sexta-feira, 29 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 05

Os 60 anos do Golpe de 1964 e a leitura do mundo real

Marcio Junior[1]

Para o saudoso Mestre Raimundo Santos.

 

Era 2019 quando estive sentado diante de Raimundo, meu orientador à época e com quem costumava almoçar com frequência, ele compartilhou algumas memórias de Golpes de Estado que, enquanto brasileiro, acompanhou. Segundo ele, o Golpe Militar no Brasil, em 1964, terminou por levá-lo a, com visual limitado da posição em que estava, em cima do muro da casa onde viveu em Santiago, o bombardeio ao Palácio de La Moneda, o da Presidência Chilena, que deu início ao regime autoritário naquele país. O Golpe no Chile completou 50 anos no ano passado enquanto o nosso completa 60 anos neste. Nosso país vizinho, talvez com maior dificuldade do que nós, também precisa ainda lidar com as consequências do acontecido lá.

Este exemplo biográfico ganha mais peso quando nos vemos agora, em 2024, em um mundo em que, além de não termos - a quatro anos - mais Raimundo, não temos também boa parte dos frágeis alicerces que o mundo de 2019 ainda procurava se sustentar e que a pandemia de COVID-19 fez questão de acelerar seus fins. Para além daqueles que se foram pelas complicações da convalescência causada pelo vírus durante a emergência sanitária (que não vitimou o Mestre), esta também levou diversos elementos que compunham o modo de vida de muitos no Brasil.

Desta, se mostra um cenário sombrio de falência educacional e empregatícia, resultando em falta de perspectivas sobretudo para a juventude, principalmente no que diz respeito aos seus futuros. Esta, que termina por cair nas armadilhas da percepção de que bastaria o apetite individual (envolto de uma profissão de fé relativa à formas de socialização que cada vez mais se fortalecem dentro e fora das Igrejas Evangélicas) para não apenas sobreviver, mas sim viver com máxima abundância afim de satisfazer ao máximo seus impulsos, sofreu uma queda brusca ao se deparar com uma realidade que, a rigor, revela que não há salvação enquanto não haver política feita a partir do bom diagnóstico das circunstâncias, habilidade que Maquiavel chamou atenção.

Com a publicação de A Revolução Brasileira em 1966, Caio Prado Junior (autor de predileção de Raimundo, junto com Habermas) buscou fazer um balanço crítico das forças de esquerda na conjuntura de 1964. Já em plena ditadura, Caio Prado Junior fez um balanço da fácil derrota da democracia naquele momento, na medida em que busca, de forma programática, dar um sentido prático à uma interpretação do processo de longo curso brasileiro, marcado por uma formação que dispôs os trabalhadores rurais como núcleo impulsionador das transformações sociais e, portanto, as forças produtivas que, pela sua face moderna advinda da nossa escravidão, deveriam ser incorporadas ao capitalismo afim de se fazer uma modernização de tipo diverso à aquelas ditadas pelo passado colonial ainda vivo.

Desta interpretação deriva a orientação em direção a um desabrochar das forças trabalhadoras tendo como principal via a dos sindicatos rurais, com apoio do regramento presente no Estatuto do Trabalhador Rural (sancionado em março de 1963), na medida em que a universalização dos direitos sociais seria o instrumento correto para responder a uma realidade cujo diagnóstico não seria a da luta pela terra, interpretação advinda da compreensão da história brasileira que via o homem rural do país enquanto um ator de tipo anacrônico.

A falta de aderência à realidade de tal programa foi, na interpretação de Caio Prado Junior, fundamental para a derrota da democracia em 1964. Este programa haveria de se revelar irrealista enquanto não percebia, no processo de longa duração em curso, a modernização ocorrendo ao nosso modo e demandando que este modo fosse interpretado por ele mesmo, e não na importação de modelos externos enquanto base para a formulação de programas partidários.

Ler é uma atividade que tem, como condição mínima para ser bem-feita, a devida contextualização no tempo e no espaço. Dito isso, sempre é de interesse dos derrotados avaliar em que pé ficou a conjuntura, o que passa pela compreensão dos erros cometidos e de como superá-los. Essa perícia básica, que está entre as habilidades necessárias ao ator que deseja definir a vitória e a derrota da grande política, tem nos faltado mais do que nunca. Novamente estamos diante de entendimentos que estão pouco alicerçados na realidade objetiva; O estudo histórico, e não só, de 1964 passa, também, pela compreensão de que, por mais dolorosas e áridas que tenham sido as suas consequências, devemos aprender com ele. Como dar conta de tal tarefa em plena falência de uma educação que nada indica que ressuscitará?



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ, Consultor Educacional da Teia de Saberes e responsável pelo Treinamento e Desenvolvimento Profissional da Cedae Saúde.

Um comentário:

Lucas Azedias disse...

Muito boa a relação com a obra de Caio Prado! Excelente artigo.