segunda-feira, 5 de junho de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 016 - A GERINGONÇA DE GUIZOT


 Pintura de Victor Meirelles

A geringonça abrasileirada

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

No Museu Victor Meirelles, em Florianópolis existe uma de suas pinturas muito impressionante que leva o nome A jangada da Medusa. É sem dúvida um estudo da obra-prima inspirada em um naufrágio que comoveu a França no início da Restauração Francesa, que Pierre Rosanvallon apresentou em O momento Guizot.

Foi pintada por Victor Meirelles entre 1857 e 1858 e deriva da tela de 1818 e 1819 de Théodore Géricault, pintor fundamental do romantismo francês.

Em 2 de julho de 1816, a fragata francesa Medusa encalhou e como o número de botes salva-vidas era bem menor que a tripulação (como se daria anos depois com o Titanic), os que não conseguiram ocupar os botes construíram uma grande jangada para se salvar. Após 13 dias de medo e miséria, dos 147 que ocupavam a jangada, apenas 13 sobreviveram, a grande maioria pereceu por descaso e irresponsabilidade.

A aprovação do Projeto de Lei de Conversão Nº 12 na passagem do dia 31 de maio para o 1º de junho, onde foi estabelecida a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, não tem, evidentemente, o drama e a irreversibilidade desse trágico naufrágio.

Muitos democratas não gostaram do resultado porque o considerou distante de certo equilíbrio de forças que teria facilitado o diálogo e o debate visando fortalecer e conformar os princípios pactuados como espinha dorsal da nova administração, de modo a obter uma lei capaz de ser ao mesmo tempo democrática, social, moderna e protetora dos direitos e deveres da república.

Seria um erro, porém, pensar que o resultado daquela aprovação, realizada de forma legítima, coloca o Brasil no quadro de Victor Meirelles, em situação de extremo perigo para a convivência democrática.

Felizmente, o tom tanto do governo da Frente Democrática quanto dos chefes dos partidos do Centrão responsáveis por essa aprovação em suas intervenções após o resultado não teve um caráter apocalíptico e disruptivo quando se referiam ao futuro.

O esforço para continuarmos no esforço para chegar a um acordo razoável sobre a questão governamental e não deve parar por aí e ao projetarmos o que aconteceu devemos vê-lo como uma oportunidade da formulação abrasileirada da "geringonça" que concedeu a Chico Buarque o Prêmio Camões.



Isso requer uma disposição positiva e muito determinada tanto dos envolvidos diretamente que tiveram forte apoio quanto dos que tiveram uma participação indireta, que deve ser expressa na vontade de produzir acordos.

Isso implica a necessidade de os partidos governantes modificarem realisticamente suas aspirações prioritárias na atual correlação de forças. Para isso, o governo deve abandonar sua ambivalência e ambiguidades e jogar a cartada social-democrata e gradual com coragem e, sobretudo com convicção, mesmo quando isso significar fortes tensões com os setores mais obtusos de seus partidários.

A direita tradicional, cujo eleitorado marcou sua posição após a derrota da sua vertigem da tentação radical, embora soe contraintuitivo, deve confirmar uma identidade moderada e não apostar na radicalização, praticando assim uma racionalidade que tira lições do que aconteceram noutras partes do mundo. É claro que o ambiente político negativo que o país viveu acelerou todos os processos em curso.

O desânimo e desconfiança com a política se refletiu como, também, felizmente, afastou os organizadores da antipolítica. É bem verdade também não ter havido tempo para quem, de posições reformistas progressistas, levantasse a necessidade de reformular naquele espaço uma forte vontade de existir em dialogo, sem o qual não tem como dar bons frutos.

Esta última permite uma dupla interpretação, a de quem pensa que é um novo início da centro-esquerda e outra, ainda mais importante, que faz parte do corajoso início de um longo caminho junto com as novas expressões políticas do Centrão para construir esse espaço de reforma que o Brasil tanto precisa.

Naturalmente, em certa esquerda, florescerá o eterno pensamento de que quanto pior as coisas, mais próximo chegará o momento mágico da revolução, o fogo purificador que nos levará a nos submetermos aos seus sonhos, que até hoje, historicamente, sempre terminaram em insuportáveis pesadelos.

Parece que aqueles de nós que passamos anos dizendo, contra todas as probabilidades, que o prudente avanço com o qual construímos a democracia depois da ditadura, com todos os seus limites, não só era a trajetória acertada e é o melhor caminho a seguir. Os rumos em busca ao desejo da perfeição democrática, embora nunca perfeita, dá-se por passos mais sólidos que longos.

Como esse caminho foi perdido 4 anos atrás, há poucas notícias boas e muitas notícias ruins. No final, depois de empurrar tanto o país para a direita, acabou por aparecer uma extrema direita obscura de semblante internacional. Entretanto, isso criou um descontentamento generalizado com os rumos do país, com uma sinalização Duas-Caras, onde ao lado dos que supostamente constroem operam os que destroem que abarrotam o seu próprio governo de reivindicações insatisfatórias e caminhos de desenvolvimento marcados por uma confusa doutrina de quem abunda em emoções e slogans e falta de pensamento.

A mudança de rumo de 2023 não significa abrir mão do horizonte de uma sociedade mais justa, significa fazê-lo com base em amplos acordos. Mas acima de tudo, tendo como prioridade as necessidades da geringonça abrasileirada advinda da Frente Democrática.

Em primeiro lugar, recuperar o que perdemos a segurança dos cidadãos, a paz social, uma convivência ordeira, diga-se de passagem, democrática e baseada em direitos e deveres. Todo o esforço deve ser dedicado a isso, não pode haver Democracia se não houver Estado, se não houver regras e se não for aplicada a força quando for necessário para fazê-las cumprir, no norte, centro e sul do país.

Educação e saúde de qualidade e provisão, trabalho e pensões dignas. A democracia para viver e se desenvolver exige convicção em seus princípios, mas também resultados concretos e estes precisam estar funcionando. Não há outra maneira de reconstruir a confiança. Chega de dar espaços prioritários a besteiras que só respondem a devaneios tribais. Ou nossa democracia é capaz de ser justa e eficiente ou corre o risco de se desgastar, esvaziar-se e definhar.

 

4 de junho de 2023


[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.




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