1974:
a derrota vitoriosa
Pablo Spinelli[1]
O ano de 1974 é deveras
importante para a análise e a ação da política no tempo presente. Dez anos
antes se instaurou no país aquilo que a academia há cerca de duas décadas
intitulou de Ditadura Militar-Civil. O termo civil é exposto para lembrar a
adesão do empresariado, de políticos, de setores eclesiásticos, da mídia
escrita e falada, de grupos da heterogênea classe média, dentre outros, que
transbordavam quantitativamente o número de militares quanto à proposta da
derrubada do governo constitucional de João Goulart que foi substituído por
generais em simulacros de eleições organizadas pelo Alto Comando das Forças
Armadas.
Não cabe no espaço aqui
adentrar com detalhes, mas a proposição daquela que era chamada pelos seus
simpatizantes como “Revolução” ou “A Redentora” servia a propósitos claros: a
perspectiva de um novo modelo de liberalismo que mais tarde foi chamado de
neoliberalismo; para isso, tornava-se premente derrubar o arcabouço da
construção de Estado feito desde os anos Vargas e que foi conseguido por
pressão do mundo sindical – nem todos eram pelegos -, dos intelectuais, dos
trabalhadores rurais. Além desses dois vértices – o desmantelamento do Estado e
a introdução do mundo do mercado se sobrepondo ao da política – havia um
terceiro, a desorganização e destruição das esquerdas, mais representadas pelo
PTB, que conseguia aumento de representantes no legislativo federal e pelo PCB,
que quase sempre ilegal na sua vida partidária, tinha ecos no mundo das artes,
no universitário e no mundo sindical.
A partir de 1964 a
oposição ao governo foi se cindindo a ponto de se criar uma bifurcação; os
adeptos do foquismo (os focos de guerrilha que vinham de Cuba de Castro,
Guevara, Debray) com ou sem o protagonismo do mundo rural, seguindo a linha
chinesa maoísta; por outro lado, os adeptos da luta política, que defendia a
articulação de uma Frente Democrática (e não de esquerda) ou Frente Ampla, que
inseriria de comunistas do PCB a liberais e dissidentes da Ditadura. Dessa
forma, Marighella, Lamarca, Apolônio de Carvalho, os Grabois, dentre outros,
seguiram a linha de enfrentamento (sempre desigual) ao regime, embebidos do
“otimismo da vontade”, enquanto que os dirigentes do PCB foram adeptos da
“guerra de posição” (sem o uso desse termo): dentro da fórmula do bipartidarismo
criada pela Ditadura em 1966 para dar um verniz democrático para consumo
externo coube às armas da política fortalecer o MDB, o partido de oposição que
foi consentido pelo alto.
Ambas as lutas eram
desiguais. A luta armada foi trágica, por mais que pareça romântica. Seus
ganhos foram muito menores que as suas perdas. Arroubos individuais como o
roubo do cofre do governador Adhemar de Barros não tinham adesão popular seja
por conta da censura, seja pelo que o melhor do pensamento político brasileiro
nos ensina: a sociedade brasileira é conservadora. Por outro lado, a luta
política era árdua desde a composição das candidaturas até o processo eleitoral
no legislativo. As análises recentes mostram que há um amplo cinturão
bolsonarista no centro-oeste do país, assim como nos estados do sul, além de
cidades de pequeno e médio porte. Pensemos como eram disputas eleitorais nessa
região naqueles anos.
O ponto de inflexão
deu-se com a crise do petróleo causada por um conflito no Oriente Médio. O
dólar disparou, as divisas sumiram e o capital especulativo que teve com o
regime militar uma excelente recepção esfumaçou. Esse cenário foi decisivo para
a agonia do “milagre econômico brasileiro” (1968-1974), um slogan para um
momento de índices econômicos primorosos sob o custo de arrocho salarial,
repressão a greves (como Osasco e Contagem), aumento da desigualdade social a
ponto de ter sido cunhado o termo “Belíndia” pelo economista Edmar Bacha para
sintetizar a Bélgica e a Índia que existiam no Brasil. Com o escalonamento
inflacionário, aumento do subemprego, degradação das periferias aglomeradas das
grandes cidades, endividamento dos municípios houve o olhar virtuoso sobre essa
Fortuna: o fortalecimento da oposição pelo voto.
A Frente Democrática
conseguiu emplacar os melhores nomes para os legislativos estadual e federal,
algo que a França há poucas semanas fez e que nossos analistas – muito por
falta de história – entendem como algo original. Há de se destacar a coragem do
“anticandidato” Ulysses Guimarães, que fez uma campanha ciente da derrota no
Colégio Eleitoral. Seu objetivo e do vice, Barbosa Lima Sobrinho, era o de
capilarizar as críticas ao regime militar e propor o voto nos nomes do MDB de
cada estado, de cada cidade visitada. Dentro da linha de raciocínio de John
Stuart Mill, o debate de ideias faz parte de um processo civilizatório, e foi
isso que aproveitou a oposição com debates no rádio e na televisão.
O resultado foi a vitória do Movimento
Democrático Brasileiro sobre a ARENA (partido de civis que apoiavam a Ditadura)
com 16 senadores das 22 vagas em disputa e a conquista de 44% das cadeiras na
Câmara. Os votos dos descontentes com a Ditadura iam da endividada classe média
às classes subalternas. Políticos começaram ou consolidaram sua carreira pela
democracia, como Ulysses, Itamar Franco, Mauro Benevides, Marcos Freire, Orestes
Quércia, Ramez Tebet, Pedro Simon, Fernando Lyra.
O que pode ser extraído
desse acontecimento de 50 anos? A) a defesa da política e o olhar da virtú
diante da Fortuna; B) a importância da consolidação de uma Frente Democrática
sem ressentimentos; C) que essa Frente Democrática perceba a importância do
Legislativo; D) a necessidade de capilarização da política democrática para
furar as bolhas; E) dialogar com setores que nem sempre votaram com o que as
Forças Democráticas defenderam e sem olhar inquisitorial e punitivista para
aquele com quem discordamos; F) a necessidade de formação de bons quadros para
momentos de debates e não baixar o nível neles, ser propositivo; G) ter clareza
que uma derrota pode ser vitoriosa, como nos mostrou Ulysses Guimarães.
Derrotado como “candidato” seu objetivo era fortalecer o MDB e a luta
democrática. 14 anos depois ele erguia com as duas mãos a Constituição Cidadã
de 1988.
Um comentário:
Me lembro bem, tinha 17 anos. Havia começado minha carreira no Teatro um ano antes no recém inaugurado Teatro Municipal de Santo André, uma das prefeituras mais progressistas da época. Cheguei a ir em sindicatos, associações de bairros com espetáculos onde havia debates após as apresentações. Foi uma base maravilhosa pra minha construção como cidadão.
Postar um comentário