Os 60 anos do Golpe de 1964 e a leitura do mundo real
Marcio Junior[1]
Para o saudoso Mestre Raimundo Santos.
Era 2019 quando estive sentado diante de
Raimundo, meu orientador à época e com quem costumava almoçar com frequência,
ele compartilhou algumas memórias de Golpes de Estado que, enquanto brasileiro,
acompanhou. Segundo ele, o Golpe Militar no Brasil, em 1964, terminou por
levá-lo a, com visual limitado da posição em que estava, em cima do muro da
casa onde viveu em Santiago, o bombardeio ao Palácio de La Moneda, o da Presidência
Chilena, que deu início ao regime autoritário naquele país. O Golpe no Chile
completou 50 anos no ano passado enquanto o nosso completa 60 anos neste. Nosso
país vizinho, talvez com maior dificuldade do que nós, também precisa ainda
lidar com as consequências do acontecido lá.
Este exemplo biográfico ganha mais peso
quando nos vemos agora, em 2024, em um mundo em que, além de não termos - a
quatro anos - mais Raimundo, não temos também boa parte dos frágeis alicerces
que o mundo de 2019 ainda procurava se sustentar e que a pandemia de COVID-19
fez questão de acelerar seus fins. Para além daqueles que se foram pelas
complicações da convalescência causada pelo vírus durante a emergência
sanitária (que não vitimou o Mestre), esta também levou diversos elementos que
compunham o modo de vida de muitos no Brasil.
Desta, se mostra um cenário sombrio de
falência educacional e empregatícia, resultando em falta de perspectivas sobretudo
para a juventude, principalmente no que diz respeito aos seus futuros. Esta,
que termina por cair nas armadilhas da percepção de que bastaria o apetite
individual (envolto de uma profissão de fé relativa à formas de socialização
que cada vez mais se fortalecem dentro e fora das Igrejas Evangélicas) para não
apenas sobreviver, mas sim viver com máxima abundância afim de satisfazer ao
máximo seus impulsos, sofreu uma queda brusca ao se deparar com uma realidade
que, a rigor, revela que não há salvação enquanto não haver política feita a
partir do bom diagnóstico das circunstâncias, habilidade que Maquiavel chamou
atenção.
Com a publicação de A Revolução
Brasileira em 1966, Caio Prado Junior (autor de
predileção de Raimundo, junto com Habermas) buscou fazer um balanço crítico das
forças de esquerda na conjuntura de 1964. Já em plena ditadura, Caio Prado
Junior fez um balanço da fácil derrota da democracia naquele momento, na medida
em que busca, de forma programática, dar um sentido prático à uma
interpretação do processo de longo curso brasileiro, marcado por uma formação
que dispôs os trabalhadores rurais como núcleo impulsionador das transformações
sociais e, portanto, as forças produtivas que, pela sua face moderna advinda da
nossa escravidão, deveriam ser incorporadas ao capitalismo afim de se fazer uma
modernização de tipo diverso à aquelas ditadas pelo passado colonial ainda
vivo.
Desta interpretação deriva a orientação em
direção a um desabrochar das forças trabalhadoras tendo como principal via a
dos sindicatos rurais, com apoio do regramento presente no Estatuto do
Trabalhador Rural (sancionado em março de 1963), na medida em que a
universalização dos direitos sociais seria o instrumento correto para responder
a uma realidade cujo diagnóstico não seria a da luta pela terra, interpretação
advinda da compreensão da história brasileira que via o homem rural do país
enquanto um ator de tipo anacrônico.
A falta de aderência à realidade de tal
programa foi, na interpretação de Caio Prado Junior, fundamental para a derrota
da democracia em 1964. Este programa haveria de se revelar irrealista enquanto
não percebia, no processo de longa duração em curso, a modernização ocorrendo
ao nosso modo e demandando que este modo fosse interpretado por ele mesmo, e
não na importação de modelos externos enquanto base para a formulação de
programas partidários.
Ler é uma atividade que tem, como
condição mínima para ser bem-feita, a devida contextualização no tempo e no
espaço. Dito isso, sempre é de interesse dos derrotados avaliar em que pé ficou
a conjuntura, o que passa pela compreensão dos erros cometidos e de como
superá-los. Essa perícia básica, que está entre as habilidades necessárias ao
ator que deseja definir a vitória e a derrota da grande política, tem nos faltado
mais do que nunca. Novamente estamos diante de entendimentos que estão pouco
alicerçados na realidade objetiva; O estudo histórico, e não só, de 1964 passa,
também, pela compreensão de que, por mais dolorosas e áridas que tenham sido as
suas consequências, devemos aprender com ele. Como dar conta de tal tarefa em
plena falência de uma educação que nada indica que ressuscitará?
[1] - Doutorando em Ciências Sociais em
Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ, Consultor Educacional da
Teia de Saberes e responsável pelo Treinamento e Desenvolvimento Profissional
da Cedae Saúde.
Um comentário:
Muito boa a relação com a obra de Caio Prado! Excelente artigo.
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