quinta-feira, 2 de maio de 2024

SÉRIE ESTUDOS - AGUARDANDO O PESSIMISMO DA RAZÃO

O longuíssimo caminho para o bem-estar social

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O longo caminho para a utopia: uma história econômica do século XX, do norte-americano James Bradford DeLong. Tradução de Diego Franco Gonçalves; Revisão técnica de Marco Antonio Rocha. São Paulo: Crítica, 2024.

 

É difícil negar que as humanidades progrediram, mas assumir o progresso como fio condutor histórico pode nos levar a superlativos em face aos tempos atuais. O livro O longo caminho para a utopia: uma história econômica do século XX, de James Bradford DeLong, nos coloca mais perto da utopia do que realmente estamos. A sua tese principal é que os cento e quarenta anos que compõem o período da Segunda Revolução Industrial em 1870 a 2010 formam uma unidade histórica, um “grande século XX”. O que o torna característico é que a sua economia histórica, ilustrará uma derrota em curso, pois essa economia histórica, é o relato do progresso econômico e não histórico que levou as humanidades, pela primeira vez, a poder dar fim à aguda pobreza material que sofre desde muito longe. Para DeLong, foi o surgimento de três instituições as responsáveis ​​por tal feito: a globalização, os laboratórios de pesquisa industrial e as corporações modernas. Esta combinação gerou a maior força criadora de riqueza e possibilita proporcionar a todas as humanidades essa chance de um mínimo de seguridade.

A ideia de que a enorme capacidade econômica instalada de produzir riqueza não está na mesma proporção do bem-estar das humanidades é uma ideia que se impõe à luz da enorme e crescente desigualdade e pobreza no mundo. DeLong conhece bem esta verdade. Citando Keynes, DeLong lembra-nos que, em 1914, às classes média e alta de todo o mundo “ofereciam-se vidas, a baixo custo e sem maiores problemas, facilidades, confortos e serviços que ultrapassavam os disponíveis aos monarcas mais poderosos”. poderosos de todo o mundo”; e que em 2010 nos EUA imaginário uma “família típica já não enfrentava o problema mais urgente de adquirir comida, abrigo e roupa suficientes para o próximo ano ou para a próxima semana”.

Talvez essa família imaginaria típica a que DeLong se refere talvez faça sentido por lá. Mas, se ao menos esta família típica imaginaria fosse globalmente representativa; se fosse verdade que esta família típica imaginária dos nossos dias pudesse orgulhar-se de viver melhor do que os monarcas mais poderosos de qualquer lugar, então ousaríamos dizer que já estaríamos na própria utopia. DeLong baseia o seu otimismo nos números oficiais do Banco Mundial sobre a pobreza extrema: em 2010 sem qualquer sombra pandêmica, menos de 9% da população mundial vivia com menos de 2 dólares por dia. Assim, dois dólares é o critério que DeLong aceita para estabelecer o progresso econômico alcançado. Mas se olharmos para os padrões nacionais e/ou regionais de medição da pobreza, o quadro é geralmente mais sombrio. Mesmo de acordo com medidas internacionais, quando passamos da pobreza extrema (menos de 9% em 2010) para outros tipos de pobreza, descobrimos, por exemplo, que 32% da população mundial é identificada como multidimensionalmente pobre.

Não é nossa intenção, contudo, negar todo o progresso que as humanidades fizeram. Contudo, na capacidade produtiva também deve ser considerado, sobretudo, a intensificação do trabalho e o abuso dos recursos naturais mundiais. Nada é dito sobre essas questões.

DeLong, no seu esforço para destacar os feitos produtivos do seu século XX, também nos oferece uma medida dessa capacidade produtiva para a riqueza. Segundo as suas estimativas, entre 1870 e 1914, as melhorias tecnológicas e produtivas cresceram a uma taxa de 2 por cento ao ano, uma taxa mais de 4 vezes superior à experimentada pelas humanidades durante todo o século anterior. O alcance desta gigantesca capacidade produtiva é que nos oferece a oportunidade de criar o suficiente para se projetar um pouco mais do que um mínimo de seguridade a toda a população mundial, como provado por todas as médias de riqueza e rendimento. Mas essas são apenas médias. Portanto, embora com certas nuances, é possível concordar com a ideia de DeLong de que parte dos problemas das humanidades já foi resolvido: há riqueza material abundante. Mas o verdadeiro progresso não consiste na produtividade e nem na abundância em si, mas na possibilidade real de acessá-la. Como diz DeLong, com razão, a prosperidade material não está distribuída e o que está se encontra de forma desigual por todo o planeta, numa extensão grotesca e até criminosa.

Para DeLong, uma das razões pelas quais a humanidade não alcança a utopia é que esta é quase inteiramente mediada pela economia de mercado. A produtividade e a abundância são o resultado de uma incrível coordenação e cooperação de milhares de milhões de pessoas que participam na produção de riqueza, mediada pela economia de mercado. Mas, embora a produção de riqueza seja cada vez mais social, o mercado não recompensa de acordo com a seguridade para cada pessoa, mas sim de acordo com os títulos de propriedade que possui sobre esse trabalho social. DeLong não o diz, mas na sociedade contemporânea não existe o, “isto é, meu porque eu o fiz”, mas tão só, “isto é, meu porque tenho o título da propriedade”.

Na sua economia histórica, DeLong envolve-nos num diálogo sobre as virtudes e os limites desta economia de mercado. Através da conversa que DeLong estabelece entre os austríacos Friedrich von Hayek e Karl Polanyi, ele procura representar as humanidades em busca da utopia. Assim, DeLong entende o século XX como uma disputa política entre aqueles, por um lado, que aderem ao lema “o mercado dá, e o mercado tira”, e por outro, aqueles que sustentam que “o mercado é feito pelas humanidades; e não as humanidades para o mercado.” Portanto, a história da economia política que DeLong nos oferece do seu século XX é uma economia histórica focada nas mudanças políticas que definiram os padrões de crescimento da própria economia. Em particular, é uma economia histórica nucleada no papel das elites dominantes dos países ricos do hemisfério norte, lideradas pelas elites do seu país.

Quando se ignora os inúmeros lados errados das coisas históricas talvez isso facilite um olhar otimista. Daí ser o mínimo que possamos recordar a DeLong, pois estaríamos na sua economia histórica no melhor de todos os mundos possíveis. Estamos? Tenho a impressão de que a pior resposta chegará a ele em novembro próximo.

 

22 de abril de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

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