quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A POLÍTICA FORA DA QUARENTENA - NÚMERO 25


 Senadores Getúlio Vargas  e Luiz Carlos Prestes  num comício (1947)

Olhai o “chuchu” no campo

Por Vagner Gomes de Souza

 

A história da reconciliação está muito próxima aos princípios do cristianismo anunciados no “Sermão da Montanha” nos quais muitos atribuem o título “Olhai os Lírios do Campo”. Nos anos 30, Érico Veríssimo escreveu um livro em que Olhai os Lírios do Campo atribui ao personagem Eugênio a tensão entre a ambição e a consciência de uma aliança social. A ascensão das camadas sociais deveriam ter “atalhos” numa década posterior a crise de 1929 ou bem aventurados seriam os pobres na Era Vargas.

O Estado Novo (1930 – 1945) foi um período de construção de uma nacionalidade pela via de um programa que se distanciou da possibilidade democrática após 1937 com apoio da grande oficialidade das FFAA (Forças Armadas). Esse eixo programático constitui está no subconsciente da sociedade brasileira na sua formação como Nação. Getúlio Vargas foi, e continua sendo, um personagem controverso em nossa História pelas nuances das alianças de cunho político e social que se fez na garantia, para mencionar um famoso exemplo, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) que certa vez foi confundida metaforicamente como o Ato Institucional 5 da Ditadura Militar (1964-1985).

A volta de Getúlio Vargas a presidência da República na vitória eleitoral de 1950 poderia ser atribuída a uma busca de reconciliação nacional que analistas políticos se deixam levar pelo desfecho da tragédia do suicídio. Todavia o programa de um grande salto na economia pela via da industrialização é uma lição quanto ao debate programático nas campanhas eleitorais. Nesse momento as contradições entre as classes dominantes e subalternas foram eclipsadas pelo nacional e pelo popular. A democracia foi deixar de ser uma figuração como programa justamente pelas mãos dos comunistas do PCB, mas somente após 1958.

Isso exposto nos demonstra o quanto as linhas de nossa história política não se fez por linhas retas ou curvas. Nossa vida política está com inúmeros exemplos de ir e vir numa constante ziguezaguear o qual demonstra que ser prisioneiro de narrativas fará de muitos ativistas/militantes mais um           “negacionista” da natureza da Frente Democrática. A ideia de Frente não se aplica aos limites de uma disputa eleitoral, mas se constitui a partir da avaliação de uma conjuntura política. Há diversas naturezas frentistas (Única, Popular, Ampla, de Escquerda, Conservadora, Democrática, etc.) que ganham força na sociedade pela sua base programática.

Uma vez que a face política de uma Frente nasce de um debate de um programa político, as possíveis confusões de nivelações políticas seriam superadas até nas negociações dos atores políticos. Por exemplo, em Política, um diálogo amplo com inúmeros atores políticos não significa ser a realização de uma “Frente Ampla”. O debate “frentista” sem conteúdo programático é apenas uma “sopa de letrinhas” que recai na americanização das disputas eleitorais com cálculos de ganhos ou perdas de votos. Programa e sociedade em segundo plano o que coloca também a Democracia em perigo por mais que se derrote só eleitoralmente um candidato claramente autoritário nas urnas. Uma vitória de uma Frente Política precisa ser uma nova fase no processo político de um país.

Portanto, todos os nomes do campo democrático seriam bem vindos numa Frente Democrática com vistas as Eleições Presidenciais/Parlamentares e Regionais de 2022 no Brasil. A ideia de “Campo Democrático” necessita ter uma fundamentação programática a partir do que se inscreve na Constituição de 1988, o que não implica em simplesmente defender atos revogatórios de Emendas Constitucionais já debatidas e aprovadas. Democratizar não se faz sem exposições de justificativas políticas muito bem fundamentadas. Essa seria o melhor entendimento para que o “Campo” pudesse ter um pouco de “Chuchu”. A “invenção” na política brasileira é uma qualidade que alguns atores políticos souberam conduzir, mas sempre com uma linha programática. Caso contrário a política brasileira continuará na perigosa trilha da negação da política (diálogo/conciliação/reconciliação) que é o antiprograma desse Governo sem gestão.


sábado, 13 de novembro de 2021

POLÊMICA - NICARÁGUA NA COVA DOS LEÕES

O Sorriso do Jaguar

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Em julho de 1986 Salman Rushdie, atendendo a um convite, viaja para Manágua (capital da Nicarágua). Várias semanas depois da viagem, ele ficou tão afetado pelo que vira que não conseguia parar de pensar e de falar sobre a Nicarágua. Como literato a forma de lidar com essa sensação era escrever. E assim nasceu O Sorriso do Jaguar: uma Viagem pela Nicarágua (Editora Guanabara) publicado em 1987.

Para Salman, os melhores momentos ocorreram ao ser entrevistado por Bianca Jagger, uma nicaraguense, para a revista “Interview”. Toda vez que ele se referia a um nicaraguense conhecido, de esquerda ou de direita, Bianca comentava, vagamente, em tom neutro: “Ah, sim, a gente namorou, faz tempo”. Essa era a verdade a respeito da Nicarágua. Era um país pequeno, com uma classe dominante minúscula. Os combatentes, dos dois lados, tinham todos frequentado a escola juntos, eram membros daquela classe dominante e um conhecia a família do outro, ou até, quanto aos Chamorro, vinham da mesma família; e todos tinham namorado uns com os outros. A versão de Bianca dos eventos, não escrita, seria mais interessante (e, com certeza, mais picante) do que a dele.

Por ocasião do lançamento do livro nos Estados Unidos da América, um apresentador de um programa de entrevistas, a quem desagradara sua oposição ao bloqueio contra a Nicarágua e ao apoio de Reagan aos “contras”, que tentavam derrubar o governo sandinista, perguntou-lhe: “Senhor Rushdie, até que ponto o senhor é um inocente comunista útil?”. Com uma gargalhada — o programa era ao vivo —, Salman aborreceu o apresentador mais do que com qualquer outra resposta que tivesse dado. Mas aqui começa o espinhoso problema da definição de crimes e presos políticos.

Na grande maioria dos países onde houve, há ou haverá presos políticos, existem leis que criminalizam certos atos políticos. No México existe, em Cuba idem, e as normas hoje vigentes na Nicarágua punem qualquer conexão com financiamento externo a organizações não governamentais (ONGs), um crime tipificado na lei desse país.

Se voltarmos às ditaduras na Ibero-América nos anos 1970 e 1980 ou às leis — incluindo as de Nuremberg — da Alemanha nazista, veremos que o problema não é o fato de um comportamento político violar a lei ou não, porque as ditaduras tendem a ter leis que proíbem certas atividades políticas, principalmente aquelas que buscam acabar com a ditadura.

Portanto, não é apenas o crime em si que define o caráter do preso político. Um preso também pode pertencer a esta categoria se violou uma lei perfeitamente formulada e/ou cometeu um ato contrário a uma ditadura sem violar nenhuma lei, como aconteceu várias vezes na História. Em outras palavras: a definição de “preso político” é sempre movediça, pois, de acordo com o regime, amplia-se seu entendimento para incluir outras tipificações, quiçá várias, “ad infinitum”.

Nesse sentido, até a imprensa nicaraguense foi, é e será presa politicamente, além de pré-candidatos, estudantes, dirigentes rurais e defensores dos direitos humanos. Tanto ela quanto outros atores podem ou não ter cometido crimes. E aí surge o problema do Poder Judiciário e do devido processo legal com condenações e absolvições. Mas não se pode responder às acusações em liberdade?

Aqui no Brasil se usou de tudo para prender os mandatários eleitos no período 1945-1950, bem como outras pessoas, a despeito da autoridade ter ou não a certeza (outro terreno de difícil sondagem, o que versa sobre a formação da convicção) de que cometeram os crimes de que eram acusadas. Em vez disso, trata-se de razões, motivações e impulsos políticos por parte dos governantes. É por isso que a experiência das eleições nicaraguenses em curso é especialmente escandalosa.

O fato de os juízes terem negado mais de uma vez as fianças da oposição nicaraguense mostra claramente a intenção política de suas prisões, bem como a impossibilidade de estes atos serem corrigidos antes de existirem condições políticas — não jurídicas — para uma retificação. Por isso é que, apesar das ilusões e dos equívocos de certos entusiastas e suas notas sobre o processo eleitoral nicaraguense, está claro que os aspectos jurídicos que o envolvem são praticamente irrelevantes.

O estranho é que um governo desse tipo recorra a tais práticas depois de ter visto o que aconteceu no seu passado. Poucos países na Ibero-América têm um histórico tão longo — a contar do período colonial — de presos políticos. Mas onde manda o capitão não manda o marinheiro. Esta é a Nicarágua de Daniel Ortega: idêntica ou pelo menos semelhante à Nicarágua da grande maioria dos governos daquele país bicentenário.

 

Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2021



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 7 de novembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 10 - QUE FAZER COM A EDUCAÇÃO?

Anísio Teixeira


Apagão Educacional

 

Tiago Martins Simões[1]

 

Apesar de decorrido já algum tempo desde o início da pandemia, ainda há que se falar abertamente sobre a crise educacional. Não é uma crise exclusiva da pandemia porque esta é mais ampla e porque existe um tanto de mau caratismo em creditar a ela boa parte dos problemas atuais. De toda forma, ela agrava o problema e cria tantos outros.

Existe algo de muito nítido que a pandemia revelou, ao menos à maioria dos educadores e estudantes: o ensino remoto não é e não funciona, nem de perto, como substitutivo ao presencial (não devemos jamais cair no equívoco de aproximar essa situação ao conceito de ensino híbrido; são coisas completamente distintas). Quando muito, ajuda a potencializar uma educação que acontece dentro de algum espaço onde as alunas e alunos se encontram, quando estes possuem recursos físicos (internet e computador com definições mínimas) e humanos (alguém com tempo e formação mínima), o que não é a realidade da maioria dos estudantes brasileiros. Este é um problema que a pandemia colocou porque, com isso, ela estancou o processo educacional de milhões de crianças, jovens e adultos.

Outro ponto importante é que a(s) crise(s) possuem efeitos distintos, a depender da região, faixa etária, sistema de ensino, dentre tantos outros fatores. Precisamos resistir e não realizar generalizações sem discutir aspectos regionais e circunstanciais. Ainda não temos um diagnóstico bem definido na política; pelo contrário, existem nuvens de fumaça, quando não há miopia. Mais grave ainda é o fato disso acontecer no nível da gestão educacional.



 Um jovem russo em 1887

A começar pela condução do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Educação, que voltaram suas energias para salvar os anos letivos, criando continuidades entre os anos de 2020 e 2021. Suas resoluções e pareceres[2] mencionaram constantemente a avaliação da aprendizagem das alunas e alunos como critérios norteadores das subsequentes políticas. Pois bem, as políticas educacionais estão à deriva, tocando o barco para cumprir a legalidade do currículo, seja em dias ou horas letivas.

Além do problema das matrículas (democratização do acesso), Anísio Teixeira apontava já em 1952, pela ocasião de sua posse no INEP[3], a inadequação da educação pública básica e superior às necessidades do país à época. Pauta importante e tão cara quanto outras a personagens progressistas, que fora colocada por ele ao lado de temas estruturantes como o da reforma agrária. Naquela época já se falava na importância da formação educacional para processos industriais e tecnológicos. Hoje, vivemos dois fracassos: o de, quase 70 anos depois, continuarmos completamente inadequados às necessidades do país, inclusive em termos tecnológicos; e o da profunda carência de uma diagnose do apagão educacional (agravado pela pandemia).

A gestão (não só do Governo Federal) não está encarando a crise de frente. Abrir escolas sem traçar diretrizes para a recuperação do déficit de aprendizagem[4] joga o problema pra frente que, para muitos, está logo ali (como na questão hodierna dos alunos e alunas que farão o ENEM ou estão para terminar os segmentos de ensino). É insuficiente a política de recursos humanos e formativos dos profissionais (não regulamentação de auxiliares para Fundamental 1; incompletude da transformação das escolas em turno único/integral e sua consequente incompatibilidade com a atual carreira de professores de educação infantil e Fundamental 1 são alguns pequenos exemplos), assim como é insuficiente o direcionamento da reorganização curricular e da carga horária. Não há previsão ou orientação da recuperação do déficit (qual déficit?) dos alunos e alunas mais afetados pelo apagão - eles e elas estão no mesmo bolo dos demais, e cabe às escolas criarem estratégias a partir de um desenho pouco favorável, se assim desejarem. A municipalização do ensino, defendida inclusive por Anísio Teixeira, que também deixou legados como o da educação integral, tem autonomia para colocar remos contra essa maré liberal. Vai depender de quais compromissos vão assumir.



1 Professor do Município do Rio de Janeiro - Segmento Fundamental I. Doutor em História pela FGV/CPDOC.

2 Em especial o Parecer CNE/CP N.º 15/2020 do Conselho Pleno Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação.

3 Teixeira, Anísio. A Educação e a Crise Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. Também disponível eletronicamente em http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/discurso2.html.

4O déficit sequer está sendo revelado - as avaliações diagnósticas do Município do Rio de Janeiro estão completamente mal calibradas (para baixo) com relação às expectativas de aprendizagem de suas séries correspondentes, até mesmo se tomarmos como parâmetro a priorização curricular traçada pela Secretaria Municipal de Educação.

domingo, 31 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 9 - TESE PARA A CONVENÇÃO DOS BRUXOS


 

O momento rebelde do vampiro Edward

 

Marcio Junior[1]

 

Vampiros são personagens que, sem dúvida, já fazem parte do arcabouço clássico da literatura, como Drácula, um Conde. Do ponto de vista mais contemporâneo temas a obra de Stephenie Meyer, listada em uma saga com cinco volumes.

Edward, o principal vampiro da saga, não foge do padrão de personagens vampiros, haja visto que a sede de sangue humano figura como um dado biológico, intrínseco à sua natureza. Resultado da transformação causada pela mordida de um indivíduo da espécie, o pertencimento à ela não está, necessariamente, no registro genético dos seus ancestrais, mas é fruto de uma mudança: no momento de seu renascimento, deixou de pertencer à espécie humana e foi transformado em outra coisa, cujo alimento é o sangue da espécie a qual pertenceu. Transforma-se em uma espécie nociva a aqueles que povoam o planeta em maior número, tendo como habilidade particular a audição para os pensamentos de todos, humanos ou vampiros. Mesmo assim, foi salvo da morte e condenado à vida eterna.

Assim, a alegoria deste vampiro permite o situar em um meio termo: será que toda a humanidade que havia nele se perdeu? É neste ponto que a literatura de Stephenie nos permite uma leitura provocadora, a partir da maneira como a autora arquitetou principalmente as experiências das personagens nas várias circunstâncias vividas por elas ao longo do tempo. Edward e sua família, por vontade própria, não se alimentam de sangue humano e sim de outros animais, vivendo em sua constante luta para domar a si próprios e seus espíritos, compreendendo que há formas de saciar a sede. Essa construção abre a possibilidade para, inclusive, haver amor dele para com uma humana e vice-versa, o que termina por ser o enredo da saga. Como fazer quando a pessoa que ama é, ao mesmo tempo, aquela que pode entregar a vida para saciar o seu instintivo desejo?

Este jovem senhor de “17 anos” tem, por assim dizer, uma biografia obviamente singular, mas olhemos para ela com atenção. Seu “renascimento” data de 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial. Perdera seus pais para a Gripe Espanhola e estava à beira da morte também por ela, como o caso de muitas famílias na pandemia da COVID-19, tal qual ainda não saímos. Durante seu primeiro ano da nova “vida”, a sala dos espelhos do Palácio de Versalhes sediou as discussões que culminaram no Tratado de Paz. No mesmo ano, depois da saída prematura da comitiva inglesa que fazia parte das negociações, Keynes publicou As Consequências Econômicas da Paz. Edward, junto com seu transformador Carlisle (que viria a ser seu novo pai quando a família ganhasse novos membros), precisava aprender a lidar com suas novas condições e seus instintos sanguinários. A rebeldia, portanto, foi motivada pela dieta. Em suas próprias palavras:

 

— Bom, eu tive um ataque típico de rebeldia adolescente…. Uns dez anos depois que eu… nasci…. fui criado, como quiser chamar. Não concordava com a sua vida de abstinência, e me ressentia dele por restringir meu apetite. Então parti para ficar sozinho por algum tempo. (...) Precisei de mais alguns anos para voltar para Carlisle e me comprometer novamente com seu modo de viver.[2]


            Enquanto o rebelde Edward partia, os humanos viram e viveram a crise de 1929. Na crise, período de mudanças profundas e dolorosas nas sociedades do planeta, o vampiro deixou a dieta e ceifou vidas. Em 1936, Keynes publicou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, seu texto mais conhecido.

            Nossa conjuntura hodierna não é muito diferente. A financeirização da vida é vista a olho nu, porém com novos elementos, sobretudo novas oportunidades de acumulação a partir de instrumentos não existentes antes, possibilitados pela marcha do mundo digital. Junto a este complexo processo, pessoas com fome e novos pobres no mundo, fenômeno potencializado pela pandemia. Edward novamente se rebelou, e muitas sociedades planetárias se veem mais individualizadas e tendo como única alternativa (e ideologia apaixonada) a busca da boa vida restrita somente a si e às suas necessidades, sejam físicas e/ou psicológicas.

            Ainda não sabemos até quando será assim, porém é necessária a reflexão que objetive pensar em novas formas de domar a fera, sobretudo para que, em conjuntura de transformação profunda, não interromper de vez a evolução da nossa marcha republicana e democrática, sem a qual não é possível alcançar o bem estar dos povos no mundo e no Brasil.

 



-       [1]Mestre em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ.

-       [2]MEYER, Stephenie. Crepúsculo. 3º ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. Pág. 248.

domingo, 10 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - ESTADO E ROUND 6


A batatinha-frita está assando

Por Pablo Spinelli


Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada

“E vamos à luta” - Gonzaguinha


Imagem do líder com uma máscara que lembra a do Dr. Destino da Marvel

O filósofo e antropólogo social polonês Karl Polanyi (1866-1964), em sua obra A grande transformação (1944), descreveu o processo de modernização que gerou a Revolução Industrial inglesa no século XVIII e sua consequente transubstanciação de homens em massa como um “moinho satânico”, termo forte em um país com forte influência católica.

Nos anos 1990, a televisão brasileira foi pródiga em moer gente para apetites sádicos da audiência que eram alimentados por uma lógica neoliberal do mercado que teve seu primeiro momento auspicioso com a eleição de Fernando Collor de Melo no início daquela década. Exemplos para isso não faltam, como o quadro “Olimpíadas do Faustão”, as histórias tristes e comoventes com requintes de dramaturgia nos domingos de Gugu Liberato ou na “Porta da Esperança” de Sílvio Santos, que jogava dinheiro para uma ávida e competitiva plateia no “Topa tudo por dinheiro”, um título que resume o pensamento da época.


 Silvio Santos dança com Carla Perez no Topa Tudo Por Dinheiro (anos 90)

Esse modelo de sociedade teve obstáculos com a formação do Brasil contemporâneo e a história econômica do Brasil. Um Estado demiurgo teve sua melhor encarnação na Era Vargas, síntese da modernização sem o moderno, do transformismo do nosso capitalismo sem abrir mão da tradição que residia na concentração de terras nas mãos de uma oligarquia a qual não era exigido o cumprimento da CLT, posto que as leis trabalhistas não abarcassem o mundo agrário. O mercado era dirigido pelo Estado e por mais que gritasse aqui ou ali, não era refratário de fato a tal direção, mas o mundo se move, e nos anos 1990 o nosso país começa a ter uma onda que começara no Chile de Pinochet, nos EUA de Reagan e na Inglaterra da Dama de Ferro. Meritocracia, capacidade de explorar talentos individuais, espírito empreendedor, inserção no setor de serviços e na III Revolução tecnológica, empregabilidade, são alguns dos termos que começaram a aparecer no cenário político, acadêmico e na imprensa. Como trazer esse ideário para as massas? O apresentador Luciano Huck foi o exemplo mais bem acabado desse modelo midiático, pois apresentava a pobreza e sonhos de uma pessoa que, em troca de um dinheiro teria que acertar no gol com um goleiro profissional em “Agora ou Nunca” Errou o gol? Lamentamos. A culpa é de sua falta de habilidade após treinar uma semana para acertar.

Dessa forma, a televisão aberta deu gradativamente um sentido moral e até apologético aos termos acima. Combinado com o avanço do neopentecostalismo, o processo de derruição do iberismo pelo americanismo seguia seu curso. A sociologia era inútil para explicar as decisões individuais da violência, como se via na exploração de crimes no “Aqui e Agora” do SBT ou nos programas da OM (atual CNT) protagonizados por Luiz Carlos Alborghetti e seu repórter, Carlos Massa, o Ratinho. A violência era explicada como ações de escolhas racionais e individuais. Pedro Dom, Suzane  von Richthofen ou o caso Nardoni transformaram o singular como exemplo generalizante. Vinte ou trinta anos depois, num neoliberalismo que agora tirou seu capuz no país, voltam revigorados como peças de ficção para os jovens. E voltam sem qualquer censura nos canais de streaming, como nos dois primeiros exemplos.


 Luiz Carlos Alborghetti tinha o bordão: "Porrada Neles!"

Assim como o crime, a morte, não pode ser explicada pela sociologia ou ciência política, o desemprego, a miséria, o abandono, passaram a ser vinculada com o binômio competência-incompetência; sucesso-fracasso; esforço-preguiça. A educação passou a ter referenciais mundiais a partir de uma bússola: o exame PISA, cujo uso se assemelha às leituras de economistas e jornalistas quanto ao PIB, déficit público, renda per capita. Uma medida que avalia um grupo de jovens (sem qualquer análise quanto à alimentação, ambiente familiar, acesso a recursos tecnológicos, formação familiar – ou capital humano – para agradar a Jessé Souza) e que além do paraíso educacional finlandês (alvo de grande deboche da genial série catalã Merlí) tinha como parâmetro os resultados dos estudantes da Coreia do Sul.

A Coreia do Sul era a grande referência de modelo de país para um grupo de liberais mais afeitos ao que se chama de neoliberalismo. Paulo Maluf, candidato do então PDS (hoje, Progressista) à presidência da República em 1989 já apontava dois modelos a serem seguidos caso vencesse: o chileno e o coreano.

O ministro da Economia Paulo Guedes, homenageado com o prêmio "Personalidade do ano para o desenvolvimento do setor varejista", durante a primeira edição do Retail Trends Pós-NRF de 2020, já defendia o modelo sul-coreano como um paradigma para sua política econômica do então candidato Jair Bolsonaro em 2018. Curiosamente, Chile e Coreia do Sul tiveram modernizações com generais de longo mandato (para usar um eufemismo), Pinochet e Park, respectivamente.

Interessante notar que a história de modernização da Coreia do Sul teve uma direção estatal em quais setores deveria haver subsídios públicos para as empresas que atingissem as metas estabelecidas pelo governo, o que impulsionou o capital produtivo a exigir uma legislação trabalhista quase inexistente, a destruição dos sindicatos, repressão das forças públicas sobre greves. Nos dizeres de Paulo Gala, professor de economia na FGV-SP, um dos grandes pontos fortes do Estado desenvolvimentista sul-coreano foi sua grande capacidade de não apenas “escolher vencedores”, mas também “podar perdedores”, isso é, não apenas conceder benefícios a empresas potencialmente capazes, mas também retirar benefícios a empresas que se mostrassem incompetentes.[1]Um dos efeitos foi ter acabado com as montadoras “perdedoras” e só ter sobrevivido uma, a Hyundai.

Com esse quadro exposto, chegamos a Round 6, série de grande sucesso e polêmica exibida no Netflix (e pirateada pelo Tik Tok e afins). Escrita em 2008 quando o seu produtor estava em dívidas, a história começa em um jogo infantil cujo nome entre nós é uma piada pronta. O jogo da Lula. Figuras geométricas aparecem na abertura e ao longo de toda a série. Representação do alfabeto coreano que representa o nome da série (letras O, J e M - Ojingeo Geim) também define hierarquias na referência a outro fenômeno pop, os trabalhadores de vermelho (como os assaltantes de A casa de papel) que quando vão trabalhar ao fundo tem uma melodia muito próxima as dos Oompa-Loompas, os escravos anões da Fantástica Fábrica de Chocolate. E o personagem protagonista, vivido por Lee Jung-Jae, interpreta um quase Macunaíma coreano, um misto de Didi Mocó com Agostinho Carrara (A grande família) nos traz uma empatia sem esconder seus defeitos, um anti-herói, um herói onde adolescentes se reconhecem ao ver por conta de não ser a virtude encarnada. Para os mais velhos, não há como não se interessar pela trajetória de um endividado com a milícia coreana (pois é..), com problemas para manter contato com a filha de dez anos, que vive com a mãe e o padrasto; além do caro tratamento de saúde da sua idosa mãe diabética, afinal, na Coréia do Sul não tem SUS.

Ao longo da série outros personagens surgem, como a estrela do bairro pobre que por seu mérito entrou na faculdade sem o FIES, Cho Sang-Woo, um analista de mercado cuja ganância e incompetência faz com que venda a própria mãe. Há Sae-Byeok, uma jovem norte-coreana que enfrenta dificuldades em sua vida de refugiada na Coreia do Sul, vítima do sexismo e pelo seu país de origem (curiosamente, um dos xingamentos favoritos a ela é ser chamada de “comunista”). Cabe destacar Oh Il-Nam (“homem número um” em coreano) um senhor que é uma mistura de Miyagi (Karatê Kid) com Yoda (Star Wars) e o carismático paquistanês de bom coração Abdul Ali. Esses personagens – além de personagens como o cristão do Velho Testamento, do mafioso cheio de clichê, da mulher solitária e falante - terão que passar por jogos infantis que são mortais. Ninguém é forçado. A série exaustivamente mostra que houve o livre-arbítrio, segundo os organizadores do espetáculo de sangue. Basta ver com atenção o segundo episódio para que esse argumento não fique em pé. Para a juventude, um aviso: os participantes estão de verde por ser essa a cor do fardamento usado pelos alunos coreanos do ensino médio.


Tirando a falsa polêmica das escolas brasileiras quanto a alertar os pais se a série é adequada ou não para alunos/filhos, em um momento que se come osso para substituir a carne no prato do brasileiro; tem uma Prevent Senior do darwinismo clínico e 14 milhões de desempregados, a série é o outro lado da moeda de Jogos Vorazes. Na trilogia de Jeniffer Lawrence havia um Estado opressor usando um reality público para moer a juventude para legitimar a força. Round 6 vai além. É o mercado que oprime a todos para um reality privado para legitimar o prazer de poucos. Subir e descer na escada inspirada nas obras de Escher[1] é a essência do sistema de mercado sul-coreano ou brasileiro. Entende-se o porquê de se colocar a série num Index pós-moderno e, paradoxalmente, o sucesso juvenil, que começa a descortinar que os problemas reais ultrapassam fronteiras, etnias, gêneros, orientações, idades. Os grilhões são gerais e só resta à juventude em um caráter universalista se organizar nesse cabo de guerra, passar por essa ponte de cristal, segurar o guarda-chuva, olhar para o Sol, dividr a bolinha de gude e saber que o jogo da Lula não basta para ser feliz.



[1] https://www.paulogala.com.br/o-passo-a-passo-da-coreia-do-sul-para-se-transformar-numa-potencia-tecnologica-mundial-estado-mercado/

[2] Maurits Cornelis Escher (1898 — 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras e litografias  que tendem a representar construções impossíveis, com uso de padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes.




sábado, 9 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 8 - JUVENTUDE E DILEMAS DO FUTURO

A Juventude e a Batalha do Futuro Próximo.

Por Letycia Campello

 

Nunca esteve tão evidente o importante papel da juventude no desenvolvimento da sociedade. Entretanto, os desafios e obstáculos que estão aparecendo como consequência dos atos das gerações passadas estão causando sérias preocupações no meio jovem. Existe uma banalização muito grande da educação, onde o jovem com seu diploma em mãos precisam trabalhar em áreas completamente diferentes da que se formou por não ter oportunidades no mercado, e por faltar valorização no mesmo, indo por caminhos distantes do seu ponto inicial.

Hoje em dia, o que mais se vê são pessoas optando por carreiras em que se dê para trabalhar sem depender tanto de vínculos empregatícios, onde a autonomia tem sido o principal alvo das carreiras. Este fenômeno da busca pela falta de vínculos em CLT pode trazer a tona diversas evidencias de coisas que estão acontecendo neste exato momento: a popularização dos ideais liberais sendo apresentados aos jovens de maneira fantasiada, influenciando fortemente a se desprender de tudo e a se tornar cabeça de um mercado que só se alcança sendo puxado por alguém; o fenômeno do coach de empreendedorismo, que planta uma ideia de crescimento no mercado que na prática não é proveitoso e recompensador para a grande maioria das pessoas. A grande desvalorização do diploma e as exigências absurdas de cargos simples. Cada um desses pontos carrega em si um grande potencial em tirar o jovem de dentro da universidade e jogá-lo em uma fantasia de que tudo que tocar as mãos virará ouro do dia para a noite, quando se sabe que não é bem assim que funciona, e o resultado disso são frustrações e a sensação de ter corrido numa esteira, onde se deu tudo que tinha sem sair do lugar.


Na prática, a educação no Brasil sempre foi uma problemática desde os tempos do Império. As exclusões que haviam e os requisitos para ser simplesmente letrado eram absurdos, e hoje conseguimos ver o reflexo claro desta política ultrapassada, que cravou tão forte suas raízes na sociedade que mesmo centenas de anos depois é possível ver a marca da enorme falta de oportunidade que assolou a maioria da população brasileira. O grande desafio do jovem com a educação neste quesito é que a responsabilidade de recuperar todo este tempo científico perdido caiu sobre nós, e ao mesmo tempo, vivemos em um contexto onde a verba para financiar esta corrida contra o tempo se torna cada vez mais baixa a cada dia, sofrendo ataques diretos de um governo que valoriza mais o conservadorismo que a própria evolução do campo científico e intelectual da nação, ignorando completamente uma possibilidade de avanço protagonizado pela juventude brasileira.

Ainda com todos os diversos obstáculos na educação, somos hoje o intermediário entre os últimos suspiros e gritos de socorro da natureza e a mão da industrialização e da ganância que a sufocam. Desde pequenos, fomos ensinados a poupar água enquanto o agronegócio desperdiça, fomos ensinados a não jogar lixo nas ruas enquanto as grandes companhias descartam toneladas de plástico, fomos ensinados a preservar os rios enquanto a cada dia mais litros e toneladas de conteúdo poluente são jogados nos mesmos, fomos ensinados a amar e preservar as florestas enquanto elas são desmatadas dia e noite para enriquecer mais aqueles que convém. Em tudo isto, há dentro de nós um sentimento de culpa por sermos hoje a ponte que tornará este belíssimo planeta em cinzas se não levantarmos nossa voz a tempo, e usarmos a força que ainda nos resta para impedir que destruam nossa casa. Mas como fazer isso enquanto muitos de nós está preso nos pensamentos dos destruidores? A resposta está na educação.


Esta geração que vos fala pode ser a que descobrirá cura para doenças antes consideradas atestados de óbito, esta geração pode ser a que impeça o avanço do relógio do fim do mundo e do colapso ambiental, mas tudo isso dependerá do preparo encontrado nos livros, laboratórios e nas mentes brilhantes daqueles que foram ofuscados por toda a vida por um sistema que preza pelo lucro excessivo em cima de exploração em massa, e ignora qualquer potencial que venha dos mais desfavorecidos. Por mais angustiante que seja a atual realidade desta nação, ainda há esperança nas mãos daqueles que não se conformam com o negacionismo e ignorância, ainda há a possibilidade de reconstruir a estrada para o jardim, e entregar o florescimento de uma nova primavera humana nas mãos de nossos filhos e dos filhos de nossos filhos. A humanidade ganhou uma nova perspectiva de tempo, o famoso A.C./D.C. poderá facilmente simbolizar um mundo Antes do Covid e Depois do Covid.


sexta-feira, 1 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 7 - O BRASIL NUMA NOVELA?


 Casamento na Roça - Cândido Portinari (1959)

Três Casais com Interpretações do Brasil em Nos Tempos do Imperador

Por Vagner Gomes de Souza

 

A segunda fase do folhetim televisivo Nos Tempos do Imperador trouxe a ficção histórica do século XIX para um debate sobre a necessidade de algumas “revisões” de seu conteúdo. Mudanças em algumas cenas seriam muito bem vidas uma vez que se trata da primeira produção inédita nesse intervalo de “Quarentena” da Pandemia inconclusa. Todavia, ainda nos chama a atenção para a reação distante da juventude para essa obra. Não é uma novidade. Entretanto, é uma opção pelo deserto buscar um diálogo com jovens sobre o trabalho de Selton Mello e as contradições políticas da ficção. Alguns diriam que os jovens estariam distantes da TV ABERTA, mas essa é uma interpretação para aqueles que acham que vivemos 100% digital nas classes subalternas. A “Pequena África” do século XXI é a “Grande Exclusão Digital” como nos demonstrou as experiências de pedra do ensino remoto.

Esse artigo não tem como objetivo aprofundar ou tentar esclarecer sobre a ausência da juventude sobre o debate programático de nosso passado. Alguns diriam que muitos jovens, até politizados, estejam de olhos voltados para a “fuga pra o futuro”. Nesse caso, estariam fazendo militância política pensando em 2024, 2026, 2028 ou 2030. A juventude não se encontrou na “Malhação Viva a Diferença” com uma roupagem do século XIX provavelmente por considerar que há mesmo essa “linha reta” de um Tonico Rocha até um Artur Lira ou uma continuidade do racismo desde antes A Era dos Impérios. Eric Hobsbawm foi sempre comprado, mas nem sempre lido ou compreendido.

Então, falemos da proposta de uma releitura de referências da História numa obra de ficção em três casais ficcionais e históricos. Deveríamos reconhecer que uma obra de ficção histórica não tem o compromisso com a exposição dos “fatos históricos” como plena realidade, porém há oportunidades que se perdem em Nos Tempos do Imperador por buscar uma tensão sobre uma relação inter-racial entre Maria do Pilar (Gabriela Medvedovski) e Jorge/Samuel (Michel Gomes). Se esquecem da contribuição da falecida concorrente TV MANCHETE com a teledramaturgia de Xica da Silva (1996/1997) após a esquecida adaptação da obra de Jorge Amado “Tocaia Grande”. Nessa obra a Xica da Silva (interpretada por Taís Araújo que foi a terceira atriz negra a protagonizar uma novela[1]) vive um romance com João Fernandes, um representante do Estado Colonial português. Eram tempos em que Fanon[2] era um celebrado desconhecido nos “arraiais” das forças progressistas. Aliás, foi uma novela pioneira, diga-se de passagem, pois o ator Guilherme Piva interpretou um homossexual anos antes de “incorporar” o jeitinho brasileiro de Roberto DaMatta[3] no personagem Licurgo.

Licurgo e Germana (Vivianne Pasmanter), para aqueles que ainda não conhecem a trama seriam personagens que vieram das profundezas do iberismo de Portugal na novela “Novo Mundo”, representam um perfil daquilo que muitos desejam superar de uma forma americanista e conservadora. Entretanto, acaba por nos encantar esse estilo próximo ao Macunaíma e foram literalmente atropelados pela modernização através de uma Maria Fumaça ao final da primeira fase. Viraram os “fantasmas do patrimonialismo” ao redor de um Cassino falido num sonho empreendedor do Quinzinho. Esse seria o casal renegado por aquilo que Nelson Rodrigues[4] chamaria de “complexo de vira lata” do brasileiro.

Por fim, o casal histórico D. Pedro II e a Condessa de Barral (Mariana Ximenes) viveriam uma relação extraconjugal como reflexo das contradições do nosso liberalismo até mesmo na abordagem do tema da escravidão. Aonde muitos veem um clichê de novela está a necessária oportunidade de intervenção para que o folhetim de época não se perca em rodeios de anacronismos em temas e abordagens que deixam a política em segundo plano. Na política eleitoral do século XIX brasileiro não pode confundir o Imperador D. Pedro II como uma “Rainha da Inglaterra” que, na falta de condições de fazer política, se dedica a estudar árabe e outros hobbies. Como escreveu Ilmar Rohloff de Mattos[5] tinham “os olhos do soberano” numa intricada política de aproximação da Coroa tanto em relação aos Liberais (“Luzias”) quanto aos conservadores (“Saquaremas”). Havia uma forte preocupação com a fidelidade matrimonial entre o Imperador e a formação do Estado Imperial através de um corpo político que não se fez presente como personagem na novela: o Conselho de Estado. Portanto, os anseios por “retoques” na narrativa de “Nos Tempos do Imperador” precisam dar uma atenção para esse ponto evitando um desfile de manifestações individualizadas.

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2021.

[1] As pioneiras foram Yolanda Braga em A Cor da Sua Pele (1965), da TV Tupi, e Ruth de Souza em A Cabana do Pai Tomás (1968), da Rede Globo.

[2] Frantz Fanon foi um psiquiatra, ensaísta e militante político que se envolveu com a Frente de Libertação da Argélia. No Brasil, passou a ser conhecido mais por vídeos de Youtube do que pela leitura contextualizada de sua vasta obra. Afinal, a “descolonização” pretensamente defendida pelo autor se refere a crítica ao neocolonialismo que surgiu naquilo que seria a fase superior do capitalismo.

[3] Roberto DaMatta é um antropólogo que se orgulha de se posicionar como conservador. Poderia ser o “ideólogo” do debate da Cultura do Privilégio no seu ensaio Você sabe com quem está falando?

[4] Nelson Rodrigue se destacou como teatrólogo e cronista no país e teve a tragédia familiar de 1929 como possíveis influências em sua obra. O Jornal Crítica trouxe o relato da separação do casal Sylvia Serafim e João Thibau Jr. Ilustrada por Roberto (irmão do autor) e assinada pelo repórter Orestes Barbosa. Sylvia, cujo nome fora exposto na reportagem invadiu a redação do jornal e atirou em Roberto com uma arma comprada naquele dia. Nelson testemunhou o crime e a agonia do irmão, que morreu dias depois. Sylvia, apoiada pelas sufragistas e por boa parte da imprensa concorrente de Crítica, foi absolvida do crime.

[5] O Tempo Saquarema. 1ªedição, São Paulo: Editora Hucitec, 1987 (Há uma 5ªedição de 2004).


POLÊMICA - VAMOS BRINCAR DE PIQUE-ESTÁTUA?


 Roda Infantil - Cândido Portinari (1935)

Vamos brincar de pique-estátua?

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A decisão do BioParque da cidade do Rio de Janeiro, as vésperas do 7 de setembro de 2021, de retirar as estátuas de representação de africanos que se encontravam numa exposição no ambiente Savana Africana, é um sinal. Outros foram os incêndios em julho e agosto de 2021, respectivamente, das estátuas de Manuel de Borba Gato (1649-1718) na Avenida Santo Amaro, em São Paulo e de Pedro Álvares Cabral (1467 ou 1468-1520) na Glória, no Rio de Janeiro. Todos nós sabemos que os óculos da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na Praia de Copacabana, já foram roubados várias vezes. Pior ainda: em fevereiro de 2020, a estátua inteira de dona Rosa Paulina da Fonseca (1802-1873), mãe do marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1897), foi levada da Glória sem deixar vestígios.

As motivações desse conjunto de situações lamentáveis se encontram numa miríade de circunstâncias. Mas as que supostamente envolvem posicionamentos públicos de dita conotação política são as que mobilizam a história como um terreno de disputa hodierna tal como tem se manifestado nesse 2021 e não só. Aqui os passados têm mudado a cada dia. Os passados não têm sido passíveis de reconstituição e tão só sujeitados as narrativas políticas ou não ausentes de compromissos com a busca das verdades.

A nota do BioParque do Rio diz que em face “da ponderação levantada (...) retirou as estátuas do ambiente e revisará o material temático na representação do continente Africano.” Ou seja: as estátuas foram removidas para se evitar a proteção contra atos de vandalismo? Ou o mercado preferiu evitar uma briga em que ficariam de um lado os supostos cultores dos colonizadores e os manifestantes que ficaram do lado dos ditos colonizados. O único problema disso tudo é o anacronismo infinito do hiperamericanismo que nos cerca e alguns teimam em usar, abusar e lambuzar o espaço público.

A estátua de Pedro Álvares Cabral é uma escultura assinada pelo mexicano José Maria Oscar Rodolpho Bernardelli y Thierry (1852-1931), e foi inaugurada em 1900 para a efeméride do quarto centenário da chegada do português. Sua localização, numa praça, um pouco próxima e anterior aos resquícios do Hotel Glória (que nasceu no centenário do nascimento do Brasil em 1922), foi no passado um ponto de referência para milhões de moradores da Capital desde sua instalação. Pedro Álvares Cabral é uma figura histórica que obviamente nunca desembarcou em solo carioca, mas que, devido ao massacre em Calecute, pode ser considerado um precursor dos conquistadores que atacaram e abusaram dos povos originários de toda a América. Aliás, não seria necessário pensar em mudar este último substantivo geográfico, já que se trata de um nome florentino que nos chegou por um germânico, e que ainda gerou consequências terríveis de suas histórias baseadas em suas viagens ao “Novo Mundo”?

Interessa reter que o destino das estátuas do genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) também não tem tido boa sorte pois estão sendo removidas e/ou demolidas num conjunto de cidades. É o que aconteceu em 2020, em Baltimore, Sacramento (que também retirou a do germano-suíço John Sutter [1803-1880]) e São Francisco, nos Estados Unidos da América (EUA) e em Barranquilla, na Colômbia e na cidade do México em 2021 e em várias outras cidades (Caracas em 2009, Buenos Aires em 2013 e Los Angeles em 2018). Em Nova York, apesar de algumas tentativas, era difícil removê-lo de Columbus Circle, pois seu monumento é na verdade uma homenagem à presença italiana na cidade, o que acaba por ser outro anacronismo. Lá eles o veem como um herói representativo das glórias do renascimento da península itálica, como Maradona é para os argentinos.

As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (como tantas outras aqui e em alhures) são grandes metrópoles, com múltiplas e extensas avenidas e parques onde podem ser colocadas estátuas. Se quisermos erguer um monumento à resistência das mulheres dos povos originários, africanos ou afrodescendentes, ou simplesmente às suas existências, existem muitos lugares para fazê-lo. O que se deve fazer é sempre a consulta democrática, em todas as situações. Ruth Pinto de Souza (1921-2019) não mereceria uma? Por que não se deve representar os povos de uma Savana Africana? O que se coloca no lugar? Obviamente, nem Pedro Álvares Cabral, nem as populações africanas ou afrodescendentes, nem os povos originários, nem a própria concepção de resistência têm algo a ver com isso.

Vejamos alguns dos líderes que ordenaram a remoção de estátuas no continente. Hugo Chávez (1954-2013) fez um julgamento simbólico de Cristóvão Colombo em 2004 e, em 2009, ordenou a remoção da sua última estátua em Caracas. Cristina Kirchner em 2013 fez algo similar em Buenos Aires, embora não tenha conseguido mudar o nome do Teatro Colombo, o mais importante da capital argentina. Os diversos parlamentares do Partido Democrata dos EUA em cada uma das circunstâncias citadas estão enlaçados pelo voto com as Coalizões contra os Símbolos Racistas.

Nada melhor do que remover uma estátua ou colocar uma outra ou não o fazer pelo exercício democrático e sempre com debate cívico educado e bem-informado. E tudo isso para não repetirmos o que vem se fazendo e, se fez com o obelisco e estátua de 1960 do gaúcho Miguel Antônio Pastor (1930-1987) para Isabel (1846-1921), também em Copacabana, com a sua demolição na década seguinte sob o beneplácito da ditadura civil-militar. Enquanto isso não acontece, tomemos cuidado quando formos brincar de pique-estátua!

 

30 de setembro de 2021



[1] Professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional.