domingo, 10 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - ESTADO E ROUND 6


A batatinha-frita está assando

Por Pablo Spinelli


Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada

“E vamos à luta” - Gonzaguinha


Imagem do líder com uma máscara que lembra a do Dr. Destino da Marvel

O filósofo e antropólogo social polonês Karl Polanyi (1866-1964), em sua obra A grande transformação (1944), descreveu o processo de modernização que gerou a Revolução Industrial inglesa no século XVIII e sua consequente transubstanciação de homens em massa como um “moinho satânico”, termo forte em um país com forte influência católica.

Nos anos 1990, a televisão brasileira foi pródiga em moer gente para apetites sádicos da audiência que eram alimentados por uma lógica neoliberal do mercado que teve seu primeiro momento auspicioso com a eleição de Fernando Collor de Melo no início daquela década. Exemplos para isso não faltam, como o quadro “Olimpíadas do Faustão”, as histórias tristes e comoventes com requintes de dramaturgia nos domingos de Gugu Liberato ou na “Porta da Esperança” de Sílvio Santos, que jogava dinheiro para uma ávida e competitiva plateia no “Topa tudo por dinheiro”, um título que resume o pensamento da época.


 Silvio Santos dança com Carla Perez no Topa Tudo Por Dinheiro (anos 90)

Esse modelo de sociedade teve obstáculos com a formação do Brasil contemporâneo e a história econômica do Brasil. Um Estado demiurgo teve sua melhor encarnação na Era Vargas, síntese da modernização sem o moderno, do transformismo do nosso capitalismo sem abrir mão da tradição que residia na concentração de terras nas mãos de uma oligarquia a qual não era exigido o cumprimento da CLT, posto que as leis trabalhistas não abarcassem o mundo agrário. O mercado era dirigido pelo Estado e por mais que gritasse aqui ou ali, não era refratário de fato a tal direção, mas o mundo se move, e nos anos 1990 o nosso país começa a ter uma onda que começara no Chile de Pinochet, nos EUA de Reagan e na Inglaterra da Dama de Ferro. Meritocracia, capacidade de explorar talentos individuais, espírito empreendedor, inserção no setor de serviços e na III Revolução tecnológica, empregabilidade, são alguns dos termos que começaram a aparecer no cenário político, acadêmico e na imprensa. Como trazer esse ideário para as massas? O apresentador Luciano Huck foi o exemplo mais bem acabado desse modelo midiático, pois apresentava a pobreza e sonhos de uma pessoa que, em troca de um dinheiro teria que acertar no gol com um goleiro profissional em “Agora ou Nunca” Errou o gol? Lamentamos. A culpa é de sua falta de habilidade após treinar uma semana para acertar.

Dessa forma, a televisão aberta deu gradativamente um sentido moral e até apologético aos termos acima. Combinado com o avanço do neopentecostalismo, o processo de derruição do iberismo pelo americanismo seguia seu curso. A sociologia era inútil para explicar as decisões individuais da violência, como se via na exploração de crimes no “Aqui e Agora” do SBT ou nos programas da OM (atual CNT) protagonizados por Luiz Carlos Alborghetti e seu repórter, Carlos Massa, o Ratinho. A violência era explicada como ações de escolhas racionais e individuais. Pedro Dom, Suzane  von Richthofen ou o caso Nardoni transformaram o singular como exemplo generalizante. Vinte ou trinta anos depois, num neoliberalismo que agora tirou seu capuz no país, voltam revigorados como peças de ficção para os jovens. E voltam sem qualquer censura nos canais de streaming, como nos dois primeiros exemplos.


 Luiz Carlos Alborghetti tinha o bordão: "Porrada Neles!"

Assim como o crime, a morte, não pode ser explicada pela sociologia ou ciência política, o desemprego, a miséria, o abandono, passaram a ser vinculada com o binômio competência-incompetência; sucesso-fracasso; esforço-preguiça. A educação passou a ter referenciais mundiais a partir de uma bússola: o exame PISA, cujo uso se assemelha às leituras de economistas e jornalistas quanto ao PIB, déficit público, renda per capita. Uma medida que avalia um grupo de jovens (sem qualquer análise quanto à alimentação, ambiente familiar, acesso a recursos tecnológicos, formação familiar – ou capital humano – para agradar a Jessé Souza) e que além do paraíso educacional finlandês (alvo de grande deboche da genial série catalã Merlí) tinha como parâmetro os resultados dos estudantes da Coreia do Sul.

A Coreia do Sul era a grande referência de modelo de país para um grupo de liberais mais afeitos ao que se chama de neoliberalismo. Paulo Maluf, candidato do então PDS (hoje, Progressista) à presidência da República em 1989 já apontava dois modelos a serem seguidos caso vencesse: o chileno e o coreano.

O ministro da Economia Paulo Guedes, homenageado com o prêmio "Personalidade do ano para o desenvolvimento do setor varejista", durante a primeira edição do Retail Trends Pós-NRF de 2020, já defendia o modelo sul-coreano como um paradigma para sua política econômica do então candidato Jair Bolsonaro em 2018. Curiosamente, Chile e Coreia do Sul tiveram modernizações com generais de longo mandato (para usar um eufemismo), Pinochet e Park, respectivamente.

Interessante notar que a história de modernização da Coreia do Sul teve uma direção estatal em quais setores deveria haver subsídios públicos para as empresas que atingissem as metas estabelecidas pelo governo, o que impulsionou o capital produtivo a exigir uma legislação trabalhista quase inexistente, a destruição dos sindicatos, repressão das forças públicas sobre greves. Nos dizeres de Paulo Gala, professor de economia na FGV-SP, um dos grandes pontos fortes do Estado desenvolvimentista sul-coreano foi sua grande capacidade de não apenas “escolher vencedores”, mas também “podar perdedores”, isso é, não apenas conceder benefícios a empresas potencialmente capazes, mas também retirar benefícios a empresas que se mostrassem incompetentes.[1]Um dos efeitos foi ter acabado com as montadoras “perdedoras” e só ter sobrevivido uma, a Hyundai.

Com esse quadro exposto, chegamos a Round 6, série de grande sucesso e polêmica exibida no Netflix (e pirateada pelo Tik Tok e afins). Escrita em 2008 quando o seu produtor estava em dívidas, a história começa em um jogo infantil cujo nome entre nós é uma piada pronta. O jogo da Lula. Figuras geométricas aparecem na abertura e ao longo de toda a série. Representação do alfabeto coreano que representa o nome da série (letras O, J e M - Ojingeo Geim) também define hierarquias na referência a outro fenômeno pop, os trabalhadores de vermelho (como os assaltantes de A casa de papel) que quando vão trabalhar ao fundo tem uma melodia muito próxima as dos Oompa-Loompas, os escravos anões da Fantástica Fábrica de Chocolate. E o personagem protagonista, vivido por Lee Jung-Jae, interpreta um quase Macunaíma coreano, um misto de Didi Mocó com Agostinho Carrara (A grande família) nos traz uma empatia sem esconder seus defeitos, um anti-herói, um herói onde adolescentes se reconhecem ao ver por conta de não ser a virtude encarnada. Para os mais velhos, não há como não se interessar pela trajetória de um endividado com a milícia coreana (pois é..), com problemas para manter contato com a filha de dez anos, que vive com a mãe e o padrasto; além do caro tratamento de saúde da sua idosa mãe diabética, afinal, na Coréia do Sul não tem SUS.

Ao longo da série outros personagens surgem, como a estrela do bairro pobre que por seu mérito entrou na faculdade sem o FIES, Cho Sang-Woo, um analista de mercado cuja ganância e incompetência faz com que venda a própria mãe. Há Sae-Byeok, uma jovem norte-coreana que enfrenta dificuldades em sua vida de refugiada na Coreia do Sul, vítima do sexismo e pelo seu país de origem (curiosamente, um dos xingamentos favoritos a ela é ser chamada de “comunista”). Cabe destacar Oh Il-Nam (“homem número um” em coreano) um senhor que é uma mistura de Miyagi (Karatê Kid) com Yoda (Star Wars) e o carismático paquistanês de bom coração Abdul Ali. Esses personagens – além de personagens como o cristão do Velho Testamento, do mafioso cheio de clichê, da mulher solitária e falante - terão que passar por jogos infantis que são mortais. Ninguém é forçado. A série exaustivamente mostra que houve o livre-arbítrio, segundo os organizadores do espetáculo de sangue. Basta ver com atenção o segundo episódio para que esse argumento não fique em pé. Para a juventude, um aviso: os participantes estão de verde por ser essa a cor do fardamento usado pelos alunos coreanos do ensino médio.


Tirando a falsa polêmica das escolas brasileiras quanto a alertar os pais se a série é adequada ou não para alunos/filhos, em um momento que se come osso para substituir a carne no prato do brasileiro; tem uma Prevent Senior do darwinismo clínico e 14 milhões de desempregados, a série é o outro lado da moeda de Jogos Vorazes. Na trilogia de Jeniffer Lawrence havia um Estado opressor usando um reality público para moer a juventude para legitimar a força. Round 6 vai além. É o mercado que oprime a todos para um reality privado para legitimar o prazer de poucos. Subir e descer na escada inspirada nas obras de Escher[1] é a essência do sistema de mercado sul-coreano ou brasileiro. Entende-se o porquê de se colocar a série num Index pós-moderno e, paradoxalmente, o sucesso juvenil, que começa a descortinar que os problemas reais ultrapassam fronteiras, etnias, gêneros, orientações, idades. Os grilhões são gerais e só resta à juventude em um caráter universalista se organizar nesse cabo de guerra, passar por essa ponte de cristal, segurar o guarda-chuva, olhar para o Sol, dividr a bolinha de gude e saber que o jogo da Lula não basta para ser feliz.



[1] https://www.paulogala.com.br/o-passo-a-passo-da-coreia-do-sul-para-se-transformar-numa-potencia-tecnologica-mundial-estado-mercado/

[2] Maurits Cornelis Escher (1898 — 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras e litografias  que tendem a representar construções impossíveis, com uso de padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes.




17 comentários:

Leonardo Gomes disse...

Bom argumento e ótima analogia com o neoliberalismo.

Bia e Vinnicius disse...

Eu não assisti e sequer li algo sobre Round 6.
Seu texto, impecável como sempre.
Se eu posso dar alguma no opinião te digo para procurar um lugar que valorize o que escreve, pq você tem potencial para leitores de outro nível, twitter não é esse lugar.
Suas analogias são perfeitas, irretocáveis.
Neoliberalismo ainda vai imperar por muito tempo até que ou dê certo ou extermine de vez o país.

Heitor Victor disse...

Estava me perguntando se ninguém tinha entendido realmente nada da série, que dialoga em atmosfera com Parasita. Você entendeu, Pablo. Belo texto.

Chocolateria da Serra disse...

Excelente texto, parabéns!

Unknown disse...

Continue assim parabens

Unknown disse...

Parabéns! Boa reflexão que poderia ser mais divulgada.

Olhares pela janela disse...

Texto incrível!!!

Unknown disse...

Não assisti a série e nem tinha vontade. Fiquei até curiosa. Excelente texto

PSCPDA disse...

Só tenho a agradecer as suas palavras.

PSCPDA disse...

Obrigado pelo comentário, a série, apesar de seus clichês, merece ser vista.

PSCPDA disse...

Por favor, ajude a divulgar!

PSCPDA disse...

Obrigado, contamos com seu apoio para divulgar!

PSCPDA disse...

Agradeço e pedimos que multiplique a reflexão!

PSCPDA disse...

A série é uma continuação da análise da triste situação da Coreia, um dos melhores celeiros de crítica social no cinema há 20 anos. Divida com seus alunos!

PSCPDA disse...

Precisamos, juntos, criar anticorpos para a ideologia neoliberal na juventude. Conto com seu apoio para divulgar esse texto!

PSCPDA disse...

Agradeço muito sua leitura e que possa multiplicar essa mensagem de reflexão e proposição para a política dos jovens.

Marília Pacheco disse...

Excelente reflexão, análise primorosa. Parabens