supera 200 outros Institutos que já aderiram à mesma. Não se trata, aqui, de realizar um juízo de valor sobre as greves, mas de evidenciar a dramaticidade de um amplo movimento grevista que possui suas razões de ser, ainda que seja surpreendente, visto que sua maioria compôs movimentos para a eleição de Lula. Sobre a expansão dos IFs, Cf. COSTA, Pedro Luiz de Araujo; MARINHO, Ricardo José de Azevedo.  Educação profissional e tecnológica brasileira institucionalizada:  uma visão geral dos embates sobre a aprovação dos IFs. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018.

Um comentário:

Giovana Freire disse...

Ótimo desenvolvimento.