segunda-feira, 1 de abril de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 11

 Leitura do texto do espetáculo “Auto dos 99%”, no Teatro Guaíra Curitiba — PR

1964 e a efervescência cultural

Alessandra Loyola


     60 anos atrás o país vivenciava um marco em sua história, um marco na cultura. Com isso, penso sobre a importância de refletir em alguma medida sobre como a cultura se configurava antes e como se dá hoje, tomando como referência algumas obras.

    É interessante saber que autores já pensaram em como definir ou articular a ideia de cultura popular, a exemplo de Alfredo Bosi que irá dizer que a cultura é heterogênea, diversa e aquilo dito como cultura das classes populares pode ser encontrado em diversas situações. Nessa perspectiva, ao olharmos para alguns anos atrás e observarmos a efervescência cultural pré e durante ditadura militar é possível perceber a música, o cinema e a literatura como fontes de construção da cultura popular. No entanto, todas se veem diante de algo quase como contracultura quando os militares tomam o poder do Brasil em abril de 1964.

   Diante disso, ao assistir um filme do Cinema Novo - movimento que surge um pouco antes de 64, mas perdura nesse período - como, por exemplo, Deus e o diabo na terra do Sol (Glauber Rocha) fica evidente o papel da cultura: expor um problema. É possível encontrar na obra de Rocha alegorias didáticas, construções que contam com a filmagem feitas com a câmera na mão e edições com poucas transições, além da marca da literatura de cordel, criando, assim, imagens para falar sobre o que acontecia com o povo nesse período.

   Exemplos como o longa metragem nos mostram como a cultura popular foi importante para o período da ditadura no Brasil, dando voz de alguma maneira, à população e construindo um mosaico artístico sobre a necessidade de direitos que foram sendo usurpados, dentre outras questões. 

   Hoje em dia 40 anos depois do grito das “Diretas Já”, após tristes tentativas de determinados grupos de reatar laços com ideologias do regime, vemos ainda criações culturais que se mantêm firmes em suas posições de buscar a liberdade e direitos, a exemplo de manifestações culturais como as rodas de Slam - que concedem voz aos que por vezes são silenciados. Manifestações contemporâneas - como rodas de Slam -apresentam novas maneiras culturais, que são frutos de uma influência estrangeira, porém que tomam corpo com as marcas culturais brasileiras, dando visibilidade a questões populares.

    Olhar para efervescências culturais como as citadas nos leva outra vez para Bosi, que discorre sobre a cultura ser fruto de um cultivo através do tempo de cada sociedade, então, se hoje há o resgate da cultura um dia apagada junto a uma articulação contemporânea perpassada por tantos acontecimentos - eleições, pandemia, polarização- é devido a um longo cultivo feito pelas próprias classes populares. E são esses os grupos que sentem na pele, no prato, no bolso…enfim, que sentem em sua realidade o que os grandes governos decidem entre si.

    O olhar para obras produzidas por nomes como Glauber Rocha é perceber até hoje como a cultura é atemporal e fala através do tempo, utilizando a estética, os temas e as ferramentas de sua época. Isto também nos permite ver outras maneiras culturais como poesia cantada que, de maneira análoga, se utiliza o que há disponível em sua realidade para, como já dito, se posicionar em tempos difíceis.

    Seja olhando para o cinema novo brasileiro sejam olhando para as rodas de Slam, o entendimento que fica é a importância das vozes que existem e de que maneira essas vozes populares são colocadas à vista. Há esperança ao olhar para produção cultural popular brasileira.

    Por fim, ainda que existam questões a serem pensadas sobre as obras e os movimentos citados, em cada um deles é possível encontrar as vozes e os ecos que duros regimes com suas armas, censuras e discursos de ódios não o são capazes de sufocar, pois todas são como uma bela rosa que brota do quente e sufocante asfalto.

domingo, 31 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 10

Ernesto Geisel e Sylvio Frota: o primeiro general ficou no Planalto (na Presidência da República) e o segundo general caiu na planície(fora do Ministério do Exército) | Foto: Reprodução

Sedimentos de 1964 sessenta anos depois

Tiago Martins Simões

Professor da Educação Básica

 

Para revisitar o período da ditadura de 1964, faz-se necessário, além da leitura e da pesquisa, o diálogo geracional. Afinal, eu, como muitos e muitas, nascemos já no curso da abertura democrática e, no que diz respeito ao tempo, existe um suposto afastamento. Suposto porque a não linearidade do tempo histórico em nosso contexto do conservar-mudando carrega sedimentações daquele período, que não são de pouca importância.

 Assim é que, apesar de desgastante, a menção ao fenômeno Jair Bolsonaro - tanto pela sua eleição quanto pela sua quase reeleição -, demonstra traços importantes, a começar pela crença da maioria dos votantes, de que ele viria com um suposto projeto liberal. É curioso que a geração que nasce e cresce embriagada na internet não tenha dado um rápido “Google” na biografia do ex-presidente para constatar certa desconfiança neste discurso, até mesmo pelas constantes referências a personagens da ditadura, representando o que nela havia de pior.

No plano mais interpretativo, faz sentido este ator ter carregado determinados aspectos daquele americanismo perverso, especialmente dois: o uso do Estado de forma alheia ao bem estar da sociedade e um aspecto que extrapola o período 2019-2022. Apesar de minoritários, houve apontamentos sobre traumas da ditadura na emergente sociedade civil da década de 1980. Infelizmente suas virtudes, que surgiam naquele momento, ofuscaram seus vícios, como o apartamento da matriz do interesse ao da opinião e do interesse geral[1]. A crítica viria como tentativa de qualificar os atores sociais e políticos e explorar suas virtudes.

Os sinais confirmam aquele diagnóstico feito nos difíceis anos 1990 e a política manteve-se como espaço de reserva, em que os atores sociais seguem majoritariamente suas vidas de forma inorgânica com a vida pública, ou atendendo interesses cotidianos, imediatos. É o que mostram, por exemplo, as sensíveis palavras do colega Vagner, publicado neste blog[2] ao resgatar o que há de mais recente na cidade do Rio de Janeiro através da história do assassinato de Marielle.

É importante o registro dos preocupantes rumos da Frente Democrática que elegeu Lula 3. Vivemos uma política refém das circunstâncias e de um Congresso ostensivo, ao custo de concessões políticas particularistas e que vem inflamando movimentos de greve na educação[3], que fora esquecida pela pandemia, de sua origem à atualidade. Se, pela sociedade, esse desencontro com a política já está crônico, deveria a classe política auscultar melhor nossa história, inclusive de 1964, sob o risco de se esfacelar a Frente e de abrir novamente rumos obscuros ao país.

Por mais trágico que tenha sido o recente flerte com um novo Golpe de Estado, talvez ele nunca tenha estado presente de forma tão clara em minha geração como agora. A lição para os mais novos e para os formadores e educadores, é analisar, dentro de cada conjuntura, nossa história política tendo como horizonte a democracia, valor universal que parece que fora esquecido pelas pautas identitárias e pela representação política em suas várias formas, desta vez não capturadas pelo Estado, mas voluntariamente postas a serviço deste, e com uma impressionante miopia acerca dos problemas sociais.

 

[1] Vianna, Luiz Werneck. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994.

[2] Souza, Vagner Gomes. 1964 e a “bestialização” carioca. Voto Positivo. Rio de Janeiro, 28 de março de 2024. Disponível em: https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/03/especial-19642024-numero-03.html?m=1. Acesso em 29/03/2024.

[3] O Governo vem anunciando a abertura de 100 Institutos Federais, em pleno ano eleitoral, em mais um movimento de expansão sem planejamento, enquanto que a estimativa de greve supera 200 outros Institutos que já aderiram à mesma. Não se trata, aqui, de realizar um juízo de valor sobre as greves, mas de evidenciar a dramaticidade de um amplo movimento grevista que possui suas razões de ser, ainda que seja surpreendente, visto que sua maioria compôs movimentos para a eleição de Lula. Sobre a expansão dos IFs, Cf. COSTA, Pedro Luiz de Araujo; MARINHO, Ricardo José de Azevedo.  Educação profissional e tecnológica brasileira institucionalizada:  uma visão geral dos embates sobre a aprovação dos IFs. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018.

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 09


 JK ouve o Clube da Esquina em Diamantina (MG) em 1971

O silêncio de Saladino

Tariq Bastos de Souza

Vagner Gomes de Souza

 

Na magnus opus de Alan Moore, “Watchmen", observamos um personagem icônico que  é Dr. Manhattan, conhecido por seus poderes divinos, incluindo a onisciência que lhe permite ver passado, presente e futuro simultaneamente. No desfecho da história em quadrinhos, ele ressalta que "nada nunca acaba", enfatizando a interconexão temporal. Essa perspectiva falta ao atual mandatário da República, como evidenciado em suas declarações sobre eventos históricos recentes e sua postura em relação à democracia.

Falar sobre o Holocausto deve ter criado temor ao Presidente circunscrito as “bolhas” do identitarismo. Falaremos na Ditadura como só “direito de fala” de quem tenha vivido aquela época. Não nos esqueçamos de sua fala sobre o AI 5 há quase 50 anos num antigo Teatro do Rio de Janeiro. O AI 5 do trabalhador sempre foi o AI 5 foi a correção do saudoso Luiz Werneck Vianna.

Ao minimizar a importância de eventos passados e focar em questões imediatas, como a tentativa de Golpe de Janeiro, a assessoria do atual mandatário da República revela uma visão míope da história e suas ramificações. O “sindicalismo de resultados” se transformou num pragmatismo eleitoral diante dos olhares nos índices de popularidade. Falta-lhe o reconhecimento de que episódios como o golpe de 1964 estão intrinsecamente ligados ao presente, especialmente considerando a retórica e práticas reminiscentes do governo anterior, que ecoava a ditadura militar.

Uma oportunidade perdida em se valorizar as forças políticas do centro que foram vítimas do extremismo de uma Guerra Fria. De mãos dadas com o Presidente da França que deixou o legado da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. O silêncio do atual mandatário da República se assemelharia ao ficcional silêncio de Saladino na época das Cruzadas. Os tempos das Cruzadas foram evocados polos extremistas da direita e devemos enfrentar com as sutilezas da “virtú” de Maquiavel.

Essa falta de perspectiva histórica compromete a capacidade do governo da Frente Democrática de consolidar a democracia, deixando espaço para a manipulação política e a subversão dos ideais democráticos. O negacionismo da História que se trata de uma ciência humana. Ao negligenciar essa oportunidade a partir do uso das fontes históricas, ele inadvertidamente permite que outros preencham o vácuo político, ilustrando assim a constante ressonância do passado no presente: nada nunca verdadeiramente chega ao fim. Abre um espaço no vácuo do centro político, pois se faz uma fuga para mais adiante.

Perde o presidente a oportunidade de lutar por um Brasil que foi roubado dos brasileiros naquele longínquo ano de 1964. Havia a perspectiva de um Brasil com reforma agrária e com nacionalização das riquezas, independente  na política externa. O silêncio diante da Cruzada, como o presidente se põe, nos deixa aberto para que outras forças reacionárias  ou de extrema direita pautem o nosso "presente passado", dentre elas o ex presidente que ainda não é carta fora do baralho totalmente.

Os sinais dos cavaleiros medievais se aproximam com a regressão da mentalidade criativa e a negação do uso da racionalidade.  O “silêncio sectário” deixa figuras como JK e sua tentativa de frente ampla na obscuridade, assim como os militares legalistas que foram expulsos e difamados pelo regime militar, estes esquecidos até pela esquerda que não estuda figuras como o Marechal Lott apenas por serem militares. Pouca política e pouco estudo na memória de 1964 é uma demonstração do “presentismo” como tema que pauta nosso mandatário da República.


sábado, 30 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 08


                Sede da União Nacional dos Estudantes em chamas após 1964

A voz que soa de 1964

Isabella Souza da Silva


A proximidade da data do final do mês de março traz a rememoração dos fatídicos vinte e um anos do que se iniciou com discursos nacionalistas e ferozes contra o comunismo, e logo após adentrou-se aos eventos de repressão política e, do que anteriormente já foi arquitetado em ditaduras de inúmeros países latino-americano, o desmonte da democracia.

O ano sexagenário que se completará neste final do mês do golpe militar de 1964 é oportuno e de suma importância abordar novamente sobre as lacunas que esse momento emblemático enraizou no país, vigente aos velhos e novos personagens e capítulos que os quatro anos anteriores da gestão de Jair Bolsonaro transparecem no atual governo de Frente Democrático. Seu saudosismo á ditadura e seu governo militarizado foi o reflexo perigoso dessas correntes e da distante plenitude de vivermos numa democracia saudável.

Consideramos pertinente usar de um dos textos fundamentais do sociólogo Luiz Werneck Vianna, "1964". O texto onde ele nos oferece uma visão abrangente dos aspectos anteriores do deporte de João Goulart até a tomada do Estado pelos militares. Nesta dissertação, Werneck faz um apontamento acerca do período do golpe militar ser a continuação do Estado Novo de Getúlio Vargas. Embora suas semelhanças sejam pelo totalitarismo institucionalizado nos dois fatos, a certas divergências nos dois regimes. Werneck prossegue com a ideia sobre a Era Varguista ter seguido um percurso de estilo de modernização europeia e Durkheimiano, ter levado em consideração a economia, política e organização social, evitando o isolacionismo dessas esferas a qual foi conquistado pela introdução da fórmula política do cooperativismo. Neste mesmo parágrafo, Luiz Werneck faz a comparação entre Oliveria Viana e o Getúlio Vargas, que partilharam de concepções organicistas e comunitárias da ordem nacional e se mantendo obstruídos em relação ao individualismo e o mundo livre de interesses.


Luiz Werneck Vianna em campanha para Deputado constituinte (1986)

Entretanto, 1964 foi de teor americanizado e os recursos da política cooperativista era meramente instrumental, assim como se alinhou em sua base teórica da modernização social Americana. Seguindo um panorama diferente do que se antecedeu em 1937. Pois até então, a assimetria da economia, política e organização social de 1964 estavam divididas, onde a economia disparava sucessivamente e as duas últimas áreas políticas estavam paralisadas pelo autoritarismo.

Luiz Werneck finaliza o texto enfatizando que embora o golpe militar tenha ficado no passado, ainda enfrentamos problemas de construção da ordem. Uma indagação certeira diante do atentado antidemocrático a Praça dos Três Poderes em oito de janeiro de 2022, um ocorrido sucessivo a uma derrota eleitoral e que reforça as maléficas consequências do convênio entre o Estado e setores das FFAA.

Com o auxílio do texto de Werneck Vianna pudemos analisar os efeitos colaterais persistentes no núcleo da política e sociedade atual referente a modernização conservadora inserida há seis décadas atrás no nosso contexto de Revolução Passiva. Contudo, a constituinte de 1988 foi recebida com entusiasmo pelos segmentos da sociedade brasileira por ser a consequência de longa resistência da mobilização popular. De certo que ainda há muitos impasses a serem ultrapassados até o alcance de uma ordem mais justa, visto que o país possui um longo histórico de abalos democráticos e o reflexo do regime militar ainda seja visível. No entanto, a união da camada popular deve ser contínua, a fim de guiar o país em direção a um futuro com a democracia socialmente consciente pelos caminhos da cidadania.


ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 07

História e memória: os 60 anos da Ditadura Militar e as narrativas em disputa

Lucas Azedias

 

“A história é "uma resposta a perguntas que o homem de hoje necessariamente se põe."” —  Lucien Febvre

  

Debater as rupturas e continuidades políticas de um dos episódios mais tristes da história brasileira parece um contrassenso em um mundo onde os conceitos Ditadura e Democracia bastam para explicar todos os processos históricos estranhos às experiências ocidentais de democracia[1].

A vulnerabilidade conceitual que paira sobre a conjuntura política para além do ocidente é, sem dúvida alguma, digna de observação aos que pretendem enxergar a história através de seus processos, afastando-se desta ótica de esquemas herméticos de interpretação da conjuntura comum aos formadores de opinião que fazem dos meios de comunicação um espaço de instrumentalização de conceitos e narrativas.

Isto posto, é de observar que também paira sobre a conjuntura brasileira uma memória afetiva acerca da presença dos militares no comando do Estado brasileiro quando do golpe que neste ano completa 60 anos de existência. A disputa deste espaço de memória, neste caso, sempre esteve em vias de derrota pelo campo democrático. A rejeição do historiador na figura da autoridade sobre a ciência histórica é também, sem dúvidas, um desafio para este campo.

Desafio maior, talvez, seja para os novos historiadores que vêem suas pesquisas em descrédito fora das bibliotecas empoeiradas da academia. A invalidação da cientificidade das pesquisas destes historiadores age, como consequência, em detrimento da crença de que ter vivido os anos de chumbo legitima inquestionavelmente a experiência da população que compartilha deste estranho afeto. Neste caso, a cobrança pela imparcialidade do historiador quando da análise de um fato é deixada de lado, ao passo que os “sobreviventes da ditadura” não se enxergam como mentes pensantes passíveis de atribuir aos acontecimentos o mesmo viés ideológico que tanto acusam os historiadores. A diferença de ambos, no entanto, não seria moral ou ideológica, mas metodológica. 

Diferenças metodológicas à parte, uma coisa é certa: todo discurso é político. A negação de tomar partido em detrimento da neutralidade, comum aos críticos da história enquanto ciência, já é a manifestação do discurso politizado. Ainda assim, é papel do historiador que pensa seu ofício a partir da ética necessária à prática da pesquisa um afastamento emocional de seu objeto, para que metodologicamente lance sobre ele suas indagações e tenha como resultado as respostas que se aproximem ao máximo do que de fato foi a realidade. É pensando nisso que se torna urgente e inadiável a necessidade de cada vez disputarmos a opinião pública sobre temas como este. Deixar que o apagamento histórico, sem compromisso com a verdade e a seriedade da história brasileira, domine os meios de comunicação é um erro que pode voltar a reproduzir ataques como o de 8 de Janeiro.

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Nota do Editor: as imagens do corpo desse artigo foram acessadas ao acessar a interessante reportagem "Os evangélicos e a ditadura militar" de Rodrigo Cardoso na revista IstoÉ, 12 de maio de 2021 o que demonstra a percepção das citadas narrativas entre evangélicos numa intervenção de pesquisador. https://istoe.com.br/141566_OS+EVANGELICOS+E+A+DITADURA+MILITAR/




[1] As experiências Russas e Chinesas são exemplos desta vulgarização conceitual. No Livro China: o socialismo do século XXI, Elias Jabbour e Alberto Gabrielle destacam a forma como o senso comum tem reproduzido um juízo de valor acerca destas experiências ao passo que ignoram a historicidade e as especificidades históricas de cada um deles.



ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 06

Tropas do Batalhão Anhangüera REC-TC marcham de volta para a capital, após mobilização no dia 31 de março de 1964, dia do golpe militar

Foto: Acervo Estadão / Estadão

1964: A luz da longa duração

Pacelli H S Lopes

 

          Em 31 de março de 2024, o Golpe Civil-Militar de 1964 fará 60 anos. Diante das atuais disputas narrativas, é crucial para nós, historiadores, reafirmar a importância de não analisar fatos históricos isoladamente, para evitar um mundo despolitizado.

          Por essa razão, é necessário conectar a curta duração dos fatos de 1964 a média e longa duração que constituem a história nacional. Precisamos refletir: Como o ano de 1964 se liga a 1822, 1889 e a 1930? Algumas ações dos atores envolvidos nos antecedentes que levaram a 1964 e nas suas consequências nos permite compreender os vestígios da longa duração?

          Em um percurso tortuoso para nossa república chegamos aos idos de 1964. Nos primeiros anos do governo militar a conclusão que se poderia ter era que a nossa predileção pela revolução passiva terminou. Isso ocorreu devido à reforma liberal dentro do Estado, que valorizava o mercado em vez do setor público, procurou despolitizar a economia e abandonar uma política externa independente. Outra conclusão possível, no caso da observação se restringir aos primeiros anos do regime, é a de que a tradição ibérica teria chegado a seu fim.

          A antítese do regime surgiu de sua própria modernização conservadora, incitando estudos e necessidades para superar o autoritarismo, visando a restauração da democracia. A superação do regime ditatorial não foi resultado de revolução armada, mas sim de negociações entre vários atores, através de uma frente ampla, culminando no retorno da democracia.


Escolhemos analisar a vida de Afonso Arinos de Melo Franco[1] que durante sua trajetória demonstra como a longa duração, esse tempo lento e quase imperceptível é um imperativo nas nossas vidas. Nascido em Belo Horizonte em 27 de novembro de 1905, Arinos faz parte de uma linhagem consagrada de políticos e intelectuais brasileiros.

          Destacou-se como professor de história e direito constitucional em várias universidades. Trabalhou no Banco do Brasil, foi Ministro das Relações Exteriores em 1961 e Diretor do INDIPO na Fundação Getúlio Vargas. Além disso, atuou como deputado e senador em diferentes períodos.

          Interessamo-nos pelas posições políticas do ator de tradição ibérica no século XX. Cofundador da UDN e autor do manifesto inaugural, este criticou fortemente o Estado Novo. Em 1947, opôs-se à cassação dos mandatos do PCB, contrariando a maioria da UDN.

          Este foi contra a eleição de Juscelino Kubitschek, já o seu apoio a Jânio Quadros o permitiu alçar a posição de Ministro das Relações Exteriores. Como ministro, ele promoveu uma nova política externa brasileira. Abandonou o alinhamento automático com o bloco ocidental e defendeu o restabelecimento de relações com países socialistas, além do reconhecimento do governo de Fidel em Cuba.

          Ele condenava o colonialismo, defendia novas relações com África e Ásia e apoiava a desnuclearização. Depois da renúncia presidencial, retomou o cargo de senador e apoiou o movimento civil-militar de 1964, posteriormente, participou da fundação da Arena. Contudo, mudou sua posição após o AI-2. Em 1966, decidiu não buscar a reeleição. Como último ato, pediu uma reforma constitucional e sugeriu a adoção do parlamentarismo em 1971.

          Este criticou fervorosamente o Ato Institucional n.º5 (AI-5), considerado por ele como o maior exemplo de autoritarismo na história do país. Durante os anos 80, ele se empenhou em pesquisas voltadas para os problemas nacionais e defendeu mudanças democráticas. Apoiou Tancredo Neves, tornou-se senador da Assembleia Nacional Constituinte e se sobressaiu ao organizar trabalhos e defender o parlamentarismo.

          Hoje infelizmente a crise da democracia não assola só o nosso país, ela está alastrada por várias partes do globo. Porém, para entendermos o tamanho da nossa crise republicana teremos que compreender a história nacional, bem como, olhar a história pós — constituinte de 1988. A importância da longa duração e da conexão de 1964 a outros eventos históricos é salutar para nossa democracia.

          É vital que conservadores e progressistas entendam a história política e social do Brasil, em particular o evento de 1964, para evitar associação com grupos antidemocráticos, independentemente do matiz político. A vida do conservador Afonso Arinos de Melo Franco evidencia a persistência da cultura política udenista em Minas Gerais, que favorece candidatos outsiders em eleições recentes. Contudo, o equilíbrio do fiel da balança reside no conservadorismo republicano. Assim, não precisamos esquecer ou reescrever ao sabor das ideologias a história nacional, empenhamos sim, por aprender com 1964 e tornar perene e fortalecida uma cultura política para uma frente ampla e democrática.



[1] CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Afonso Arinos de Melo Franco. In: _____. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Disponível em: <https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/dicionarios/verbete-biografico/afonso-arinos-de-melo-franco> Acesso em: 28 mar. 2024.


sexta-feira, 29 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 05

Os 60 anos do Golpe de 1964 e a leitura do mundo real

Marcio Junior[1]

Para o saudoso Mestre Raimundo Santos.

 

Era 2019 quando estive sentado diante de Raimundo, meu orientador à época e com quem costumava almoçar com frequência, ele compartilhou algumas memórias de Golpes de Estado que, enquanto brasileiro, acompanhou. Segundo ele, o Golpe Militar no Brasil, em 1964, terminou por levá-lo a, com visual limitado da posição em que estava, em cima do muro da casa onde viveu em Santiago, o bombardeio ao Palácio de La Moneda, o da Presidência Chilena, que deu início ao regime autoritário naquele país. O Golpe no Chile completou 50 anos no ano passado enquanto o nosso completa 60 anos neste. Nosso país vizinho, talvez com maior dificuldade do que nós, também precisa ainda lidar com as consequências do acontecido lá.

Este exemplo biográfico ganha mais peso quando nos vemos agora, em 2024, em um mundo em que, além de não termos - a quatro anos - mais Raimundo, não temos também boa parte dos frágeis alicerces que o mundo de 2019 ainda procurava se sustentar e que a pandemia de COVID-19 fez questão de acelerar seus fins. Para além daqueles que se foram pelas complicações da convalescência causada pelo vírus durante a emergência sanitária (que não vitimou o Mestre), esta também levou diversos elementos que compunham o modo de vida de muitos no Brasil.

Desta, se mostra um cenário sombrio de falência educacional e empregatícia, resultando em falta de perspectivas sobretudo para a juventude, principalmente no que diz respeito aos seus futuros. Esta, que termina por cair nas armadilhas da percepção de que bastaria o apetite individual (envolto de uma profissão de fé relativa à formas de socialização que cada vez mais se fortalecem dentro e fora das Igrejas Evangélicas) para não apenas sobreviver, mas sim viver com máxima abundância afim de satisfazer ao máximo seus impulsos, sofreu uma queda brusca ao se deparar com uma realidade que, a rigor, revela que não há salvação enquanto não haver política feita a partir do bom diagnóstico das circunstâncias, habilidade que Maquiavel chamou atenção.

Com a publicação de A Revolução Brasileira em 1966, Caio Prado Junior (autor de predileção de Raimundo, junto com Habermas) buscou fazer um balanço crítico das forças de esquerda na conjuntura de 1964. Já em plena ditadura, Caio Prado Junior fez um balanço da fácil derrota da democracia naquele momento, na medida em que busca, de forma programática, dar um sentido prático à uma interpretação do processo de longo curso brasileiro, marcado por uma formação que dispôs os trabalhadores rurais como núcleo impulsionador das transformações sociais e, portanto, as forças produtivas que, pela sua face moderna advinda da nossa escravidão, deveriam ser incorporadas ao capitalismo afim de se fazer uma modernização de tipo diverso à aquelas ditadas pelo passado colonial ainda vivo.

Desta interpretação deriva a orientação em direção a um desabrochar das forças trabalhadoras tendo como principal via a dos sindicatos rurais, com apoio do regramento presente no Estatuto do Trabalhador Rural (sancionado em março de 1963), na medida em que a universalização dos direitos sociais seria o instrumento correto para responder a uma realidade cujo diagnóstico não seria a da luta pela terra, interpretação advinda da compreensão da história brasileira que via o homem rural do país enquanto um ator de tipo anacrônico.

A falta de aderência à realidade de tal programa foi, na interpretação de Caio Prado Junior, fundamental para a derrota da democracia em 1964. Este programa haveria de se revelar irrealista enquanto não percebia, no processo de longa duração em curso, a modernização ocorrendo ao nosso modo e demandando que este modo fosse interpretado por ele mesmo, e não na importação de modelos externos enquanto base para a formulação de programas partidários.

Ler é uma atividade que tem, como condição mínima para ser bem-feita, a devida contextualização no tempo e no espaço. Dito isso, sempre é de interesse dos derrotados avaliar em que pé ficou a conjuntura, o que passa pela compreensão dos erros cometidos e de como superá-los. Essa perícia básica, que está entre as habilidades necessárias ao ator que deseja definir a vitória e a derrota da grande política, tem nos faltado mais do que nunca. Novamente estamos diante de entendimentos que estão pouco alicerçados na realidade objetiva; O estudo histórico, e não só, de 1964 passa, também, pela compreensão de que, por mais dolorosas e áridas que tenham sido as suas consequências, devemos aprender com ele. Como dar conta de tal tarefa em plena falência de uma educação que nada indica que ressuscitará?



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ, Consultor Educacional da Teia de Saberes e responsável pelo Treinamento e Desenvolvimento Profissional da Cedae Saúde.

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 04


Sessão da Câmara dos Deputados negou autorização para que Márcio Moreira Alves (MDB) fosse processado por injúria às Forças Armadas, em 12 de dezembro 1968 | UPI

“60 não é meia dúzia”[1]: conciliar não é esquecer ou se submeter

Alexandre Vinicius Nicolino Maciel

 

Em primeiro de abril de 1964 foi deflagrado no Brasil um golpe de Estado que depôs o  presidente João Goulart. A partir desse golpe, executado pelos militares, mas orquestrado em conjunto com diversas classes civis, o Brasil mergulhou numa ditadura cruel que matou, torturou, sequestrou, exilou e limitou vidas e trajetórias. Durante 21 anos o Brasil teve como presidentes generais do exército que foram eleitos de forma indireta, num período eleitoral no qual o Brasil tinha somente dois partidos, Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava uma oposição consentida. No jargão mais popularesco, eram os partidos do “Sim” e do “Sim, Senhor”, indicando que a oposição clara e manifesta ao regime de forma institucionalizada, inexistia.

É importante reforçar que no mesmo período em que a ditadura brasileira se desenrolava, alguns vizinhos sul-americanos também passavam o mesmo drama. Nutridos pela dinâmica estadunidense da Doutrina de Segurança Nacional e pelas dinâmicas geopolíticas da Guerra Fria, Argentina (1966-1970 e 1976-1983), Chile (1973-1990), Paraguai (1954-1989), Peru (1968-1980) e Uruguai (1976-1983) também sofreram com regimes de exceção marcados por muitas mortes, torturas, prisões e desaparecimentos. A comparação entre esses regimes de modo algum pode reduzir o caráter ditatorial de uma ou outra experiência, ou ainda, considerar que algum regime, por ter um número menor de mortes causadas pelo Estado, se abrisse a possibilidade de ser classificado como ditabranda, como já fizeram com o regime brasileiro em algumas oportunidades.[2] Esse tipo de eufemismo reverbera o modo pelo qual os arquitetos do golpe o tratam desde a execução do movimento. A Revolução de 64, dada em 31 de março, nas palavras deles, buscou expurgar do Brasil as células que tornariam o país uma “Grande Cuba” e teoricamente, reforçou que nas palavras deles, não matou tanto opositor assim, pois “ao terminar a ditadura, a cultura como um todo (professores, mídia, literatura, filosofia, ciências humanas, artes, os principais partidos políticos) se revelou completamente de esquerda.”[3]

Ulisses Guimarães (MDB) enfrenta os cães na Ditadura Militar

Em nível acadêmico os debates sobre o período já se encontram consolidados. Inúmeros trabalhos acadêmicos já exploraram, e continuam a explorar o alargamento da ditadura para além da política institucional e dos atos repressivos, debatendo a atuação dos golpistas na música, na TV, nos esportes, na educação e em outros contextos sociais. Todavia, é preciso pensar no como a população em geral vê o período da ditadura, ainda mais num contexto de ebulição política e clamor constante por intervenções militares por partes de ditos conservadores (golpistas). Não raros são os vídeos dos acampados nas portas de quartéis que conclamam a volta dos militares ao poder.

Esse modo deturpado de ver história pode ser visto também como uma herança do nosso processo de redemocratização. Como dito acima, no mesmo período em que sofríamos com a nossa ditadura, o Cone Sul da América Latina era um laboratório vivo da crueldade. É também num período similar que esses mesmos países retomam a democracia e aqui é necessário exercitar o método comparativo. Alguns processos de são vistos pela historiografia como processos realizados por rupturas, já o processo brasileiro é estabelecido por pactos.[4] Esse tipo de acordo permitiu que os militares e entes públicos e privados que se favoreceram da ditadura, continuassem livres e poderosos. Fato visível dessa força é o tão falado artigo 142 da Constituição Federal, que supostamente permitiria a intervenção militar.

Deputado Alencar Furtado (PR) cassado em 1977 quando era líder da Bancada do MDB
Seu filho foi assassinado em campanha no ano de 1978
Faleceu em 2021 aos 95 anos

Assim, é preciso que os debates sobre a ditadura empresarial-militar no Brasil ultrapassem os espaços acadêmicos e se tornem comuns nos espaços públicos do país. É preciso desnaturalizar a ideia de que os militares salvaram o país do comunismo e que na “época deles” não havia corrupção. Inúmeros estudos já comprovaram o contrário, mas eles precisam chegar à base da sociedade. Para além, disso, utilizando-se dos pilares estabelecidos pela Justiça de Transição[5] é preciso avançar em políticas públicas de memória e Justiça. Assim, é preciso que o Estado se pronuncie em questões acerca da ditadura e possibilite a criação de espaços de memória, tal quais outros países possuem. Não em tom de revanchismo, mas em busca de memória e justiça. Os sessenta anos do golpe nos recordam que é preciso avançar, mas não esquecer. Pois, conciliar não é o mesmo que esquecer ou se submeter.



[1] O título faz referência ao evento organizado pelo instituto Coalizão Brasil em referencia aos 60 anos do golpe de 1964.

[2] LIMITES a Chávez. 2009. Folha de S. Paulo, Editoriais, 17 fevereiro 2009. Disponível em : < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm >. Acesso em: 9 julho 2020.

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da História do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009. [recurso digital]

[3] PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo: Leya, 2012. 232 p [recurso digital]

[4] FRIDERICHS, Lidiane Elizabete. Transição democrática na Argentina e no Brasil: continuidades e rupturas. AEDOS, Porto Alegre, v. 9, nº. 20, p. 439-455, Agosto, 2017.

[5] A justiça de transição é composta por quatro elementos ou pilares. São eles: (1) o direito à memória e à verdade; (2) as reformas institucionais; (3) as reparações simbólicas e financeiras; e (4) a responsabilização por atos praticados no período autoritário.

quinta-feira, 28 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 03


Um tanque de guerra do Exército em frente ao Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro em 8 de abril de 1964 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo) 

1964 e a “bestialização” carioca

Em memória ao centenário de Lindolpho Silva

Vagner Gomes de Souza

 

1964 marca um profundo impacto para a antiga sede da Assembleia Constituinte de 1823, 1891, 1934 e 1946. Seu esvaziamento político institucional se aprofundou sob os parâmetros da perseguição política que muito atingiram cariocas e seus residentes como a memória do chamado “Massacre de Manguinhos” nos faz lembrar[1]. O Rio de Janeiro formado como a cidade da consolidação da unidade nacional em suas linhas tortuosas e ibéricas se abriu para uma “americanização” de seu subúrbio transformado num “Novo Oeste” americano ao Sul do Equador. Na expansão da ocupação do espaço urbano desordenado sob a égide de uma modernização conservadora muito de perversão do americanismo assolou a nossa cultura carioca.

A falta de autonomia da antiga capital do Império e da República não impediu que houvesse uma vida dinâmica se fizesse perceber nas favelas no pré-1964 com a dinâmica disputa política pela organização de seus moradores entre setores da Igreja Católica e os comunistas. As principais favelas cariocas, sob nossa medida, estavam se transformando com uma semelhança a longa disputa política entre a democracia cristã e os comunistas italianos essa é nossa hipótese que justifica as intervenções urbanas das chamadas “remoções” que fizeram emergir os conjuntos habitacionais de Vila Kenedy e Cidade de Deus.

A cultura do samba carioca no período anterior a 1964 estava em grande conflagração diante de inúmeros exemplos de agremiações com inserção de componentes com militância no PCB e que foram perseguidos ou se afastaram no decorrer da ditadura militar. O mesmo ocorreu no meio sindical carioca com a intervenção do Governo Federal em inúmeros sindicatos aonde podemos mencionar o antigo Sindicato dos Urbanitários do Rio de Janeiro que guardou uma marcante presença na participação e organização do comício de 13 de março de 1964.

Esses exemplos demonstram que a inserção da política não se limitava as fronteiras de uma classe média carioca e universitária. Nos distantes bairros de Campo Grande, Santíssimo e arredores, então Zona Rural da Guanabara, as mobilizações dos sitiantes e posseiros se faziam no intuito de organização dos trabalhadores rurais sob a liderança de um quadro dirigente do PCB, porém com muitas fontes que demonstram lideranças locais que submergiram ao silêncio talvez do medo[2]. Aliás, seguindo a nossa hipótese anterior, havia uma articulação entre os setores rurais do PCI e PCB acompanhado por Lindolpho Silva[3]. Assim, a chamada “grilagem” na atual Zona Oeste carioca ganhou mais força nos tempos da Ditadura Militar transformando a região num amplo espaço de nova orientação política. Os ventos da modernização conservadora fez emergir uma sociedade carioca “bestializada”.

Consequentemente, diante das investigações sobre o assassinato de uma Vereadora e seu motorista no ano de 2018, há muito dessa sociedade que se fez emergir como “besta-fera” diante da “bestialização” até na formulação de políticas daqueles que se encontram na chamada esquerda carioca muito prisioneiras das imagens sem perceber que o Rio de Janeiro é um mundo político das mediações. Um “coronelismo contemporâneo” de lideranças políticas decadentes diante do fator religioso do neopetencostalismo.

1964 fez com que tenhamos uma sociedade aliada a esse processo de política degenerativa, pois o “mercado do crime” que no seu mutiverso tem o “mercado da fé”. A representação da política democrática se faz pelo espelhamento com um uma estranha desconfiança das instituições e maior individualização das manifestações políticas hipermodernas. As mobilizações sociais foram capturadas por um “mercado do identitarismo” que criou uma “reserva de cargos comissionados” a militância política desconectada com os cariocas do dia a dia. Formando um “vazio político” ocupado pelas forças políticas reacionárias uma vez que as análises daquilo que chamam esquerda carioca parecem moldadas na “Ágora da Praça São Salvador ouvindo uma Mafalda”.

Não se percebeu que 1964 fez emergir um laboratório do pinochetismo no submundo do crime desde com suas chacinas executadas por agentes do Estado. O Rio de Janeiro é a hiperatividade do neoliberalismo. Sociedade pura na matriz do interesse individual. A ideia de Estado se foi no “chaguismo” ao mapear politicamente o universo da cidade. A fusão, implementada na Ditadura, esvaziou ainda mais a vida política do Rio de Janeiro pois se fez na égide do clientelismo e com as ações do “Mão Branca” na Baixada Fluminense. Faltam mais estudos recentes no mundo acadêmico fluminense sobre esse processo.

Logo, o bolsonarismo não é nada no Rio de Janeiro e paradoxalmente ele é tudo, pois ele se alimenta desse esvaziamento da política na sua postura antipolítica. Portanto, para ficarmos num problema de comportamento político que nos interessa, se a família Brazão é mais uma no mosaico da Zona Oeste carioca, o “caso do Bairro de Campo Grande” é a demonstração de que a hipótese do “lulismo”, segundo André Singer, se tornou uma pura noção conceitual, pois os interesses se uniram aos intermediários que de “Escritório do Crime” alimentam o “Escritório do Voto”. 




[1] O Massacre de Manguinhos foi um caso de expurgo político ocorrida no então Instituto Oswaldo Cruz (IOC) - hoje unidade técnico científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - durante a ditadura militar brasileira. Dez cientistas do IOC/Fiocruz foram cassados em 1º de abril de 1970 com base no Ato Institucional n.º 5 (AI-5).

[2] Voz Operária, Edição 213, 1953, página 8. https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154512&pagfis=2416 Consultado em 28 de março de 2024.

[3] Cf. https://journals.openedition.org/nuevomundo/69678 (Consultado em 28 de março de 2024).