quinta-feira, 8 de junho de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 017 - DESAFIOS PARA UM PAÍS DE LEITORES

Machado, Nélida e o PIRLS

          Marcio Junior[1]

 

Certa vez, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, a saudosa escritora Nélida Piñon teceu o seguinte comentário: “O sistema educacional não estimula a leitura. Não podemos obrigar uma criança a ler Machado de Assis, é um equívoco. Não é necessário ler Machado de Assis a não ser quando você jura que está preparado. Machado de Assis não precisa de leitores, precisa de pessoas que vão amá-lo ao lê-lo. (...) é como amar bem, amar certo. Você vai errando e de repente você entende que domina um instrumento que é quase amoroso.” (Disponível em: https://youtu.be/o3rR0PzKtEI).

          Nélida, de quem tive o prazer de ser amigo, falava de algo que vai além do sentimento único de construir uma relação com um grande autor através de seus textos e personagens; ler bem demanda estudar, assim como estudar bem demanda ler, independente do que se estude. Assim, para que a leitura dê certo e o leitor absorva o conhecimento ali contido, ele precisa ter técnica e disposição que só é adquirida com treinamento. Afinal, não é por ser uma atividade que pode ser absolutamente apaixonante, cativante e enriquecedora que ela é desprovida de método.

          Nesse sentido, não podemos pensar a leitura em termos educacionais, onde os alunos estão aprendendo coletivamente nas escolas, sem levarmos em consideração que é necessário alguém que os ensine, objetivamente, como fazer isso. As crianças precisam não apenas saber ler as palavras, mas serem preparadas para atingir algo mais profundo e sofisticado. Vejamos, por exemplo, a leitura de um romance: mesmo que se possa ler uma frase, sua compreensão demanda domínio, inclusive, das figuras de linguagem, recurso semântico que faz parte dos conteúdos já do Ensino Fundamental e, evidentemente, elencado na arquitetura da BNCC. Uma das maiores belezas dos textos de Machado são as suas refinadas metáforas. Como amá-lo sem ter domínio deste recurso?

          Nesse ponto de vista, não estamos bem. A divulgação do resultado do Progress in Internacional Reading Literacy Study, o PIRLS (Estudo Internacional de Progresso em Leitura), nos mostrou. Trata-se de uma pesquisa quinquenal, nesta edição com 57 países participantes que avalia a compreensão de leitura dos alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, a partir de amostra. Foi feita aqui sob coordenação do INEP em 2021, segundo ano da pandemia de COVID-19, sendo a nossa primeira participação, o que significa que não temos histórico dessa pesquisa no período anterior à pandemia.

          A medição de proficiência, feita nas línguas vernáculas de cada país (o tema é mais complexo, pois outras sociedades que constituem outros países podem utilizar mais de uma língua para ler, e essas línguas podem variar, inclusive, no espaço) resulta em uma escala de 1 a 1000, tendo o Brasil feito 419, valor considerado, em escala, de nível baixo. Dos 4.941 estudantes avaliados, 38% não conseguia reproduzir um pedaço de informação declarada no texto, ou seja, não dominava a leitura mais básica. Grande parte dos alunos está chegando no 4º ano do Ensino Fundamental sem o conhecimento de leitura que deveria ser adquirido antes, cuja deficiência compromete o conhecimento que podem ter ao longo da vida. 

           Assim, fica um pouco mais clara a tarefa de natureza republicana e democrática que temos pela frente. A perda de gerações de estudantes que a pandemia nos legou se soma à uma situação que já não era boa, e será necessário um esforço enorme para conter os danos que, mesmo com o retorno das crianças às escolas, podem continuar entre nós. Será que temos profissionais de educação, de professores a gestores, em número suficiente, capazes de compreender e responder a este problema de extrema complexidade? Exige trabalho em tempo integral, sem limitação aos muros das escolas e sem aumento de salário por isso. Há coisas que o dinheiro não compra, inclusive o gosto pela leitura e a compreensão ensinada de que ela é necessária para enfrentar a vida.

         



[1] - Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

TEXTOS DA JUVENTUDE - VAI NA FÉ PELA DEMOCRACIA


As Trombetas da Frente Democrática diante de Jericho

Por Giovana Freire – Sul do Rio de Janeiro

 

No decorrer dos últimos anos observamos uma “fratura exposta” no segmento religioso evangélico. Provavelmente, seria a visibilidade de diversos discursos de ódio vindouros de muitas denominações que se denominam cristãs quando aos meu ver nem deveriam entrar em um coliseu de ódio no âmbito político a menos que seja para defender suas convicções de doutrina de fé. Lamento que há falas totalmente sem nexo vindo de apoiadores do ex-presidente, causando pânico e repulsão a política em jovens em grande maioria no segmento protestante cristão.

Porém quando falamos em contextos políticos não fechado em apenas uma argumentação sólida, mas sim em uma pluralidade onde “todos, todas e todes” devem ter o mesmo direto de voz e liberdade de expressão.  Vivenciando um atual cenário onde tudo que não se atenda para “orientação política neoreligiosa” numa forma bem leiga designada por quem vos escreve. É considerado discurso de ódio preconceituoso e naturalizam ataques por não ser de alguém da mesma base política ou crédulo religioso que o seu. Na verdade, cresceu entre nosso espaço a mobilização de um discurso de antipolítica muito distante do legado de Martinho Lutero.

Onde as forças retrógradas alimenta um medo sobre uma esquerda como os “cavaleiros do inferno” ou até mesmo os “destruidores das famílias tradicionais conservadoras”. As forças liberais à esquerda vêm com um discurso de forma branda e tentando amenizar os próprios temores e medo de sofrer represálias pelos eleitores do outro lado, que por sua vez são mais eufóricos e “loucos” pelas suas ideias. Aparentemente parece que a cidade de Jericho está sob um cerco aguardando a invasão redentora. Todavia, estamos a sentir a necessidade de abrir caminhos dialógicos com a juventude que se inspire em Martin Luther King Jr.

Já há muito tempo observo minha juventude e irmãos de fé se afastando tanto dos contextos religiosos como dos políticos. Talvez como uma banalização do sistema onde houvesse uma postura autocrata. Sugestões seria que há uma extrema-direita opressora no qual afirma que os jovens, ainda mais os cristãos, devem se portar de maneira neutra, onde todos só têm o direito de falar quando é para defender esses prováveis 49,1% eleitores conservadores.

Nunca me senti totalmente representante por nenhum dos dois lados como uma boa “centrista” diriam alguns, mas por sua vez sinto-me representada numa religião. Tenho anseio por tempos melhores em nossa política nacional, de maneira clara e não opressora que venhamos poder exercer nosso direto de escolha sem um voto por imposição ou até mesmo por constrangimento também, medo imposto pela “anti-imprensa” que distribui Fakenews que só distância e enojam mais os jovens do âmbito político atual.

A juventude está avessa à prática da política Republicana e Democrática, pois os políticos ainda seriam observados como sem legitimidade. Por outro lado, de mãos atadas com medo de uma represália, os jovens que são pertencentes a certas denominações cristãs se calam e consentem, mesmo que direta ou indiretamente seja totalmente contra a forma com que é levada nossa política brasileira. Aonde o Presidente da nação só mereceria respeito se for “aquele que a minha religião elegeu”. Um perigo a se afastar pelo soar das trombetas. De fato, o acesso a verdadeira democracia marcada na carta constitucional de uma maneira totalmente clara nos indicam a importância de nossa pluralidade.

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 016 - A GERINGONÇA DE GUIZOT


 Pintura de Victor Meirelles

A geringonça abrasileirada

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

No Museu Victor Meirelles, em Florianópolis existe uma de suas pinturas muito impressionante que leva o nome A jangada da Medusa. É sem dúvida um estudo da obra-prima inspirada em um naufrágio que comoveu a França no início da Restauração Francesa, que Pierre Rosanvallon apresentou em O momento Guizot.

Foi pintada por Victor Meirelles entre 1857 e 1858 e deriva da tela de 1818 e 1819 de Théodore Géricault, pintor fundamental do romantismo francês.

Em 2 de julho de 1816, a fragata francesa Medusa encalhou e como o número de botes salva-vidas era bem menor que a tripulação (como se daria anos depois com o Titanic), os que não conseguiram ocupar os botes construíram uma grande jangada para se salvar. Após 13 dias de medo e miséria, dos 147 que ocupavam a jangada, apenas 13 sobreviveram, a grande maioria pereceu por descaso e irresponsabilidade.

A aprovação do Projeto de Lei de Conversão Nº 12 na passagem do dia 31 de maio para o 1º de junho, onde foi estabelecida a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, não tem, evidentemente, o drama e a irreversibilidade desse trágico naufrágio.

Muitos democratas não gostaram do resultado porque o considerou distante de certo equilíbrio de forças que teria facilitado o diálogo e o debate visando fortalecer e conformar os princípios pactuados como espinha dorsal da nova administração, de modo a obter uma lei capaz de ser ao mesmo tempo democrática, social, moderna e protetora dos direitos e deveres da república.

Seria um erro, porém, pensar que o resultado daquela aprovação, realizada de forma legítima, coloca o Brasil no quadro de Victor Meirelles, em situação de extremo perigo para a convivência democrática.

Felizmente, o tom tanto do governo da Frente Democrática quanto dos chefes dos partidos do Centrão responsáveis por essa aprovação em suas intervenções após o resultado não teve um caráter apocalíptico e disruptivo quando se referiam ao futuro.

O esforço para continuarmos no esforço para chegar a um acordo razoável sobre a questão governamental e não deve parar por aí e ao projetarmos o que aconteceu devemos vê-lo como uma oportunidade da formulação abrasileirada da "geringonça" que concedeu a Chico Buarque o Prêmio Camões.



Isso requer uma disposição positiva e muito determinada tanto dos envolvidos diretamente que tiveram forte apoio quanto dos que tiveram uma participação indireta, que deve ser expressa na vontade de produzir acordos.

Isso implica a necessidade de os partidos governantes modificarem realisticamente suas aspirações prioritárias na atual correlação de forças. Para isso, o governo deve abandonar sua ambivalência e ambiguidades e jogar a cartada social-democrata e gradual com coragem e, sobretudo com convicção, mesmo quando isso significar fortes tensões com os setores mais obtusos de seus partidários.

A direita tradicional, cujo eleitorado marcou sua posição após a derrota da sua vertigem da tentação radical, embora soe contraintuitivo, deve confirmar uma identidade moderada e não apostar na radicalização, praticando assim uma racionalidade que tira lições do que aconteceram noutras partes do mundo. É claro que o ambiente político negativo que o país viveu acelerou todos os processos em curso.

O desânimo e desconfiança com a política se refletiu como, também, felizmente, afastou os organizadores da antipolítica. É bem verdade também não ter havido tempo para quem, de posições reformistas progressistas, levantasse a necessidade de reformular naquele espaço uma forte vontade de existir em dialogo, sem o qual não tem como dar bons frutos.

Esta última permite uma dupla interpretação, a de quem pensa que é um novo início da centro-esquerda e outra, ainda mais importante, que faz parte do corajoso início de um longo caminho junto com as novas expressões políticas do Centrão para construir esse espaço de reforma que o Brasil tanto precisa.

Naturalmente, em certa esquerda, florescerá o eterno pensamento de que quanto pior as coisas, mais próximo chegará o momento mágico da revolução, o fogo purificador que nos levará a nos submetermos aos seus sonhos, que até hoje, historicamente, sempre terminaram em insuportáveis pesadelos.

Parece que aqueles de nós que passamos anos dizendo, contra todas as probabilidades, que o prudente avanço com o qual construímos a democracia depois da ditadura, com todos os seus limites, não só era a trajetória acertada e é o melhor caminho a seguir. Os rumos em busca ao desejo da perfeição democrática, embora nunca perfeita, dá-se por passos mais sólidos que longos.

Como esse caminho foi perdido 4 anos atrás, há poucas notícias boas e muitas notícias ruins. No final, depois de empurrar tanto o país para a direita, acabou por aparecer uma extrema direita obscura de semblante internacional. Entretanto, isso criou um descontentamento generalizado com os rumos do país, com uma sinalização Duas-Caras, onde ao lado dos que supostamente constroem operam os que destroem que abarrotam o seu próprio governo de reivindicações insatisfatórias e caminhos de desenvolvimento marcados por uma confusa doutrina de quem abunda em emoções e slogans e falta de pensamento.

A mudança de rumo de 2023 não significa abrir mão do horizonte de uma sociedade mais justa, significa fazê-lo com base em amplos acordos. Mas acima de tudo, tendo como prioridade as necessidades da geringonça abrasileirada advinda da Frente Democrática.

Em primeiro lugar, recuperar o que perdemos a segurança dos cidadãos, a paz social, uma convivência ordeira, diga-se de passagem, democrática e baseada em direitos e deveres. Todo o esforço deve ser dedicado a isso, não pode haver Democracia se não houver Estado, se não houver regras e se não for aplicada a força quando for necessário para fazê-las cumprir, no norte, centro e sul do país.

Educação e saúde de qualidade e provisão, trabalho e pensões dignas. A democracia para viver e se desenvolver exige convicção em seus princípios, mas também resultados concretos e estes precisam estar funcionando. Não há outra maneira de reconstruir a confiança. Chega de dar espaços prioritários a besteiras que só respondem a devaneios tribais. Ou nossa democracia é capaz de ser justa e eficiente ou corre o risco de se desgastar, esvaziar-se e definhar.

 

4 de junho de 2023


[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.




domingo, 21 de maio de 2023

A DOCE POLÍTICA DO CINEMA - NÚMERO 18 - O CPC EM BARACK OBAMA


 A Inteligência Artificial vai chegar, Seu Edgar[1]

Por Rayssa Thimoteo Teles[2]

 

Ao se tratar de Trabalhar, até onde podemos refletir e impulsionar nossos atos perante as necessidades cotidianas?  Como cidadãos, é notável e imprescindível que em algum momento de nossas vidas estaremos inseridos no Mundo do Trabalho, seja por Dinheiro, Vocação, Distração, ou simplesmente conseguir atingir objetivos e superar obstáculos, como resultado da aquisição de novos conhecimentos e de interações sociais. Na série, Barack Obama retorna às telas em uma série documental produzida pela Netflix, o ex-presidente americano se apresenta como um explorador do mundo do trabalho nos Estados Unidos a partir do livro Working de Studs Terkel.



Studs Terkel foi um incentivador da cantora gospel Mahalia Jackson que cantou "Take my hand, Precious Lord" no funeral de Martin Luther King Jr


“Nesta série, falo com trabalhadores americanos de diversas indústrias, desde hotelaria e tecnologia até atendimento domiciliar, para compreender seus trabalhos e esperanças para o futuro”, explicou Obama no Twitter. Atualmente, vivemos em uma época de fugacidade, onde muitas das vezes nos desconectamos das coisas que realmente importa como família, amigos, lazer, dentre outras coisas primordiais. Independente da classe social, é indubitável que todos os indivíduos que se mantem no mercado de trabalho, contribuem para a movimentação econômica do país, todavia, devemos acima de nossas obrigações, pautar como está nossa saúde mental e física.

Diversas profissões são responsáveis por transformar a sociedade como um todo, e dentro desse viés, devemos impor respeito a todos que se sobrecarregam dias e noites em busca além das realizações pessoais, a sede incansável da transformação social em que vive. Eis o ensinamento do primeiro episódio da série chamado “Prestação de Serviços”. A empatia faz parte e falta dentro desse universo competitivo e hierárquico que é o Trabalho, porém, muitas pessoas ainda acreditam que é falsa a esperança que o trabalho possa ter algum sentido maior, ou até mesmo trazer felicidade. Elas acreditam que não haverá maiores ganhos financeiros, e que as oportunidades de crescimento raramente vão surgir. Dessa forma, passam o tempo todo desmotivadas no trabalho, esperando que algo aconteça para que elas comecem a melhorar.


Barack Obama no quarto episódio da série questiona aos chefes sobre as oportunidades no trabalho nos dias atuais

O que precisa ficar claro a todos os trabalhadores, seja qual for a atividade que executam, é que o sentido ao trabalho quem dá é você mesmo. Cada um atribui um significado para aquilo que faz, e esse significado vai determinar o quanto de dedicação você vai colocar para executar as atividades. Se o significado do trabalho for grandioso, você se comprometerá verdadeiramente com sua profissão.

Pesquisas já informam que, em algumas atividades, o brasileiro trabalha até 48 horas por semana, ou seja, além do acarbouço constitucional de 1988 e em situação precarizada. Então, se não encontrarmos um sentido valioso para o trabalho, passaremos pelo menos 1/3 da vida desanimados, desmotivados e sem esperanças. Dar sentido ao trabalho não significa ser obcecado por ele, ou seja, ser um workaholic (viciado em trabalho), que só dá atenção ao trabalho e esquece as outras áreas que compõem a vida. Quando você tem grandes motivos em sua vida, ou seja, metas pessoais, sonhos e realizações para alcançar, o trabalho pode ser um meio de conquistar o que deseja. 

Dessa forma, o trabalho terá um sentido muito mais amplo. Um trabalho sem grandes significados faz com que a rotina distancie você de seus sonhos. Então, procure visualizar seu trabalho como uma missão, como uma forma de ajudar os outros, de servir a outras pessoas, de ser útil e importante naquilo que você faz. Quando damos sentido ao nosso trabalho não existe preguiça ao acordar cedo e não há resistência para nos dedicarmos um pouco mais às nossas atividades, ao final do dia. Um trabalho com sentido forte faz com que aquilo que foi iniciado seja concluído. Pessoas que enxergam um sentido no trabalho, o fazem com entusiasmo, dedicam-se a fazer o melhor em cada momento.


[1] Esse título foi sugerido pela Equipe de VOTO POSITIVO inspirado no texto A Mais-Valia vai acabar, seu Edgar de Oduvaldo Vianna Filho que buscava unir teatralidade e didatismo.

[2] Graduanda em Agronomia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) estreia em VOTO POSITIVO com 17 anos.

sábado, 20 de maio de 2023

SÉRIE ESTUDOS - GILBERTO FREYRE E OS CAMINHOS DA CIVILIZAÇÃO ( I )

90 Anos de Casa-Grande & Senzala

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Em 1981 Italo Calvino no ensaio Por que ler os clássicos que acabou por dar título a um dos seus livros dirá: É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

A história de como um clássico como Euclides da Cunha se transfigurou em Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre merece esse ponto de partida das comemorações de seus 90 anos, na sequência das comemorações dos nossos 200 anos.

Como seria doravante um personagem chave de quem Gilberto voltaria a ele em Perfil de Euclides e outros perfis (José Olympio, 1945), para se tornar o grande brasileiro debelador da civilização brasileira.

A civilização brasileira também sofreu uma alquimia em Gilberto e no Casa-Grande & Senzala desde a sua primeira aparição em 1933, meses após da também estreia de Caio Prado Jr. com o seu Evolução política do Brasil. Ensaio de interpretação materialista da história brasileira. A civilização brasileira que vive em seus grandes livros, além de Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem (1937), Ordem e Progresso (1959) e Além do apenas moderno (1973) entre tantas outras, é uma grande saga aberta.

É o mundo que também se resume e não só no aforismo de Casa-Grande & Senzala: os antagonismos em equilíbrio, a marca da nossa cultura política.

A civilização brasileira de Gilberto Freyre consagrada ao longo dos anos, por outro lado, faz parte da grandeza histórica do Brasil, aquele país que tateia seu caminho saltando de tempos em tempos: da Independência à República.

A alquimia da civilização brasileira em Gilberto não é menos grandiosa.

Em Casa-Grande & Senzala, a escravidão é o animal imprevisível e violento que faz Gilberto pensar em nossa trajetória e de como fizemos para que pudéssemos fazer valer o nosso compromisso civilizacional de erradicá-la.


Esse compromisso que esteve presente desde o nosso nascimento será de seus balizadores como Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha entre tantos outros que trabalharam pela Abolição. Para aqueles que abraçaram esse movimento por algumas vezes avistaram a morte pela bala passar por seus olhos. Não foi uma luta de apenas flores e votos como mostrou Angela Alonso e outros estudos daquele momento em nossa história.

Claro está que quando Gilberto foi para a Constituinte de 1946 e a Legislatura que nasceu da redemocratização no pós-Segunda Grande Guerra, fez ele um mandato político de responsabilidade, regido pelos valores da eficiência e de resultados, mas também foi também um mandato político de convicção, capaz de soerguer uma fundação que carrega um dos nomes de suas balizas éticas e morais, um quase político no seu dizer que escolheu a cultura como espaço para exercer os seus poderes, e que só cresceu nessa área, ligando culturalmente a sua cidade ao país e ao mundo, talvez como nenhum dos seus outros filhos.

Por isso em nossa civilização, dadas as condições herdadas da origem – uma  colônia de exploração portuguesa que logo recorreu ao trabalho escravo –, os “caminhos para a civilização”, não nos foi natural e necessitaram da ação pedagógica que nos trouxesse da barbárie às luzes do ideário do liberalismo político do legislador da hoje bicentenária constituinte de 1823, na luminosa análise de Euclides da Cunha em ensaio famoso Da Independência à República, do livro À margem da história que se encontra na bibliografia de Casa-Grande & Senzala.

Desta forma, o perfil de Euclides para Casa-Grande & Senzala é o símbolo da nossa busca permanente da grandeza civilizatória.

Como se vê, a história de 90 anos desse clássico indica a necessária volta a esta fascinante alquimia, que o faremos com o passar do ano.

 

Rio, 15 de maio de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 015 - NEM SÓ DE VOTOS VIVE A DEMOCRACIA


 

A Frente Democrática tem que continuar

Em memória de Rita Lee

Por Vagner Gomes de Souza

 

Há uma hipótese otimista que nossa preferência musical pelo samba em comparação com as movimentações do Tango nos afastou de muitas soluções finais na prática da política. O sambar no pé espanta a tristeza ou se é doente da cabeça ou doente do pé escreveu a sabedoria nacional popular. Assim o repertório do Show “Samba de Maria” em turnê feita pela cantora Maria Rita nos faz melhor refletir sobre os descaminhos dessa transição democrática de novo tipo ao qual se impôs na política brasileira. Em memória a Aldir Blanc e Elis Regina, a força de O Bêbado e a Equilibrista nos ensina que a política da Frente Democrática precisa continuar e até aprofundar.

Os valores da República e da Democracia foram atingidos em um mandato presidencial através da mobilização da sociedade brasileira pelas redes sociais, o que construiu uma hegemonia antissistema que acompanha uma onda política internacional. Olhai para os resultados políticos na Europa ou olhai para os políticos que emergem na América do Norte. Considerem os ventos de quaresma na América Central ou se previnam com as armadilhas que nos rondam na América do Sul. Vivemos tempos assustadores diante da autocracia feita pelas multidões de eleitores que votam em desqualificar e colocar sob ameaça a Democracia.

O uso de metodologias de avaliação da dinâmica do Congresso Nacional estariam defasadas ao se comparar com duas décadas atrás. Não temos mais os atores partidários em exercício pleno na política. O individualismo da sociedade nos faz perceber “Blocos” políticos que articulam interesses individuais de parlamentares. O “afunilamento” da cláusula de desempenho dos Partidos Políticos na redução das legendas tem reforçado os mandatos individuais de parlamentares encastelados no mundo digital.

 Não há debate programático diante de um mosaico em busca da lacração e dos “likes”. Não há uma educação da política democrática e muito mais se aprofunda esses problemas diante da baixa qualidade educacional da sociedade e de muita militância. A formação política é feita como se fosse um “reality show” de seguidos “paredões” eliminatórios de adversários, portanto sempre se tem a impressão de estar num ambiente polarizado. Todavia se alimenta uma dinâmica de “jogo político” aonde os analistas de conjuntura seriam aves raras a cair ao meio do grande “Coliseu da Política”.

Perdemos politicamente na vitória eleitoral apertada no segundo turno de 2022, porém não nos parece que se extraíram as consequências políticas dessa lição. E parece que ou se está em 2003 ou, pior, num 1968 de inovadores maoístas em busca de uma reeducação política da militância. Não falemos de conjuntura, mas alimentemos as narrativas e lugares de fala cercados por uma grande onda de forças políticas retrógradas. Aplaudir dentro de uma “bolha” que possa eleger parlamentares individualizados. Pois o importante não é formar militantes nos partidos de esquerda, mas engajar meus seguidores nas redes sociais. Ainda dizem que seriam de uma Esquerda essa postura fragmentada e muito apropriada para as feiras medievais. São os “Burgos” em forma de “coletivos” e a juventude se diz militante, mas com um olhar para o retrovisor.

Então, não se pode permitir que as diversidades dos atores políticos do Centro sejam cobradas como se fosse uma “máquina registradora” do supermercado da política. A refundação política do Centro político não se faz em uma sequência de dias ou através de Ministérios em busca de votos no Parlamento, mas por uma política de debate programático atuante nesse momento na proposta de PLDO e nos debates do PPA. Esse é o momento de outra vez compreender que nosso liberalismo político sempre esteve no seu lugar. Contudo, ainda nos sentimos num andar por um deserto a procura da Terra Prometida.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 014 - A CONJUNTURA NO PAÍS DOS BANGUELAS


George, a dentadura e o SUS.

 

Marcio Junior[1]

Para minha musa Lavínia, que logo será uma dentista exemplar.

 

No livro Os dentes falsos de George Washington (Companhia das Letras, 2005), o historiador e ex-diretor da Biblioteca de Harvard Robert Darnton conta que, ao visitar a propriedade de George Washington em Mount Vernon, se deparou com as dentaduras de madeira utilizadas pelo primeiro Presidente dos EUA. As decisões tomadas por essa figura importante da história norte-americana e mundial, seus momentos de maior responsabilidade, eram transpassadas pelo impacto da peça de madeira dura contra as gengivas ao mastigar. Além da dor que, convenhamos, era costumeira. O mesmo historiador salienta que, ao ler um volume relativamente grande de cartas que datam do século XVIII, era comum encontrar reclames de dor de dente que, à época, só era sanada pela breve tortura que era a extração. A dor de dente transpassava as gerações e marcava o modo de vida e os costumes.

Com a publicação da Lei 14.572, de maio de 2023 (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14572.htm), e a tardia incorporação de diretrizes para uma Política Nacional de Saúde Bucal à Lei Orgânica da Saúde, advinda do Projeto de Lei de autoria do Senador Humberto Costa, aquilo que foi iniciado como o Programa Brasil Sorridente (na gestão do próprio Humberto no Ministério da Saúde do primeiro governo de Lula) se transformou em uma alteração do arcabouço legal do SUS, que agora tem a saúde bucal nas suas linhas. A principal consequência disso é a exposição dos desafios para o atendimento à população em grande número. Ainda tínhamos, por exemplo, pouco material quantitativo para a compreensão, inclusive epidemiológica, das patologias que os brasileiros e brasileiras apresentam na boca e a relação destas com outras, já que a boca é inseparável do resto do corpo. Teremos mais? Sem eles não é possível desenhar políticas públicas, mas é visível um esforço empreendido no Ministério da Saúde conduzido pela socióloga e ex-presidente da Fiocruz Nísia Trindade, com discussões em formato de Webnários no canal do DATASUS (https://youtube.com/@DATASUSAOVIVO).


Porém, vejamos com lupa o desafio: Gilberto Freyre bem percebeu, ao seu modo e em seu tempo, que em todo médico há um pouco de sociólogo. Como não haver? Condição econômica, trabalho, residência, etc., são matérias de sociologia, e as diversas patologias, inclusive orais, não são passíveis de diagnóstico preciso e intervenção bem-sucedida sem compreender o paciente como um indivíduo que é dotado de um corpo biológico, mas também é partícipe em um grupo social que, em uma leitura durkheimiana, pode estar em funcionamento anormal. Nesse sentido, é razoável tanto pensar em uma sociologia da medicina orofacial e suas especificidades, algo completamente diferente (porém dialógico) da odontologia social, quanto pensar que a ausência de orientação sociológica na base da formação odontológica deixa uma lacuna que, já no seu tempo, Gilberto percebeu não só quanto aos que se ocupam das ciências médicas, mas aos profissionais liberais que tendem a centralizar seu ofício nos indivíduos e só, hoje dito potenciais clientes. Lições de antropologia social seriam, decerto, mais úteis para a compreensão da realidade que se apresenta do que o dito empreendedorismo que está em muitos desenhos curriculares dos cursos de graduação.

Nesse sentido, estarão os profissionais aptos a pensar com competência na saúde bucal como uma questão de saúde pública? Por exemplo: políticas relacionadas à odontopediatria são estratégicas como prevenção à tratamentos de maior custo ao longo da vida. Um acompanhamento bem-feito das crianças acarreta, ao longo do seu crescimento, em ausência de patologias bucais que teriam custo mais elevado. Dito isso: como fica a educação básica? Temos condições de fazer dela espaço de disseminação a partir de políticas de saúde bucal para as crianças nas escolas? E os pais? Eles foram algum dia também educado para cuidar bem da boca? Não deveriam também participar? Sendo ainda mais radical: ainda temos educação básica ou, com ou sem saúde bucal, estamos em apuros? O ponto fundamental é que, depois de resolver esse problema maior obviedade que era a ausência da saúde bucal no arcabouço legal do SUS, a partir de agora que o trabalho se inicia de fato, e há muito o que fazer. 

Quando George Washington usava sua dentadura de madeira para mastigar a comida e ajudou a fundar os EUA, o Brasil ainda não existia; ele não viu o nosso nascimento, pois morreu anos antes. Porém, apesar da nossa idade menor do que a do país que ele foi Pai Fundador, fizemos mais do que eles em termos de assistência à saúde, em todos os níveis de atenção. Podemos fazer muito mais, mas para que tal tarefa seja bem-sucedida havemos de formar gente para dar conta e ter orgulho dela. Somos o país com mais dentistas no planeta, então potencial temos. Tudo que os brasileiros e brasileiras querem é poder sorver, sem dor, com saúde e dignidade, o arroz e feijão que ainda não sabemos se um grande número da população terá no futuro próximo, quiçá no mais distante. Se para muitos ainda mal há recursos para comida, haverá recursos para pagar um consultório ou clínica privada?



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

terça-feira, 9 de maio de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 013 - ENTRE PELÉ E BEETHOVEN NA ANÁLISE DE CONJUNTURA


Escutemos o silêncio ao redor

 

Em memória de Fernando de Carvalho (Ferdo) – Uma presença da PRESENÇA e do Sebo João do Rio

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

 

Várias semanas se passaram desde que o Brasil foi atravessado por um silêncio ensurdecedor que veio do grande marco inicial, dos 100 dias de governo e o ataque de 8 de janeiro a Praça dos Três Poderes. No entanto, este ruído parece ter chegado atenuado a política do Palácio do Planalto, quem sabe se por ocasião de trabalhos de manutenção e restauro dos danos ao patrimônio, tem sido instalado um sistema muito avançado para evitar ruídos análogos que venham do mundo exterior, daquele mundo onde vivem o resto dos brasileiros.

A suspensão que ocorreu de trechos dos Decretos 11.466 e 11.467, ambos de 5 de abril por Projeto de Decreto Legislativo (PDL) da Câmara dos Deputados, apoiados pelo Ministério das Cidades do governo, num elemento que não havia sido essencial pois sequer houve debate de programa, parece ter surtido por hora efeito menor, questão que pode significar duas coisas: ou se têm nervos de aço ou se têm perda auditiva política severa.

A coisa sobre nervos de aço consagrado por Lupicínio Rodrigues e que coube nas histórias heroicas da Frente Democrática de outrora não tem combinado ainda e até aqui com o comportamento usual desse primeiro quadrimestre de governo, e parece que eles não estão entendendo o que ouvem.

Ainda não apareceu a mudança de orientação política que deve seguir um evento desta magnitude, os esboços que observamos até agora advindos da participação precisa do governo na agenda da corte do Reino Unido são insuficientes e mais do que responder ao que aconteceu, respondem aos problemas de gestão política que existem.


Sem dúvida, a mudança anunciada lá indica que vai caminhar na direção certa. No coração do Palácio, a inexperiência e a rigidez prometem ser substituídas pela experiência e a empatia, e a inexperiência e a euforia pela experiência e profissionalismo. Isso permitirá ampliar o espaço para a aplicação de políticas mais coerentes e eficazes, que reforcem as realizadas pelos Ministérios do Planejamento e Orçamento e da Fazenda para que não se concentrem apenas na pauta fiscal, mas em promover o desenvolvimento do país. Mas essas mudanças por si só não podem corrigir o curso errático da atual administração, é necessária uma determinada mudança de orientação para obter resultados.

Para que essa mudança seja possível, é preciso que a palavra presidencial de a consistência da realização, perdure no tempo e seja acompanhada sempre de ações que a tornem real. A palavra governamental não pode ser uma série de impulsos verbais que mudam com muita frequência, que avançam e retrocedem, que tentam conciliar o inconciliável por meio de compensações.

Para isso, é fundamental entender o profundo significado do 8/1, para poder explicar o distanciamento que os brasileiros seguem demonstrando àquele evento bestial e reafirmam seu compromisso na esperança democrática.

Por isso ser necessária a nova orientação que não renuncie às mudanças, mas que respeite uma forma de realizá-las com o apoio da república. Além disso, uma governança de maior qualidade é essencial.

A alma da rejeição ao 8/1 é de uma alma moderada, que quer mudanças sem brigas nem imprudências, que quer acordos e não cara feia, que quer viver em paz e que as ruas não sejam campos de batalha de fanáticos inflamados por seus sonhos.

Isso ficou demonstrado pela mudança de clima com o qual vivemos os últimos feriados carnavalescos e o do 1° de maio e pela rapidez com que se descompactou a tensão após 8/1. Parece que começou a haver uma esperança de retorno à sanidade.

As pessoas agora estão esperando, sabem que a situação econômica não é boa e que vai demorar em se recuperar, e o que não podem esperar é que as reformas propostas não tenham efeitos imoderados, mas melhorem de fato suas vidas.

O fato de os cidadãos agirem com paciência republicana e democrática não significa que estejam resignados a uma gestão medíocre de discurso altissonante. Ela não desanima, pois sabe que seu voto é capaz de mudar o que já parecia um destino. É tempo de prestar atenção aos cidadãos que não marcham, não gritam, não destroem, mas votam serenamente. Para mudar de rumo, é fundamental tomar as decisões anunciadas e evitar as visões contraditórias que se produzem dentro do governo, que mancham a sua figura.

O país não conseguirá enfrentar com sucesso os desafios que se avizinham se quem o dirige não criar condição para retomar o crescimento pactuando uma boa reforma tributária sustentável, entre outras mudanças.


Nem o poderá fazer se não deixar de dar sinais ideológicos como o faz aos mais diversos níveis, desde os usos diplomáticos, a visão míope do papel dos acordos comerciais que são essenciais para uma economia como a nossas falsas visões sobre a trajetória da desigualdade nas últimas décadas e muitos outros sinais típicos do bestiário maximalista.

Um novo sujeito reformador com outras formas e outras tarefas começam a ocupar o grande vazio de um reformismo progressista pálido. A Frente Democrática vem se estabelecendo com sucesso e outras expressões políticas também surgirão oferecendo novas alternativas para o futuro.

Surgem posições mais maduras e liberais no centro e na direita que são consideradas diferentes da direita rígida e imóvel. As mudanças também ocorrerão na esquerda e o atual bestiário maximalista provavelmente começará a retroceder. Se assim for, pode-se retomar uma ação política mais favorável a acordos amplos sobre futuras reformas e uma governança mais eficiente, voltada para a solução de problemas prementes.

Oxalá isso se concretize antes que o acúmulo de desenvolvimento e democracia construído nas últimas décadas seja novamente posto à prova como se viu no 8/1, e que pouco a pouco possamos ver novamente números decrescentes de desigualdade e pobreza e crescente de progresso e crescimento rumo ao estado de bem-estar, mas para isso não se pode fazer ouvidos moucos e escutemos o silêncio ao redor.

 

7 de maio de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

SÉRIE ESTUDOS - 50 ANOS DA NOVELA O BEM AMADO (REDE GLOBO)


 

O Bem-amado e o museu de grandes novidades

          Dedicado ao 8 de maio, dia da Vitória dos Aliados contra o nazifascismo

Por Pablo Spinelli

Entre o século passado e o atual foi feito um esforço acadêmico e político em dissolver qualquer possibilidade de síntese (ou “grande narrativa”) em defesa dos interesses atomizados. O que começou na academia sob influência do pensamento de 1968 vicejou pela classe média, pela cultura e chegou à massa popular e às elites econômicas. O bug do milênio (a “loira do banheiro” e a “baleia azul” de 1999) foi o desemprego estrutural, o aumento do neopentecostalismo com um “cristianismo de resultados”, o poder associativo dos anos 1970-80 como associação de moradores e grêmios estudantis diluindo-se nos “eus soberanos”. Não há, como escreveu o historiador Ciro Cardoso a “História” com maiúscula, mas as “histórias de”. O fragmento, a valorização da diferença, o divisionismo, a perspectiva de controle de fatias do mercado pela quantidade de melanina ou pelo uso do pronome, programas que demonizavam a política, o discurso da meritocracia e do empreendedorismo criaram, numa satânica combinação,  uma montanha que pariu o capitão rato.

Caso tenha chegado até aqui, bravx leitorx, o tema são os 50 anos da estreia da novela “O Bem-Amado” na Rede Globo no horário das 22 horas, o que seria o equivalente à 1h da manhã nos padrões atuais. Uma novela que só poderia ir ao ar a partir dessa hora para não sofrer com a censura mais do que já era previsto. O seu autor, o baiano Dias Gomes, readapta sua peça teatral para o meio da comunicação de massa em 1973. Um comunista trabalhando na maior emissora de comunicação do país. O Bem-Amado foi a primeira novela em cores do país. E foi uma das mais perfeitas sínteses do Brasil no século passado.


O prefeito Odorico Paraguaçu (interpretação imortal de Paulo Gracindo) da fictícia cidade de Sucupira estava obcecado em fazer algo vistoso em seu mandato. A sua iniciativa empreendora foi criar um cemitério municipal. Porém, por motivos da Fortuna, ninguém na cidade morria. Dias Gomes, em pleno Governo da Ditadura Militar, usou e abusou do termo que a literatura de Jorge Amado e a sociologia de Vítor Nunes Leal consagraram sobre as práticas políticas do mundo agrário: o coronel. Ao mesmo tempo, estreando como ator na Globo, Lima Duarte viveu de forma tão imortal o pistoleiro arrependido Zeca Diabo, cuja alcunha era como a do cangaceiro Lampião: capitão. Pronto. Coronel e Capitão eram usados em associação com autoritarismo, corrupção, imoralidade, lascívia, assassinato. Demorou, mas a censura percebeu e mandou parar com os termos.

A trama apresenta o famoso trio das “Irmãs Cajazeiras” – mulheres de profunda religiosidade e defensoras da moralidade e da virtude que não conseguiam sucumbir ao licor de jenipapo e, sem saber, faziam um vanguardista poliamor com o Prefeito viúvo, a ponto de uma delas engravidar do coronel e a responsabilidade recair em um gago com orientação sexual fluída 50 anos antes de Fred Nicácio do BBB 23, o subserviente Dirceu Borboleta (Emiliano Queiróz, magistral), que será responsável por um crime passional similar ao que apareceu em Gabriela, de Jorge Amado. Era a crítica ao patriarcado feito por um homem.

Há que se destacar o casal vivido por Milton Gonçalves e Ruth de Souza, pioneiros da presença negra na teledramaturgia nacional. O Zelão das Asas de Milton era o homem simples, pescador, que tinha que voar para pagar uma promessa – o voo era a metáfora para a liberdade, para a democracia – e a Chiquinha do Parto representava a sabedoria feminina tradicional, quem acudia o depressivo e revoltado Dr. Juarez Leão, (Jardel Filho) o único que afrontava cinicamente o poder.

Não menos importante é a oposição. O dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz) era o vereador da oposição a Odorico. Bom no discurso, na defesa da ética, seu perfil era apoiado pelo idealista intelectual periférico Neca Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), jornalista responsável pelo jornal da cidade. A família que se opunha aos Paraguaçu-Cajazeiras, os Medrados, também eram da oposição ao Prefeito. Destaca-se a mulher da casa que fazia o papel de delegada no lugar do marido, Donana (Zilka Salaberry). Eis a questão: no que há de diverso entre patriarcado e matriarcado?


Dentre os vocabulários únicos criados para o Odorico, a novela apresentava a exploração da mão de obra de pescadores num sistema de cooperativa sem CLT organizado pelo vil Jairo Portela (Gracindo Jr.). Além do coronelismo, esse ponto, pouco explorado pelos historiadores da cultura do período é importante ser lembrado em tempos de uberização e sem revogação da reforma trabalhista. Tirando os maneirismos e gírias da época, quais as grandes diferenças entre os jovens Telma (Sandra Bréa) e Cecéu (João Paulo Adour) e os de hoje? A Igreja, na figura do Vigário (que não tem nome), tenta equilibrar os antagonismos da cidade. Profeticamente, Dias Gomes coloca um triste vaticínio para a massa popular: todos virarem o Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar) que, quando sóbrio gritava Viva Odorico! e, quando embriagado, Abaixo Odorico!

O Bem-amado é uma referência da cultura nacional-popular que atua como o anjo da história. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de individualismo pautado nos interesses. Parece revolução, mas é só neoliberalismo.