Paixão pelo Possível
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
A
compostura política não deve ser confundida com a social, que, embora aparente
ser menos importante para o futuro das sociedades, carrega um papel sobejo. A
compostura social refere-se às regras de boas maneiras, à ideia de bom gosto e
às normas de comportamento social que começam a ser estabelecidas no século XV
e que são bem descritas pelo mestre da história dos costumes Norbert Elías (1897-1990)
e às quais o grande filósofo Erasmo de Rotterdam (1466-1536), que deixando fluir
por um momento seu grande gênio, dedicou em 1530 um pequeno livro que fez muito
sucesso a época, De civilitate morum puerilium (Da civilidade pueril),
um livro curioso e divertido aos nosso olhos, em que desenvolve o conceito de
civilidade também caro ao saudoso Emmanuel
Le Roy Ladurie (1920-2023), um conjunto de bons costumes válido para se
comportar na vida e que opera para toda a sociedade.
Nesse
livro, ele aponta, entre outras coisas, preocupações específicas sobre o muco
nasal e a forma como ele deve ser removido. Afirma que não é correto se jogar ele
ao leu e muito menos colocar as mãos na comida a torto e a direita.
A
compostura política é algo diferente, é uma questão que apela à substância e à
forma, ao método como parte inseparável do conteúdo da política democrática.
Consiste numa forma de comportamento, num estilo, num tom que reforça na ação
política a procura de um caminho reflexivo para liderar a pólis que
procura os caminhos dos compromissos e acordos históricos, que aproximam visões
avessas a polarizar posições conflituosas, que tentam alcançar o apoio do
cidadão, pois deseja proclamar as virtudes dessas propostas.
Procura
soluções possíveis que sejam aceitáveis para grandes maiorias e procura olhar
o adversário distante do conceito-relação amigo-inimigo, em que o inimigo deve
ser destruído.
A
compostura política implica decência e decoro nos métodos a utilizar, moderação
na linguagem, e descarta a estridência e o insulto, ao desejar fortalecer não
só as posições que defende, mas ao mesmo tempo a vida democrática como um todo,
protegê-la do declínio, das brigas que reinam nos sistemas políticos decadentes,
que acabam por incentivar o surgimento como uma pandemia de ideias rudes e
autoritárias que se propõem a estabelecer a ordem a todo custo, mesmo quando há
direitos e liberdades pisoteados.
Este
tom, este estilo, não significa renunciar as convicções e a objetivos e metas
ousados e necessários, não devem corresponder a uma posição política fraca e
vazia, mas procura os seus objetivos de forma serena, gradual, comedida, sem
pretender possuir verdades absolutas, mas com ouvidos abertos aos outros, a
quem pensa diferente e age de forma ponderada e ajustada às circunstâncias, ao
tempo e ao lugar.
Isso não
significa que aqueles que a praticam como o recém-empossado primeiro-ministro
do Reino Unido Keir Starmer do Partido Trabalhista não tenham temperamento e sangue
nas veias, mas sim que tenham uma capacidade de autocontrole que é sempre útil
para qualquer pessoa, mas é essencial para um líder que aspira a liderança
dirigir os destinos de um país, competindo em um sistema pluralista e
diversificado.
Há
poucos dias completaram-se quarenta anos do falecimento, em 11 de junho, de
Enrico Berlinguer (1922-1984), secretário-geral do Partido Comunista Italiano,
ocorrida no meio de uma manifestação, dramaticamente devido a um acidente
vascular cerebral durante um discurso. Berlinguer liderou o maior Partido
Comunista do Ocidente naqueles anos e realizou uma transformação gradual da sua
tradição histórica e teórica, conduzindo-o a um horizonte democrático e
reformador. Ele nunca liderou um governo, mas para o seu funeral a Itália rendeu
todas as honrarias de chefe de Estado, com apoiantes e adversários
homenagearam-no, mesmo os mais ferozes, houve um sentimento de perda não só política,
mas cultural, ele deixou uma marca profunda por ter ajudado a Itália a passar
por momentos infelizes durante o recomeço da democracia.
Anos
depois de sua partida, o partido que contribuiu poderosamente para mudar deu
origem, juntamente com outras tradições políticas progressistas, ao atual
Partido Democrático, que nas últimas eleições europeias alcançou 24,8% dos
votos, sendo o segundo partido em Itália, uma enorme garantia democrática em
tempos de ascensão da extrema direita e de tendências iliberais.
Algumas
de suas ideias não duraram, mas sua figura permanece sendo muito respeitada
mesmo entre as novas gerações. Nestes quarenta anos perdurou um respeito, um
apreço e até uma reverência que percorre todo o arco político, as mais
diferentes posições e de muitos cidadãos afastados da política.
Berlinguer
faz falta porque ele incorporava com impressionante precisão o que tememos que
a nossa comunidade planetária possa perder: a compostura. A capacidade de
manter um estilo público e uma respeitabilidade em seu cotidiano que não pode
ser apagada pelos acontecimentos, como se entre os deveres de um líder,
estivesse o de demonstrar, não como algo menor, mesmo nas mais duras e
dramáticas tempestades políticas um estilo.
Um
estilo de decência, austeridade e altivez em todas as suas batalhas desde a
libertação da Itália, quando era muito jovem, até à sua morte demasiada
precoce.
Afinal,
foi essa a marca que ele deixou, algo humano, corajoso e que transpirava
brandura. Muito poucos políticos sobrevivem a um respeito profundo, duradouro e
horizontal pela sua compostura política. Berlinguer não é o único, claro, e há
outros de diversas tendências políticas, mas são poucos.
Estamos próximos
ao início de um período eleitoral que pode fortalecer ou enfraquecer a nossa
democracia, que apesar da sua resiliência e resistência não nos encontramos no
melhor momento, a atmosfera existente e o nível dos debates são mesquinhos e
dolorosos.
Não será
hora de refletir sobre o tom, o estilo e o método de ação política? Talvez esta
reflexão nos ajude a abandonar como fez em uma semana a França, ao pôr de lado
as visões extremas, os interesses particulares que por vezes parecem ocupar a
maior parte do espaço público e a regressar, pouco a pouco, ao caminho do bem
comum.
7
de julho de 2024
[1] Presidente do Conselho
Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto
Devecchi.
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