sexta-feira, 5 de maio de 2023

SÉRIE ESTUDOS - 50 ANOS DA NOVELA O BEM AMADO (REDE GLOBO)


 

O Bem-amado e o museu de grandes novidades

          Dedicado ao 8 de maio, dia da Vitória dos Aliados contra o nazifascismo

Por Pablo Spinelli

Entre o século passado e o atual foi feito um esforço acadêmico e político em dissolver qualquer possibilidade de síntese (ou “grande narrativa”) em defesa dos interesses atomizados. O que começou na academia sob influência do pensamento de 1968 vicejou pela classe média, pela cultura e chegou à massa popular e às elites econômicas. O bug do milênio (a “loira do banheiro” e a “baleia azul” de 1999) foi o desemprego estrutural, o aumento do neopentecostalismo com um “cristianismo de resultados”, o poder associativo dos anos 1970-80 como associação de moradores e grêmios estudantis diluindo-se nos “eus soberanos”. Não há, como escreveu o historiador Ciro Cardoso a “História” com maiúscula, mas as “histórias de”. O fragmento, a valorização da diferença, o divisionismo, a perspectiva de controle de fatias do mercado pela quantidade de melanina ou pelo uso do pronome, programas que demonizavam a política, o discurso da meritocracia e do empreendedorismo criaram, numa satânica combinação,  uma montanha que pariu o capitão rato.

Caso tenha chegado até aqui, bravx leitorx, o tema são os 50 anos da estreia da novela “O Bem-Amado” na Rede Globo no horário das 22 horas, o que seria o equivalente à 1h da manhã nos padrões atuais. Uma novela que só poderia ir ao ar a partir dessa hora para não sofrer com a censura mais do que já era previsto. O seu autor, o baiano Dias Gomes, readapta sua peça teatral para o meio da comunicação de massa em 1973. Um comunista trabalhando na maior emissora de comunicação do país. O Bem-Amado foi a primeira novela em cores do país. E foi uma das mais perfeitas sínteses do Brasil no século passado.


O prefeito Odorico Paraguaçu (interpretação imortal de Paulo Gracindo) da fictícia cidade de Sucupira estava obcecado em fazer algo vistoso em seu mandato. A sua iniciativa empreendora foi criar um cemitério municipal. Porém, por motivos da Fortuna, ninguém na cidade morria. Dias Gomes, em pleno Governo da Ditadura Militar, usou e abusou do termo que a literatura de Jorge Amado e a sociologia de Vítor Nunes Leal consagraram sobre as práticas políticas do mundo agrário: o coronel. Ao mesmo tempo, estreando como ator na Globo, Lima Duarte viveu de forma tão imortal o pistoleiro arrependido Zeca Diabo, cuja alcunha era como a do cangaceiro Lampião: capitão. Pronto. Coronel e Capitão eram usados em associação com autoritarismo, corrupção, imoralidade, lascívia, assassinato. Demorou, mas a censura percebeu e mandou parar com os termos.

A trama apresenta o famoso trio das “Irmãs Cajazeiras” – mulheres de profunda religiosidade e defensoras da moralidade e da virtude que não conseguiam sucumbir ao licor de jenipapo e, sem saber, faziam um vanguardista poliamor com o Prefeito viúvo, a ponto de uma delas engravidar do coronel e a responsabilidade recair em um gago com orientação sexual fluída 50 anos antes de Fred Nicácio do BBB 23, o subserviente Dirceu Borboleta (Emiliano Queiróz, magistral), que será responsável por um crime passional similar ao que apareceu em Gabriela, de Jorge Amado. Era a crítica ao patriarcado feito por um homem.

Há que se destacar o casal vivido por Milton Gonçalves e Ruth de Souza, pioneiros da presença negra na teledramaturgia nacional. O Zelão das Asas de Milton era o homem simples, pescador, que tinha que voar para pagar uma promessa – o voo era a metáfora para a liberdade, para a democracia – e a Chiquinha do Parto representava a sabedoria feminina tradicional, quem acudia o depressivo e revoltado Dr. Juarez Leão, (Jardel Filho) o único que afrontava cinicamente o poder.

Não menos importante é a oposição. O dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz) era o vereador da oposição a Odorico. Bom no discurso, na defesa da ética, seu perfil era apoiado pelo idealista intelectual periférico Neca Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), jornalista responsável pelo jornal da cidade. A família que se opunha aos Paraguaçu-Cajazeiras, os Medrados, também eram da oposição ao Prefeito. Destaca-se a mulher da casa que fazia o papel de delegada no lugar do marido, Donana (Zilka Salaberry). Eis a questão: no que há de diverso entre patriarcado e matriarcado?


Dentre os vocabulários únicos criados para o Odorico, a novela apresentava a exploração da mão de obra de pescadores num sistema de cooperativa sem CLT organizado pelo vil Jairo Portela (Gracindo Jr.). Além do coronelismo, esse ponto, pouco explorado pelos historiadores da cultura do período é importante ser lembrado em tempos de uberização e sem revogação da reforma trabalhista. Tirando os maneirismos e gírias da época, quais as grandes diferenças entre os jovens Telma (Sandra Bréa) e Cecéu (João Paulo Adour) e os de hoje? A Igreja, na figura do Vigário (que não tem nome), tenta equilibrar os antagonismos da cidade. Profeticamente, Dias Gomes coloca um triste vaticínio para a massa popular: todos virarem o Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar) que, quando sóbrio gritava Viva Odorico! e, quando embriagado, Abaixo Odorico!

O Bem-amado é uma referência da cultura nacional-popular que atua como o anjo da história. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de individualismo pautado nos interesses. Parece revolução, mas é só neoliberalismo.



Nenhum comentário: