domingo, 31 de outubro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 9 - TESE PARA A CONVENÇÃO DOS BRUXOS


 

O momento rebelde do vampiro Edward

 

Marcio Junior[1]

 

Vampiros são personagens que, sem dúvida, já fazem parte do arcabouço clássico da literatura, como Drácula, um Conde. Do ponto de vista mais contemporâneo temas a obra de Stephenie Meyer, listada em uma saga com cinco volumes.

Edward, o principal vampiro da saga, não foge do padrão de personagens vampiros, haja visto que a sede de sangue humano figura como um dado biológico, intrínseco à sua natureza. Resultado da transformação causada pela mordida de um indivíduo da espécie, o pertencimento à ela não está, necessariamente, no registro genético dos seus ancestrais, mas é fruto de uma mudança: no momento de seu renascimento, deixou de pertencer à espécie humana e foi transformado em outra coisa, cujo alimento é o sangue da espécie a qual pertenceu. Transforma-se em uma espécie nociva a aqueles que povoam o planeta em maior número, tendo como habilidade particular a audição para os pensamentos de todos, humanos ou vampiros. Mesmo assim, foi salvo da morte e condenado à vida eterna.

Assim, a alegoria deste vampiro permite o situar em um meio termo: será que toda a humanidade que havia nele se perdeu? É neste ponto que a literatura de Stephenie nos permite uma leitura provocadora, a partir da maneira como a autora arquitetou principalmente as experiências das personagens nas várias circunstâncias vividas por elas ao longo do tempo. Edward e sua família, por vontade própria, não se alimentam de sangue humano e sim de outros animais, vivendo em sua constante luta para domar a si próprios e seus espíritos, compreendendo que há formas de saciar a sede. Essa construção abre a possibilidade para, inclusive, haver amor dele para com uma humana e vice-versa, o que termina por ser o enredo da saga. Como fazer quando a pessoa que ama é, ao mesmo tempo, aquela que pode entregar a vida para saciar o seu instintivo desejo?

Este jovem senhor de “17 anos” tem, por assim dizer, uma biografia obviamente singular, mas olhemos para ela com atenção. Seu “renascimento” data de 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial. Perdera seus pais para a Gripe Espanhola e estava à beira da morte também por ela, como o caso de muitas famílias na pandemia da COVID-19, tal qual ainda não saímos. Durante seu primeiro ano da nova “vida”, a sala dos espelhos do Palácio de Versalhes sediou as discussões que culminaram no Tratado de Paz. No mesmo ano, depois da saída prematura da comitiva inglesa que fazia parte das negociações, Keynes publicou As Consequências Econômicas da Paz. Edward, junto com seu transformador Carlisle (que viria a ser seu novo pai quando a família ganhasse novos membros), precisava aprender a lidar com suas novas condições e seus instintos sanguinários. A rebeldia, portanto, foi motivada pela dieta. Em suas próprias palavras:

 

— Bom, eu tive um ataque típico de rebeldia adolescente…. Uns dez anos depois que eu… nasci…. fui criado, como quiser chamar. Não concordava com a sua vida de abstinência, e me ressentia dele por restringir meu apetite. Então parti para ficar sozinho por algum tempo. (...) Precisei de mais alguns anos para voltar para Carlisle e me comprometer novamente com seu modo de viver.[2]


            Enquanto o rebelde Edward partia, os humanos viram e viveram a crise de 1929. Na crise, período de mudanças profundas e dolorosas nas sociedades do planeta, o vampiro deixou a dieta e ceifou vidas. Em 1936, Keynes publicou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, seu texto mais conhecido.

            Nossa conjuntura hodierna não é muito diferente. A financeirização da vida é vista a olho nu, porém com novos elementos, sobretudo novas oportunidades de acumulação a partir de instrumentos não existentes antes, possibilitados pela marcha do mundo digital. Junto a este complexo processo, pessoas com fome e novos pobres no mundo, fenômeno potencializado pela pandemia. Edward novamente se rebelou, e muitas sociedades planetárias se veem mais individualizadas e tendo como única alternativa (e ideologia apaixonada) a busca da boa vida restrita somente a si e às suas necessidades, sejam físicas e/ou psicológicas.

            Ainda não sabemos até quando será assim, porém é necessária a reflexão que objetive pensar em novas formas de domar a fera, sobretudo para que, em conjuntura de transformação profunda, não interromper de vez a evolução da nossa marcha republicana e democrática, sem a qual não é possível alcançar o bem estar dos povos no mundo e no Brasil.

 



-       [1]Mestre em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ.

-       [2]MEYER, Stephenie. Crepúsculo. 3º ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. Pág. 248.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom o texto. Principalmente a conclusão. Precisamos dessa reflexão.