“60 não
é meia dúzia”[1]: conciliar
não é esquecer ou se submeter
Alexandre Vinicius Nicolino
Maciel
Em primeiro de abril de 1964 foi
deflagrado no Brasil um golpe de Estado que depôs o presidente João
Goulart. A partir desse golpe, executado pelos militares, mas orquestrado em
conjunto com diversas classes civis, o Brasil mergulhou numa ditadura cruel que
matou, torturou, sequestrou, exilou e limitou vidas e trajetórias. Durante 21
anos o Brasil teve como presidentes generais do exército que foram eleitos de
forma indireta, num período eleitoral no qual o Brasil tinha somente dois
partidos, Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido governista, e o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava uma oposição
consentida. No jargão mais popularesco, eram os partidos do “Sim” e do “Sim,
Senhor”, indicando que a oposição clara e manifesta ao regime de forma
institucionalizada, inexistia.
É importante reforçar que no
mesmo período em que a ditadura brasileira se desenrolava, alguns vizinhos sul-americanos
também passavam o mesmo drama. Nutridos pela dinâmica estadunidense da Doutrina
de Segurança Nacional e pelas dinâmicas geopolíticas da Guerra Fria, Argentina
(1966-1970 e 1976-1983), Chile (1973-1990), Paraguai (1954-1989), Peru
(1968-1980) e Uruguai (1976-1983) também sofreram com regimes de exceção
marcados por muitas mortes, torturas, prisões e desaparecimentos. A
comparação entre esses regimes de modo algum pode reduzir o caráter ditatorial
de uma ou outra experiência, ou ainda, considerar que algum regime, por ter um
número menor de mortes causadas pelo Estado, se abrisse a possibilidade de ser
classificado como ditabranda, como já fizeram com o regime brasileiro em
algumas oportunidades.[2]
Esse tipo de eufemismo reverbera o modo pelo qual os arquitetos do golpe o
tratam desde a execução do movimento. A Revolução de 64, dada em 31 de
março, nas palavras deles, buscou expurgar do Brasil as células que tornariam o
país uma “Grande Cuba” e teoricamente, reforçou que nas palavras deles, não matou
tanto opositor assim, pois “ao terminar a ditadura, a cultura como um todo
(professores, mídia, literatura, filosofia, ciências humanas, artes, os
principais partidos políticos) se revelou completamente de esquerda.”[3]
Em nível acadêmico os debates sobre o
período já se encontram consolidados. Inúmeros trabalhos acadêmicos já
exploraram, e continuam a explorar o alargamento da ditadura para além da política
institucional e dos atos repressivos, debatendo a atuação dos golpistas na
música, na TV, nos esportes, na educação e em outros contextos sociais. Todavia,
é preciso pensar no como a população em geral vê o período da ditadura, ainda
mais num contexto de ebulição política e clamor constante por intervenções
militares por partes de ditos conservadores (golpistas). Não raros são os
vídeos dos acampados nas portas de quartéis que conclamam a volta dos militares
ao poder.
Esse modo deturpado de ver história pode ser visto também como uma herança do nosso processo de redemocratização. Como dito acima, no mesmo período em que sofríamos com a nossa ditadura, o Cone Sul da América Latina era um laboratório vivo da crueldade. É também num período similar que esses mesmos países retomam a democracia e aqui é necessário exercitar o método comparativo. Alguns processos de são vistos pela historiografia como processos realizados por rupturas, já o processo brasileiro é estabelecido por pactos.[4] Esse tipo de acordo permitiu que os militares e entes públicos e privados que se favoreceram da ditadura, continuassem livres e poderosos. Fato visível dessa força é o tão falado artigo 142 da Constituição Federal, que supostamente permitiria a intervenção militar.
Assim, é preciso que os debates sobre
a ditadura empresarial-militar no Brasil ultrapassem os espaços acadêmicos e se
tornem comuns nos espaços públicos do país. É preciso desnaturalizar a ideia de
que os militares salvaram o país do comunismo e que na “época deles” não havia
corrupção. Inúmeros estudos já comprovaram o contrário, mas eles precisam
chegar à base da sociedade. Para além, disso, utilizando-se dos pilares estabelecidos
pela Justiça de Transição[5] é
preciso avançar em políticas públicas de memória e Justiça. Assim, é preciso
que o Estado se pronuncie em questões acerca da ditadura e possibilite a
criação de espaços de memória, tal quais outros países possuem. Não em tom de
revanchismo, mas em busca de memória e justiça. Os sessenta anos do golpe nos
recordam que é preciso avançar, mas não esquecer. Pois, conciliar não é o mesmo
que esquecer ou se submeter.
[1] O
título faz referência ao evento organizado pelo instituto Coalizão Brasil em
referencia aos 60 anos do golpe de 1964.
[2] LIMITES a Chávez. 2009. Folha
de S. Paulo, Editoriais, 17 fevereiro 2009. Disponível em : < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm
>. Acesso em: 9 julho 2020.
NARLOCH, Leandro. Guia
politicamente incorreto da História do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009.
[recurso digital]
[3]
PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo:
Leya, 2012. 232 p [recurso digital]
[4] FRIDERICHS,
Lidiane Elizabete. Transição democrática na Argentina e no Brasil:
continuidades e rupturas. AEDOS, Porto Alegre, v. 9, nº. 20, p. 439-455,
Agosto, 2017.
[5] A
justiça de transição é composta por quatro elementos ou pilares. São eles: (1)
o direito à memória e à verdade; (2) as reformas institucionais; (3) as
reparações simbólicas e financeiras; e (4) a responsabilização por atos
praticados no período autoritário.
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