sexta-feira, 12 de maio de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 014 - A CONJUNTURA NO PAÍS DOS BANGUELAS


George, a dentadura e o SUS.

 

Marcio Junior[1]

Para minha musa Lavínia, que logo será uma dentista exemplar.

 

No livro Os dentes falsos de George Washington (Companhia das Letras, 2005), o historiador e ex-diretor da Biblioteca de Harvard Robert Darnton conta que, ao visitar a propriedade de George Washington em Mount Vernon, se deparou com as dentaduras de madeira utilizadas pelo primeiro Presidente dos EUA. As decisões tomadas por essa figura importante da história norte-americana e mundial, seus momentos de maior responsabilidade, eram transpassadas pelo impacto da peça de madeira dura contra as gengivas ao mastigar. Além da dor que, convenhamos, era costumeira. O mesmo historiador salienta que, ao ler um volume relativamente grande de cartas que datam do século XVIII, era comum encontrar reclames de dor de dente que, à época, só era sanada pela breve tortura que era a extração. A dor de dente transpassava as gerações e marcava o modo de vida e os costumes.

Com a publicação da Lei 14.572, de maio de 2023 (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14572.htm), e a tardia incorporação de diretrizes para uma Política Nacional de Saúde Bucal à Lei Orgânica da Saúde, advinda do Projeto de Lei de autoria do Senador Humberto Costa, aquilo que foi iniciado como o Programa Brasil Sorridente (na gestão do próprio Humberto no Ministério da Saúde do primeiro governo de Lula) se transformou em uma alteração do arcabouço legal do SUS, que agora tem a saúde bucal nas suas linhas. A principal consequência disso é a exposição dos desafios para o atendimento à população em grande número. Ainda tínhamos, por exemplo, pouco material quantitativo para a compreensão, inclusive epidemiológica, das patologias que os brasileiros e brasileiras apresentam na boca e a relação destas com outras, já que a boca é inseparável do resto do corpo. Teremos mais? Sem eles não é possível desenhar políticas públicas, mas é visível um esforço empreendido no Ministério da Saúde conduzido pela socióloga e ex-presidente da Fiocruz Nísia Trindade, com discussões em formato de Webnários no canal do DATASUS (https://youtube.com/@DATASUSAOVIVO).


Porém, vejamos com lupa o desafio: Gilberto Freyre bem percebeu, ao seu modo e em seu tempo, que em todo médico há um pouco de sociólogo. Como não haver? Condição econômica, trabalho, residência, etc., são matérias de sociologia, e as diversas patologias, inclusive orais, não são passíveis de diagnóstico preciso e intervenção bem-sucedida sem compreender o paciente como um indivíduo que é dotado de um corpo biológico, mas também é partícipe em um grupo social que, em uma leitura durkheimiana, pode estar em funcionamento anormal. Nesse sentido, é razoável tanto pensar em uma sociologia da medicina orofacial e suas especificidades, algo completamente diferente (porém dialógico) da odontologia social, quanto pensar que a ausência de orientação sociológica na base da formação odontológica deixa uma lacuna que, já no seu tempo, Gilberto percebeu não só quanto aos que se ocupam das ciências médicas, mas aos profissionais liberais que tendem a centralizar seu ofício nos indivíduos e só, hoje dito potenciais clientes. Lições de antropologia social seriam, decerto, mais úteis para a compreensão da realidade que se apresenta do que o dito empreendedorismo que está em muitos desenhos curriculares dos cursos de graduação.

Nesse sentido, estarão os profissionais aptos a pensar com competência na saúde bucal como uma questão de saúde pública? Por exemplo: políticas relacionadas à odontopediatria são estratégicas como prevenção à tratamentos de maior custo ao longo da vida. Um acompanhamento bem-feito das crianças acarreta, ao longo do seu crescimento, em ausência de patologias bucais que teriam custo mais elevado. Dito isso: como fica a educação básica? Temos condições de fazer dela espaço de disseminação a partir de políticas de saúde bucal para as crianças nas escolas? E os pais? Eles foram algum dia também educado para cuidar bem da boca? Não deveriam também participar? Sendo ainda mais radical: ainda temos educação básica ou, com ou sem saúde bucal, estamos em apuros? O ponto fundamental é que, depois de resolver esse problema maior obviedade que era a ausência da saúde bucal no arcabouço legal do SUS, a partir de agora que o trabalho se inicia de fato, e há muito o que fazer. 

Quando George Washington usava sua dentadura de madeira para mastigar a comida e ajudou a fundar os EUA, o Brasil ainda não existia; ele não viu o nosso nascimento, pois morreu anos antes. Porém, apesar da nossa idade menor do que a do país que ele foi Pai Fundador, fizemos mais do que eles em termos de assistência à saúde, em todos os níveis de atenção. Podemos fazer muito mais, mas para que tal tarefa seja bem-sucedida havemos de formar gente para dar conta e ter orgulho dela. Somos o país com mais dentistas no planeta, então potencial temos. Tudo que os brasileiros e brasileiras querem é poder sorver, sem dor, com saúde e dignidade, o arroz e feijão que ainda não sabemos se um grande número da população terá no futuro próximo, quiçá no mais distante. Se para muitos ainda mal há recursos para comida, haverá recursos para pagar um consultório ou clínica privada?



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Adorei ! Muito interessante e esclarecedor. Parabéns 👏 👏 👏 👏

Raimundo disse...

Gostei muito do texto. A forma esclarecedora, que relata os fios que unem as ações individuais que comporão a saúde integral dos brasileiros ao longo da vida, é pura simplicidade e síntese e tornou um texto uma leitura deliciosa.