Sedimentos de 1964 sessenta anos depois
Tiago Martins
Simões
Professor da
Educação Básica
Para revisitar o
período da ditadura de 1964, faz-se necessário, além da leitura e da pesquisa,
o diálogo geracional. Afinal, eu, como muitos e muitas, nascemos já no curso da
abertura democrática e, no que diz respeito ao tempo, existe um suposto afastamento.
Suposto porque a não linearidade do tempo histórico em nosso contexto do
conservar-mudando carrega sedimentações daquele período, que não são de pouca
importância.
Assim é que, apesar de desgastante, a menção
ao fenômeno Jair Bolsonaro - tanto pela sua eleição quanto pela sua quase
reeleição -, demonstra traços importantes, a começar pela crença da maioria dos
votantes, de que ele viria com um suposto projeto liberal. É curioso que a
geração que nasce e cresce embriagada na internet não tenha dado um rápido “Google”
na biografia do ex-presidente para constatar certa desconfiança neste discurso,
até mesmo pelas constantes referências a personagens da ditadura, representando
o que nela havia de pior.
No plano mais
interpretativo, faz sentido este ator ter carregado determinados aspectos
daquele americanismo perverso, especialmente dois: o uso do Estado de forma
alheia ao bem estar da sociedade e um aspecto que extrapola o período
2019-2022. Apesar de minoritários, houve apontamentos sobre traumas da ditadura
na emergente sociedade civil da década de 1980. Infelizmente suas virtudes, que
surgiam naquele momento, ofuscaram seus vícios, como o apartamento da matriz do
interesse ao da opinião e do interesse geral[1]. A crítica viria como tentativa
de qualificar os atores sociais e políticos e explorar suas virtudes.
Os sinais confirmam
aquele diagnóstico feito nos difíceis anos 1990 e a política manteve-se como
espaço de reserva, em que os atores sociais seguem majoritariamente suas vidas
de forma inorgânica com a vida pública, ou atendendo interesses cotidianos,
imediatos. É o que mostram, por exemplo, as sensíveis palavras do colega
Vagner, publicado neste blog[2] ao resgatar o que há de mais recente na cidade
do Rio de Janeiro através da história do assassinato de Marielle.
É importante o registro
dos preocupantes rumos da Frente Democrática que elegeu Lula 3. Vivemos uma
política refém das circunstâncias e de um Congresso ostensivo, ao custo de
concessões políticas particularistas e que vem inflamando movimentos de greve
na educação[3], que fora esquecida pela pandemia, de sua origem à atualidade.
Se, pela sociedade, esse desencontro com a política já está crônico, deveria a
classe política auscultar melhor nossa história, inclusive de 1964, sob o risco
de se esfacelar a Frente e de abrir novamente rumos obscuros ao país.
Por mais trágico que
tenha sido o recente flerte com um novo Golpe de Estado, talvez ele nunca tenha
estado presente de forma tão clara em minha geração como agora. A lição para os
mais novos e para os formadores e educadores, é analisar, dentro de cada
conjuntura, nossa história política tendo como horizonte a democracia, valor
universal que parece que fora esquecido pelas pautas identitárias e pela
representação política em suas várias formas, desta vez não capturadas pelo
Estado, mas voluntariamente postas a serviço deste, e com uma impressionante
miopia acerca dos problemas sociais.
[1] Vianna, Luiz
Werneck. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994.
[2] Souza, Vagner
Gomes. 1964 e a “bestialização” carioca. Voto Positivo. Rio de Janeiro, 28 de
março de 2024. Disponível em:
https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/03/especial-19642024-numero-03.html?m=1.
Acesso em 29/03/2024.
[3] O Governo vem anunciando
a abertura de 100 Institutos Federais, em pleno ano eleitoral, em mais um
movimento de expansão sem planejamento, enquanto que a estimativa de greve
supera 200 outros Institutos que já aderiram à mesma. Não se trata, aqui, de
realizar um juízo de valor sobre as greves, mas de evidenciar a dramaticidade
de um amplo movimento grevista que possui suas razões de ser, ainda que seja
surpreendente, visto que sua maioria compôs movimentos para a eleição de Lula.
Sobre a expansão dos IFs, Cf. COSTA, Pedro Luiz de Araujo; MARINHO, Ricardo
José de Azevedo. Educação profissional e
tecnológica brasileira institucionalizada:
uma visão geral dos embates sobre a aprovação dos IFs. In: FRIGOTTO,
Gaudêncio (Org.). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia:
relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento.
Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018.