Vamos brincar de pique-estátua?
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
A decisão do BioParque da cidade do
Rio de Janeiro, as vésperas do 7 de setembro de 2021, de retirar as estátuas de
representação de africanos que se encontravam numa exposição no ambiente Savana
Africana, é um sinal. Outros foram os incêndios em julho e agosto de 2021,
respectivamente, das estátuas de Manuel de Borba Gato (1649-1718) na Avenida Santo Amaro, em São Paulo e de Pedro Álvares Cabral (1467 ou 1468-1520) na Glória, no
Rio de Janeiro. Todos nós sabemos que os óculos da estátua do poeta Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987),
na Praia de Copacabana, já foram roubados várias vezes. Pior ainda: em
fevereiro de 2020, a estátua inteira de dona Rosa Paulina da Fonseca (1802-1873),
mãe do marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1897), foi levada da Glória sem
deixar vestígios.
As motivações desse conjunto de
situações lamentáveis se encontram numa miríade de circunstâncias. Mas as que
supostamente envolvem posicionamentos públicos de dita conotação política são
as que mobilizam a história como um terreno de disputa hodierna tal como tem se
manifestado nesse 2021 e não só. Aqui os passados têm mudado a cada dia. Os passados
não têm sido passíveis de reconstituição e tão só sujeitados as narrativas
políticas ou não ausentes de compromissos com a busca das verdades.
A nota do BioParque do Rio diz que em face “da ponderação levantada
(...) retirou as estátuas do ambiente e revisará o material temático na
representação do continente Africano.” Ou seja: as estátuas foram removidas
para se evitar a proteção contra atos de vandalismo? Ou o mercado preferiu evitar
uma briga em que ficariam de um lado os supostos cultores dos colonizadores e
os manifestantes que ficaram do lado dos ditos colonizados. O único problema
disso tudo é o anacronismo infinito do hiperamericanismo que nos cerca e alguns
teimam em usar, abusar e lambuzar o espaço público.
A estátua de Pedro Álvares Cabral é uma
escultura assinada pelo mexicano José Maria Oscar Rodolpho Bernardelli y
Thierry (1852-1931), e foi inaugurada em 1900 para a efeméride do quarto
centenário da chegada do português. Sua localização, numa praça, um pouco
próxima e anterior aos resquícios do Hotel Glória (que nasceu no centenário do
nascimento do Brasil em 1922), foi no passado um ponto de referência para
milhões de moradores da Capital desde sua instalação. Pedro Álvares Cabral é
uma figura histórica que obviamente nunca desembarcou em solo carioca, mas que,
devido ao massacre em
Calecute,
pode ser considerado um precursor dos conquistadores que atacaram e abusaram
dos povos originários de toda a América. Aliás, não seria necessário pensar em
mudar este último substantivo geográfico, já que se trata de um nome florentino
que nos chegou por um germânico, e que ainda gerou consequências terríveis de
suas histórias baseadas em suas viagens ao “Novo Mundo”?
Interessa reter que o destino das estátuas do
genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) também não tem tido boa sorte pois estão
sendo removidas e/ou demolidas num conjunto de cidades. É o que aconteceu em
2020, em Baltimore, Sacramento (que também retirou a do germano-suíço John
Sutter [1803-1880]) e São Francisco, nos Estados Unidos da América (EUA) e em Barranquilla,
na Colômbia e na cidade do México em 2021 e em várias outras cidades (Caracas
em 2009, Buenos Aires em 2013 e Los Angeles em 2018). Em Nova York, apesar
de algumas tentativas, era difícil removê-lo de Columbus Circle, pois seu
monumento é na verdade uma homenagem à presença italiana na cidade, o que acaba
por ser outro anacronismo. Lá eles o veem como um herói representativo das
glórias do renascimento da península itálica, como Maradona é para os argentinos.
As cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro (como tantas outras aqui e em alhures) são grandes metrópoles, com
múltiplas e extensas avenidas e parques onde podem ser colocadas estátuas. Se
quisermos erguer um monumento à resistência das mulheres dos povos originários,
africanos ou afrodescendentes, ou simplesmente às suas existências, existem
muitos lugares para fazê-lo. O que se deve fazer é sempre a consulta
democrática, em todas as situações. Ruth Pinto de Souza (1921-2019) não
mereceria uma? Por que não se deve representar os povos de uma Savana Africana?
O que se coloca no lugar? Obviamente, nem Pedro Álvares Cabral, nem as
populações africanas ou afrodescendentes, nem os povos originários, nem a própria
concepção de resistência têm algo a ver com isso.
Vejamos alguns dos líderes que
ordenaram a remoção de estátuas no continente. Hugo Chávez (1954-2013) fez um
julgamento simbólico de Cristóvão Colombo em 2004 e, em 2009, ordenou a remoção
da sua última estátua em Caracas. Cristina Kirchner em 2013 fez algo similar em
Buenos Aires, embora não tenha conseguido mudar o nome do Teatro Colombo, o mais
importante da capital argentina. Os diversos parlamentares do Partido Democrata
dos EUA em cada uma das circunstâncias citadas estão enlaçados pelo voto com as
Coalizões contra os Símbolos Racistas.
Nada melhor do que remover uma estátua
ou colocar uma outra ou não o fazer pelo exercício democrático e sempre com
debate cívico educado e bem-informado. E tudo isso para não repetirmos o que vem
se fazendo e, se fez com o obelisco e estátua de 1960 do gaúcho Miguel Antônio
Pastor (1930-1987) para Isabel (1846-1921), também em Copacabana, com a sua
demolição na década seguinte sob o beneplácito da ditadura civil-militar. Enquanto
isso não acontece, tomemos cuidado quando formos brincar de pique-estátua!
30 de setembro de 2021
Um comentário:
me fez refletir sobre qual seria o momento, mediante plena democracia e consciência coletiva, que deveríamos mudar estátuas e outras formas de homenagear a "nossa" história.
Ciro Colorado
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