sábado, 11 de maio de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 038 - POLÍTICAS PÚBLICAS

Tania Rego - Agência Brasil

Democracia brasileira e diversidade identitária

Julio Lopes[1]

O que impediu que Ministérios orientados para questões de identidades coletivas vulneráveis no Brasil, tais quais os de Cidadania, Mulher, Igualdade Racial, Povos Originários e Cultura, zelassem pelo atendimento direto de idosos em serviços digitais públicos e privados, monitorassem pela paridade feminina nos concursos públicos em geral (incluindo os estaduais e mesmo municipais), regulamentassem as comissões de heteroidentificação racial para cotas populacionais já previstas (como as agora tradicionais universitárias federais), articulassem escoamento de produtos indígenas em feiras livres e de livros (especialmente com temáticas da negritude) para bibliotecas sociais já detectadas em favelas brasileiras ou sequer tenham incentivado à população em geral e por rede televisiva nacional, para a participação eleitoral (facultativa) na escolha dos conselhos tutelares municipais da infância e adolescência? Ou mesmo contribuíssem em destacar, favoravelmente, produtos e serviços de autoestima identitária (como salões de beleza especializados em tranças africanas de cabelos, por exemplo) na reforma tributária que, afinal, é o mote político geral do atual governo?

Foi o predomínio de um viés estreito sobre as pautas identitárias, fundamentais para que a brasilidade se assuma em toda sua diversidade nacional, porque ainda não percebeu que a reversão da exclusão social que caracteriza as identidades coletivas negativamente discriminadas no Brasil implica reverter, por sua vez, as relações sociais excludentes nas quais é cotidianamente produzida. Contrariá-las exige políticas públicas e sociais pela sua reintegração positiva às relações sociais renitentemente seletivas da branquitude, masculinidade, meia-idade, heterossexualidade, etc. É o mesmo viés que subestimou quão importante fora o movimento abolicionista, como ampla confluência nacional que não se limitou à negritude - aliando pretos como Luiz Gama a brancos como Rui Barbosa - com o erro político de desprezar o 13 de maio (dia da abolição legal da escravidão negreira pelo Brasil), como meramente devido à Princesa que decretou seu fim, em vez de ressignificar a data como vitória do abolicionismo brasileiro.

À maior magnitude ministerial, já adotada por qualquer governo federal no Brasil, de sua diversidade identitária pela Presidência da República, ainda precisa lhe corresponder um viés amplo e congruente com a amplitude política governamental da conciliação democrática que orienta o atual Executivo. Que conceba políticas públicas integrativas das identidades coletivas vulneráveis, na sociedade brasileira, garantindo lugares de escuta aos seus lugares de fala e sabendo que o reconhecimento de sua dignidade identitária consiste em relações sociais inclusivas nas quais outrem é integrado, mas sem desintegrar identidade alguma. Pois qualquer uma delas é relacional e, portanto, relativa a outra, cabendo às políticas públicas garantir sua diversidade recíproca.

Neste sentido, exceções positivas governamentais para identidades coletivas vulneráveis, nas quais elas não têm sido estreitamente concebidas em políticas públicas, foi o programa “pé-de-meia” para estudantes concluírem o ensino médio em escolas públicas e o recente agenciamento programado de etnoturismo indígena na Amazônia. A primeira sendo uma política social integrativa da adolescência pobre brasileira e a segunda de fomento para atividades econômicas turísticas que integrariam tribos nativas amazônicas a mercados nacional e internacional, concomitantemente ao seu fortalecimento identitário. Ambas são iniciativas exemplares do viés integrativo que políticas sociais identitárias devem assumir e o empreendimento indígena mencionado já devia inspirar até programas similares de assistência tecno-étnica para quilombos, lhes fomentando visitas turísticas no âmbito da auto-organização de suas festividades rituais.

Embora todas as demais identidades coletivas historicamente vulneráveis continuem necessitando de afirmação social, as das pessoas LGBTQIAPN+ ainda permanecem as menos promovidas no Brasil. Ao ponto de sua discriminação negativa ter problematizado até seu recenseamento nacional completo, durante a última coleta de dados pelo IBGE, através de ações judiciais intolerantes visando excluir as identidades transgêneros e as orientações não-heterossexuais de sexualidade pelas entrevistas. Cuja integração nacional exige, imediatamente e juntamente com o Conselho Nacional de Justiça, um maior monitoramento dos cartórios e incrementar a facilitação de alguns atos civis, específicos e fundamentais até para inserção nos mercados, como a formalização de uniões conjugais, pelas identidades brasileiras LGBTQIAPN+.

Por outro lado, apesar de sua vulnerabilidade individual exigir contínuas adaptações de equipamentos públicos e privados, as identidades coletivas do segmento populacional que porta deficiências individuais (físicas e/ou mentais) foram as de maior avanço, legal e institucional, pela profusão de legislações, especialmente locais, de discriminações positivas compensatórias. Dentre as quais podem ser destacados os Centros de Assistência Psicossocial, cujas atividades por pacientes em sofrimento psíquico já foram até objeto durante programa governamental carnavalesco (“Loucos pela diversidade”), então gerido pelo saudoso Sergio Mamberti dentro do MinC.

Enquanto a autonegação nacional da diversidade social brasileira tem suas tradições machistas, racistas, etaristas, heteronormativas e capacitistas desprezam participações femininas, negras, idosas, homossexuais, juvenis, transgêneros ou portadoras de deficiências individuais, as políticas públicas são mais eficientes quando visam reintegrações sociais delas que sejam inclusivas da pluralidade social e não adstritas somente à identidade coletiva, atualmente e negativamente discriminada. Como os desfiles LGBTQIAPN+ e os feitos durante o Carnaval brasileiro interpelam identidades distintas, tais quais as heterossexuais e brancas, até para aprenderem quanto uma convivência integralmente diversa é mesmo benéfica de todes.



[1] Foi consultor do zoneamento econômico-ecológico de Rondônia, é Pesquisador da Casa de Rui Barbosa e autor de “Brasil: a nação carnavalesca”


domingo, 5 de maio de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 037 - MAIS UM AVISO SOBRE A TRAGÉDIA QUE SE APROXIMA...

Preferência pela Esperança


Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


Tal como temíamos, o debate político segue um caminho de confusão onde abundam brigas e intrigas. É difícil para nós o povo que não vivemos no poder, mas no país, compreender como são as coisas e para onde vão. À medida que se aproximam as eleições para as prefeituras e câmaras municipais, tudo indica que o tom vai subir, que haverá menos espaço para discutir com racionalidade a situação do país e tentar encontrar entendimentos e soluções.

Vivemos uma dupla briga, aquela entre as duas forças eleitorais que saíram das eleições 2022, uma da vitoriosa Frente Democrática e outra da coalizão do governo anterior derrotado e agora na oposição, bem como a briga que existe dentro de cada uma dessas coligações eleitorais, porque são constituídas por forças que não são apenas diferentes, o que é completamente aceitável, mas com concepções as vezes conflitantes, caminhos culturais contraditórios, e até mesmo reações políticas e de cordialidades instantâneas e antitéticas aos acontecimentos. São como um contrato de namoro regado as conveniências e quiçá do mau acordo, obrigados a viver juntos pelas necessidades de sobreviver e de alcançar ou manter o poder e seu status, que não consegue esconder os seus problemas, as suas brigas, as suas ausências, para não falar do amor, mas até de um tênue afeto. Então vão eles, acorrentados pela vida, para acertar cada qual com sua comédia de erros, em que se preferiria não estar naquela companhia, sorrindo juntos com um rito de descontentamento oculto diante das câmeras.

Na extremidade de uma das coalizões se fez o envio de suas principais líderes para viajar. Alguns foram para embaixadas da Hungria, esse belo país que hoje, sob o autoritarismo eletivo, constrói muros, se declara iliberal e promove a extrema direita em todo Leste Europeu.

O que isto tem a ver com o futuro de um país como o Brasil, que conseguiu sair de uma ditadura e avançar durante anos num desenvolvimento progressivo e equitativo que infelizmente perdeu o seu impulso propulsor, e a coesão dos cidadãos e a jornada social nos últimos dez anos?

O Brasil exige uma nova organização das forças políticas que contribua para uma melhor governação e a construção de acordos para que a democracia funcione e gere um desenvolvimento econômico que dê sustentabilidade aos avanços sociais que estão a ser alcançados. Que permita recuperar a confiança nas instituições democráticas e que recupere o prestígio da política e dos políticos, elevando a sua qualidade e representatividade.

É necessário um objetivo estratégico que não existe desde as últimas duas décadas apesar de todas as possibilidades que os nossos recursos naturais nos abrem na era digital. A questão é que não estamos fazendo isso e, para piorar, alguns ficaram obscurecidos pela sua imaginação ideológica, outros pela sua rigidez atávica.

O acúmulo do que conquistamos nos anos anteriores nos permite, no entanto, seguirmos caminhando na república e na democracia e até o momento não termos um colapso institucional tal como desejado no 8 de janeiro de 2023, nem nos números de pobreza e desigualdade em que avançamos para reduzi-los e encurtar a disparidades, respectivamente.

É possível continuar assim? Claro que é possível, mesmo com o tempo vamos nos acostumando, vamos achando natural a mediocridade, vamos nos adaptando a piores serviços, para cidades dilapidadas, populações que vivem em condições indignas e um Congresso de má qualidade.

Estamos diante de uma grande encruzilhada que não pode ser resolvida recusando as histórias, mas estabelecendo metas compartilháveis. Já tivemos muitas histórias globais e algumas delas foram rejeitadas pela grande maioria das pessoas e isso não resolveu nada. Contar a nós mesmos as nossas histórias ajudará a conseguirmos nossa coesão e com ela recuperar o impulso propulsivo.

E só seremos solidamente estáveis ​​se recuperarmos a história do impulso propulsor e, para isso, é necessário recuperar as histórias da Frente Democrática, seus passos reformistas dos acordos que perdemos por inúmeros equívocos, inclusive recentes. Mas infelizmente, pelo menos nesta rodada, aqueles que puderam promover a vitoriosa Frente Democrática em 2022, neste novo tabuleiro político marcado por uma competição eleitoral, avessas em tudo a uma visão construtiva e com isso pouco poderão fazer, ainda que tentem mitigar as forças extremas que querem impor a sua própria verdade e a quem os avanços democráticos pouco importam perto das suas utopias e distopias. Enquanto isso não mudar, será impossível sair da estagnação. E será com a Frente Democrática, simbolizada nesse dramático dia em Porto Alegre na coletiva da imprensa, tal como havia acontecido no histórico discurso presidencial na solenidade de sua posse no Congresso Nacional em 1 de janeiro de 2023, que conseguiremos reconstruir o Rio Grande do Sul.

 

5 de maio de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

SÉRIE ESTUDOS - AGUARDANDO O PESSIMISMO DA RAZÃO

O longuíssimo caminho para o bem-estar social

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O longo caminho para a utopia: uma história econômica do século XX, do norte-americano James Bradford DeLong. Tradução de Diego Franco Gonçalves; Revisão técnica de Marco Antonio Rocha. São Paulo: Crítica, 2024.

 

É difícil negar que as humanidades progrediram, mas assumir o progresso como fio condutor histórico pode nos levar a superlativos em face aos tempos atuais. O livro O longo caminho para a utopia: uma história econômica do século XX, de James Bradford DeLong, nos coloca mais perto da utopia do que realmente estamos. A sua tese principal é que os cento e quarenta anos que compõem o período da Segunda Revolução Industrial em 1870 a 2010 formam uma unidade histórica, um “grande século XX”. O que o torna característico é que a sua economia histórica, ilustrará uma derrota em curso, pois essa economia histórica, é o relato do progresso econômico e não histórico que levou as humanidades, pela primeira vez, a poder dar fim à aguda pobreza material que sofre desde muito longe. Para DeLong, foi o surgimento de três instituições as responsáveis ​​por tal feito: a globalização, os laboratórios de pesquisa industrial e as corporações modernas. Esta combinação gerou a maior força criadora de riqueza e possibilita proporcionar a todas as humanidades essa chance de um mínimo de seguridade.

A ideia de que a enorme capacidade econômica instalada de produzir riqueza não está na mesma proporção do bem-estar das humanidades é uma ideia que se impõe à luz da enorme e crescente desigualdade e pobreza no mundo. DeLong conhece bem esta verdade. Citando Keynes, DeLong lembra-nos que, em 1914, às classes média e alta de todo o mundo “ofereciam-se vidas, a baixo custo e sem maiores problemas, facilidades, confortos e serviços que ultrapassavam os disponíveis aos monarcas mais poderosos”. poderosos de todo o mundo”; e que em 2010 nos EUA imaginário uma “família típica já não enfrentava o problema mais urgente de adquirir comida, abrigo e roupa suficientes para o próximo ano ou para a próxima semana”.

Talvez essa família imaginaria típica a que DeLong se refere talvez faça sentido por lá. Mas, se ao menos esta família típica imaginaria fosse globalmente representativa; se fosse verdade que esta família típica imaginária dos nossos dias pudesse orgulhar-se de viver melhor do que os monarcas mais poderosos de qualquer lugar, então ousaríamos dizer que já estaríamos na própria utopia. DeLong baseia o seu otimismo nos números oficiais do Banco Mundial sobre a pobreza extrema: em 2010 sem qualquer sombra pandêmica, menos de 9% da população mundial vivia com menos de 2 dólares por dia. Assim, dois dólares é o critério que DeLong aceita para estabelecer o progresso econômico alcançado. Mas se olharmos para os padrões nacionais e/ou regionais de medição da pobreza, o quadro é geralmente mais sombrio. Mesmo de acordo com medidas internacionais, quando passamos da pobreza extrema (menos de 9% em 2010) para outros tipos de pobreza, descobrimos, por exemplo, que 32% da população mundial é identificada como multidimensionalmente pobre.

Não é nossa intenção, contudo, negar todo o progresso que as humanidades fizeram. Contudo, na capacidade produtiva também deve ser considerado, sobretudo, a intensificação do trabalho e o abuso dos recursos naturais mundiais. Nada é dito sobre essas questões.

DeLong, no seu esforço para destacar os feitos produtivos do seu século XX, também nos oferece uma medida dessa capacidade produtiva para a riqueza. Segundo as suas estimativas, entre 1870 e 1914, as melhorias tecnológicas e produtivas cresceram a uma taxa de 2 por cento ao ano, uma taxa mais de 4 vezes superior à experimentada pelas humanidades durante todo o século anterior. O alcance desta gigantesca capacidade produtiva é que nos oferece a oportunidade de criar o suficiente para se projetar um pouco mais do que um mínimo de seguridade a toda a população mundial, como provado por todas as médias de riqueza e rendimento. Mas essas são apenas médias. Portanto, embora com certas nuances, é possível concordar com a ideia de DeLong de que parte dos problemas das humanidades já foi resolvido: há riqueza material abundante. Mas o verdadeiro progresso não consiste na produtividade e nem na abundância em si, mas na possibilidade real de acessá-la. Como diz DeLong, com razão, a prosperidade material não está distribuída e o que está se encontra de forma desigual por todo o planeta, numa extensão grotesca e até criminosa.

Para DeLong, uma das razões pelas quais a humanidade não alcança a utopia é que esta é quase inteiramente mediada pela economia de mercado. A produtividade e a abundância são o resultado de uma incrível coordenação e cooperação de milhares de milhões de pessoas que participam na produção de riqueza, mediada pela economia de mercado. Mas, embora a produção de riqueza seja cada vez mais social, o mercado não recompensa de acordo com a seguridade para cada pessoa, mas sim de acordo com os títulos de propriedade que possui sobre esse trabalho social. DeLong não o diz, mas na sociedade contemporânea não existe o, “isto é, meu porque eu o fiz”, mas tão só, “isto é, meu porque tenho o título da propriedade”.

Na sua economia histórica, DeLong envolve-nos num diálogo sobre as virtudes e os limites desta economia de mercado. Através da conversa que DeLong estabelece entre os austríacos Friedrich von Hayek e Karl Polanyi, ele procura representar as humanidades em busca da utopia. Assim, DeLong entende o século XX como uma disputa política entre aqueles, por um lado, que aderem ao lema “o mercado dá, e o mercado tira”, e por outro, aqueles que sustentam que “o mercado é feito pelas humanidades; e não as humanidades para o mercado.” Portanto, a história da economia política que DeLong nos oferece do seu século XX é uma economia histórica focada nas mudanças políticas que definiram os padrões de crescimento da própria economia. Em particular, é uma economia histórica nucleada no papel das elites dominantes dos países ricos do hemisfério norte, lideradas pelas elites do seu país.

Quando se ignora os inúmeros lados errados das coisas históricas talvez isso facilite um olhar otimista. Daí ser o mínimo que possamos recordar a DeLong, pois estaríamos na sua economia histórica no melhor de todos os mundos possíveis. Estamos? Tenho a impressão de que a pior resposta chegará a ele em novembro próximo.

 

22 de abril de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 28 de abril de 2024

ESPECIAL - REVOLUÇÃO DOS CRAVOS 50 ANOS

 

50 anos de Democracia portuguesa[1]

 

Júlio Lopes[2]

O processo democrático, inaugurado pela Revolução portuguesa de 25 de abril de 1974, propiciou inclusão social – especialmente saúde, educação e feminina – à urbanização de Portugal, então majoritariamente rural. A democracia portuguesa de origem revolucionária, a partir da juventude militar oposta às guerras para manter suas colônias africanas, ocasionou cidadania mais larga que outras democracias missionárias, mas provenientes de ampla transação política (como a atual espanhola e brasileira), não estabeleceram tanto. Basta ver que sua ultradireita emergente, apesar de crescente, ainda não alcançou 20% de votos e já há até autodeterminação legal de gêneros em Portugal.

Outra característica democrática positiva é o consenso republicano em sua classe política, durante o último meio século, no expurgo de agentes públicos (mesmo parlamentares) diante de corrupção exposta. Inclusive do modelo de República social, construído por ambos os principais partidos Socialista e Social-Democrata, que sempre formam a maioria absoluta do eleitorado (média de 67,98% até 2022 e 56% na eleição de março). Gerido pela centro-esquerda (PS em 10 das 17 legislaturas) ou pelo centrista PSD, seu regime parlamentarista funciona pela convergência PS-PSD na maioria parlamentar (mais de 75% anuais) das medidas governamentais, geralmente de apoio direto ao empresariado e aos socialmente vulneráveis.

Ao contrário da polarização PT x PSDB, por décadas na democracia brasileira, a oposição entre os principais partidos portugueses de esquerda e centro jamais foi absoluta. Mas os desafios atuais da integração portuguesa (cuja população minguante implica mais esforços de recomposição migratória) à unidade europeia e às nações lusófonas requerem mais arte política do que mera cortesia parlamentar entre PS e PSD. À medida que seus votos compõem larga maioria portuguesa e suas orientações programáticas são afins à manutenção e aperfeiçoamento da economia social de mercado pautada pela União Europeia, ambos deviam parar de se oporem como se o PS fosse meramente de esquerda e não há décadas uma centro-esquerda, e o PSD fosse uma direita, ao invés de assumir o centrismo político majoritário entre seus membros.

Neste sentido, a democracia portuguesa não extrairá todo o seu potencial democrático, no fortalecimento da economia social de mercado que tem atraído migrantes lusófonos (especialmente africanos e brasileiros) e outros ao País, enquanto seus maiores partidos continuarem polarizando, artificialmente. Os quais podem e, portanto, devem dar o passo seguinte à confluência parlamentar habitual entre ambos (de 2012 a 2023, mesmo as suas minoritárias discrepâncias se dividiram tanto entre abstenções quanto votos contrários recíprocos): montando governos unitários cuja maioria deixe de ser uma divisão nacional ideologicamente precária entre eleitores portugueses.  



[1] O presente artigo foi recebido para publicação em 16 de abril de 2024 antes da manifestação do Presidente da República de Portugal sobre a responsabilidade dessa nação na história da escravidão moderna. (Nota do Editor).

[2] Julio Lopes é luso-brasileiro e Pesquisador da Casa Rui Barbosa.

 


quarta-feira, 10 de abril de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 036 - A LONGA CAMINHADA

Lula e Macron visitam a Ilha do Combú, perto de Belém, no Pará 26/03/2024 REUTERS/Ueslei Marcelino

Uma Democracia de Valor Concreto

 

Em memória de Ziraldo, patrono da UniverCidade

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Um clássico do pensamento político, o francês Alexis de Tocqueville[2], disse há quase três séculos que a democracia se baseava no valor intrínseco das suas ideias, mas também na sua utilidade concreta. Em abstrato, poderíamos iludir-nos de que nenhum sistema político alternativo lhe pode ser preferido, porque racionalmente estaríamos a prestar um mau serviço a nós próprios, enquanto indivíduos e à sociedade como um todo. Não é em vão que a democracia, apesar das suas muitas imperfeições, revelou-se não só idealmente, mas historicamente, o único sistema capaz de proteger elevados níveis de liberdade e níveis crescentes de igualdade, ao mesmo tempo em que permite controlar a arbitrariedade do poder.

Mas isto seria assumir que as opções políticas são formadas apenas através da razão, da reflexividade e do discernimento informado dos cidadãos.  Como bem sabemos, e a nossa história também nos mostra, as opções políticas estão longe de se formar desta forma; cordialidade, empatias e emoções efémeras, ressentimentos e medos, preconceitos, interesses mal compreendidos, impulsos de escasso altruísmo, indiferença pelo bem comum e fanatismo tribal muitas vezes predominam na formação da vontade popular. Bastaria, como exemplo do quanto a desrazão influencia estes processos, analisar, mesmo com espírito benevolente, o elenco de incompetência estelar que atualmente constitui uma maioria significativa das Presidências das Américas.

Se continuarmos a viagem pelo resto do mundo, as coisas não serão muito diferentes. Não à toa o sucesso mútuo que a viagem que o presidente da França, Emmanuel Macron realizou ao Brasil em fins de março. Além disso, na atual atmosfera política global, é muito provável que nas 76 eleições que terão lugar no mundo este ano não haja uma mudança suficientemente significativa num sentido positivo.

Isto explica por que a solidez da democracia, a sua manutenção ao longo do tempo, o seu fortalecimento não é algo que tem a ver apenas com o seu valor tipo ideal, mas também em face a eficácia dos seus resultados, com a percepção que tem os cidadãos de que ela os protege e dentro da qual a prosperidade se espraia para todos e cujos benefícios são palpáveis ​​na vida cotidiana.

Entretanto, se ela é superada pela insegurança e pelas dificuldades, pela estagnação e pela ineficiência, o apreço pelos valores que encarna começa a regredir e aí predomina a preocupação com as condições materiais de existência de cada cidadão. Não é de estranhar, como já acontece em muitas partes do mundo, que comecem a duvidar das instituições democráticas e de sentir a tentação de um regime de força, da figura sem escrúpulos, a tentação da ordem a qualquer custo ou de populismos iliberais. E é isto que impulsiona o surgimento de autoritarismos eletivos que enfraquecem as instituições democráticas e, em nome da segurança e do bem-estar, acabam por transformar os cidadãos no gado humano que pontuou Nestor Duarte em 1936 dispostos a renunciar a serem sujeitos políticos para poder brincar e pastarem em paz. Mesmo que na maioria das vezes acabem sem pão, paz e terra.

Estas figuras supostamente providenciais que oferecem soluções categóricas podem ter uma ideologia das extremidades da geografia política, ligadas pelo que o próprio Tocqueville disse “uma ideia falsa, mas clara e precisa terá sempre maior poder no mundo do que uma ideia verdadeira e complexo."  A ideia do autoritarismo é simples, a ideia de democracia é complexa.

A nossa democracia no Brasil tem dificuldades no seu funcionamento e é assim que a grande maioria das pessoas a percebe. Sem dúvida há boas intenções e esforços daqueles que governam, mas décimos a mais ou décimos a menos, estamos numa paralisia, não há olhar demorado, mas sim confusão, posições contraditórias, brigas e erros tortuosos e ininteligíveis em suas colocações explosivas. Por mais que explicitem, é claro que as almas dos partidos da Frente Democrática não são gémeas, mas a cordialidade da vida brasileira está a torná-los parentes distantes e desconfiados um do outro.

Já a oposição também não incorpora serenidade e moderação. Quem tenta levantar o olhar com o sentido de estadistas são o minimum minimorum, vê-se muito canibalismo andando por aí.

Algo está errado no atual quadro político que não nos ajudam a obter resultados que resolvam os graves problemas abertos de segurança pública e de bom desenvolvimento que fortaleçam a democracia.

Existe um grande vazio político que, se preenchido, poderá nos ajudar a sair do atual bloqueio, embora não a curto prazo, uma vez que os dados estão lançados para o próximo processo eleitoral que temos pela frente em 2024, onde as alianças políticas já acordadas manterão a confusão e bloqueio ao não se trazer à consciência política da sociedade brasileira que ensejou a Frente Democrática formada ao longo da histórica campanha de 2022. Esse vazio é a inexistência dela como um ator reformador atualizado face as tarefas que o Brasil e o planeta necessitam hoje, pois no passado recente este existiu direcionando com sucesso a transição para a democracia no final do século anterior e quando dela nos afastamos em 1989 adentramos numa tragédia.

Portanto, a Frente Democrática como ator político deverá ter uma orientação clara no seu projeto que inclua as raízes sociais liberais e conservadoras democráticas, o cristianismo social católico e evangélico e as sociais-democracias, e considerar retomar nesta época o impulso propulsor ao desenvolvimento sustentável econômico com níveis apreciáveis ​​de igualdade e de acumulação da civilização brasileira. Deverá estar aberto ao diálogo com os setores da centro-direita que abraçaram sem reservas. Deverá ser um pilar de uma dialética construtiva e da criação de acordos que tirem o país da sua letargia de mais de uma década.

O caminho fácil que aí está é juntar-se ao que já existe, mas nessa hipótese um grande setor do país não teria representação e seguirá a votar de forma volátil, surfando para no decrescimento ou crescimento dos extremos que compõem esses setores, para os quais a democracia nada mais é do que uma variável tática com a qual devem conviver até que sejam criadas as condições necessárias que lhes permitam avançar para um futuro que não definem, mas que cheira ao autoritarismo eletivo.

O caminho difícil, cuja chegada a um porto não está de forma alguma garantida, é aquele que procura reconstruir a política da Frente Democrática reformadora, com os olhos postos no futuro, capaz de fortalecer a democracia como um todo. Bem sabemos que é um caminho que carece de glamour, será uma caminhada difícil, mas é a que tem a grandeza da civilização brasileira.

 

9 de abril de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Vide https://votopositivo-cg.blogspot.com/2023/08/serie-estudos-lembrancas-sobre.html

 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

ATUALIDADE CARIOCA - DISCURSO DE POSSE

 Foto: Helcio Peynado


Discurso de posse na Cadeira 14 do Instituto Campograndense de Cultura de Mila Pimentel de Souza Aranda André no dia 02 de abril de 2024 na Câmara Municipal do Município do Rio de Janeiro

 

Agradeço aos presentes que tanto engrandecem essa noite.

Em 2004 me formo em História na faculdade Moacyr Sreder Bastos.

Vinte anos depois ingresso no Instituto Campograndense de Cultura (ICC).

Como não associar aqui a presença do Professor Moacyr Sreder Bastos, nessas duas instituições de Campo Grande. Sendo a primeira que me fez chegar até aqui e a outra me levará adiante. Sem mais delongas nas palavras, mas ressalto a importância dessa personalidade para o nosso bairro, somando a isso sua contribuição para a cidade do Rio de Janeiro.

Venho aqui enaltecer os fundadores do Instituto Campograndense de Cultura (ICC), naquele Brasil de 1967, que entenderam a importância de um espaço onde vários agentes da sociedade, nas mais diversas áreas, se reuniriam para constituir um lugar e um legado. Naquele subúrbio rural. Hoje naquele bairro populoso do extremo oeste carioca.

Fato isso que 57 anos após, aqui estamos nós, reunidos pelo e em torno do ICC.  

Muito ainda falta na construção, mas a ausência é um fato a cada período histórico, ausências que existiam no ano de 1967, e outras que encontramos nos dias atuais. Mas hoje essa responsabilidade é nossa. O trabalho de deixar um bairro melhor do que recebemos.

Com orgulho ocuparei a cadeira de número 14, que tem seu patrono José Joaquim Seabra, jurista que participou da promulgação de duas primeiras constituições republicanas. Hoje estamos sob a égide da Constituição Cidadã de 1988, aquela que ampliou os direitos essenciais à sociedade.

A baianidade do Patrono da Cadeira, apesar de suas adversidades políticas com Rui Barbosa, não o impediu de zelar pelo campo da Justiça em dias turbulentos do entreguerras (1919 – 1939). J. J. Seabra nos deixou em plena Segunda Guerra Mundial mas podemos dizer que seria um nome na linha de frente do antifascismo. E assim pleiteamos seguir esse legado no mundo da Cultura pois temos um bairro que tem muito a acrescentar na cultura carioca e nacional.

Getulio Vargas afirmou que o Rio de Janeiro era o tambor do Brasil. E podemos dizer que em Campo Grande se enraíza a cultura democrática desse país se soubermos evitar as aventuras de ocasião.


quarta-feira, 3 de abril de 2024

segunda-feira, 1 de abril de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 12


 Da esquerda para a direita, o presidente Goulart e os generais Osvino Ferreira Alves e Amaury Kruel

Sessenta Anos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Passaram 30 anos desde a medonha efeméride do 30º aniversário da tragédia para a nossa democracia que significou o golpe de Estado de 31 de março de 1964.

Coube ao saudoso Luiz Werneck Vianna (1938-2024) dar sentido aquele momento[2]. Apenas 9 anos de governos democráticos se passaram e os efeitos da longa ditadura que os precedeu estavam mais próximos.

Contudo, o tom do seu sentido foi sereno. Eram tempos em que o mundo atravessava momentos mais esperançosos, o processo de globalização ainda estava longe do seu contexto tristonho e um certo clima mais próximo da convivência democrática ainda predominava no continente.

O Brasil estava no final do segundo governo democrático e nascido de um impeachment. Ambos os governos, de Sarney e de Itamar, buscaram o crescimento econômico à procura de uma expansão do bem-estar social, do reforço do funcionamento da democracia, das virtudes republicanas e à expansão das liberdades democráticas e das garantias dos direitos das humanidades conforme programaticamente expressas na nossa jovem Constituição de 1988.

O caminho escolhido pelo governo do impeachment de 1992 demorou até encontrar o avanço gradual com o Plano Real que abriu uma nova esperança.

O sentido ofertado por Luiz Werneck Vianna aquela macabra lembrança teve sobretudo a ver e a destacar que o Brasil sob a democracia mesmo com seus percalços era infinitamente melhor do que o Brasil sob a ditadura e esse foi o profundo significado de recordar aquela tragédia sangrenta com toda a dor que acarretou.

É por isso que era importante combinar elementos muito diversos para fazê-lo. Em primeiro lugar, a preservação da memória, a busca dos desaparecidos como tarefa permanente, a exigência de punição pelos crimes cometidos, a reparação aos torturados e às famílias das vítimas. Ao mesmo tempo, tratava-se de normalizar as relações com as Forças Armadas como instituições permanentes da República, governadas pela obediência ao poder constitucional e civil democraticamente constituído e pelo reconhecimento de responsabilidades partilhadas na criação de uma situação política não mais divisora e polarizada que levou a 1964.

No Golpe de 1964, está contido a sua fundamental inaceitabilidade e junta-se o fato de aqueles que o perpetraram, alegando a defesa de uma democracia supostamente em perigo, terem em poucos dias a certeza de que não havia Forças Armadas nas sombras e controlaram todo o território nacional, mas continuaram aprisionando, assassinando, torturando e desaparecendo com cidadãos.

Por fim, é claro que a intenção dos seus líderes não era “colocar as coisas em ordem”, mas sim mudar a “ordem das coisas”, não precisamente num sentido democrático, mas sim estabelecer uma ditadura que durou mais de 20 anos e que suprimiu todas as liberdades em especial as civis e políticas.

Será então um erro apontar que houve responsabilidades partilhadas no processo de divisão, polarização e crise que precedeu o golpe?

A resposta é negativa. Os principais partidos que compunham o Governo João Goulart, para além das suas aspirações de justiça social, não tinha uma ideologia comunista tampouco marxista-leninista.

Agiu absorto aos anos da Guerra Fria, sem considerar a posição que os EUA adotariam, junto com a extrema direita, antes mesmo do governo começar.

Aos olhos de hoje, do ponto de vista teórico e histórico, não havia nenhum programa e seguiu a triste sina da nossa “proverbial inorganicidade”. Nenhuma democracia é capaz de navegar sem balizas minimamente definidas e claras.

Isto contribuiu para a impossibilidade de um acordo de governabilidade à época com as forças políticas, desde o início do governo em 1961 como antes do fim abrupto de 1964. Dentro do próprio governo João Goulart havia divergências profundas sobre como sair da crise e evitar um mal maior como o que nos abateu. No final foi a tragédia. Sem democracia, terminamos quase sem democratas.

Este ano, quando recordamos os 60 anos da tragédia, vivemos tempos muito mais tumultuados no mundo, o impulso propulsor no Brasil foi perdido em 2018, e recuperá-lo será complexo e levará tempo.

Temos um governo que nesta quadra histórica tem apoios restritos e que comete erros com demasiada frequência e uma oposição que tende a endurecer o seu papel à medida que se sente reforçada. O tom da política fica cada vez mais enrijecido e isso bloqueia acordos para o avanço do país.

Mais do que nunca, é necessário afirmar a convivência republicana de sua Frente Democrática vitoriosa em 2022, dialogando com os adversários para que não se elimine os acordos necessários para avançar e fazer dos sofrimentos da memória da “hecatombe” uma base sólida para não repetir os erros do passado. Esse deve ser o significado desses 60 anos.

22 de março de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Luiz Werneck Vianna. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 2, n. 1, 30 de junho de 1994: 7-10. Publicado em https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/20/22

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 11

 Leitura do texto do espetáculo “Auto dos 99%”, no Teatro Guaíra Curitiba — PR

1964 e a efervescência cultural

Alessandra Loyola


     60 anos atrás o país vivenciava um marco em sua história, um marco na cultura. Com isso, penso sobre a importância de refletir em alguma medida sobre como a cultura se configurava antes e como se dá hoje, tomando como referência algumas obras.

    É interessante saber que autores já pensaram em como definir ou articular a ideia de cultura popular, a exemplo de Alfredo Bosi que irá dizer que a cultura é heterogênea, diversa e aquilo dito como cultura das classes populares pode ser encontrado em diversas situações. Nessa perspectiva, ao olharmos para alguns anos atrás e observarmos a efervescência cultural pré e durante ditadura militar é possível perceber a música, o cinema e a literatura como fontes de construção da cultura popular. No entanto, todas se veem diante de algo quase como contracultura quando os militares tomam o poder do Brasil em abril de 1964.

   Diante disso, ao assistir um filme do Cinema Novo - movimento que surge um pouco antes de 64, mas perdura nesse período - como, por exemplo, Deus e o diabo na terra do Sol (Glauber Rocha) fica evidente o papel da cultura: expor um problema. É possível encontrar na obra de Rocha alegorias didáticas, construções que contam com a filmagem feitas com a câmera na mão e edições com poucas transições, além da marca da literatura de cordel, criando, assim, imagens para falar sobre o que acontecia com o povo nesse período.

   Exemplos como o longa metragem nos mostram como a cultura popular foi importante para o período da ditadura no Brasil, dando voz de alguma maneira, à população e construindo um mosaico artístico sobre a necessidade de direitos que foram sendo usurpados, dentre outras questões. 

   Hoje em dia 40 anos depois do grito das “Diretas Já”, após tristes tentativas de determinados grupos de reatar laços com ideologias do regime, vemos ainda criações culturais que se mantêm firmes em suas posições de buscar a liberdade e direitos, a exemplo de manifestações culturais como as rodas de Slam - que concedem voz aos que por vezes são silenciados. Manifestações contemporâneas - como rodas de Slam -apresentam novas maneiras culturais, que são frutos de uma influência estrangeira, porém que tomam corpo com as marcas culturais brasileiras, dando visibilidade a questões populares.

    Olhar para efervescências culturais como as citadas nos leva outra vez para Bosi, que discorre sobre a cultura ser fruto de um cultivo através do tempo de cada sociedade, então, se hoje há o resgate da cultura um dia apagada junto a uma articulação contemporânea perpassada por tantos acontecimentos - eleições, pandemia, polarização- é devido a um longo cultivo feito pelas próprias classes populares. E são esses os grupos que sentem na pele, no prato, no bolso…enfim, que sentem em sua realidade o que os grandes governos decidem entre si.

    O olhar para obras produzidas por nomes como Glauber Rocha é perceber até hoje como a cultura é atemporal e fala através do tempo, utilizando a estética, os temas e as ferramentas de sua época. Isto também nos permite ver outras maneiras culturais como poesia cantada que, de maneira análoga, se utiliza o que há disponível em sua realidade para, como já dito, se posicionar em tempos difíceis.

    Seja olhando para o cinema novo brasileiro sejam olhando para as rodas de Slam, o entendimento que fica é a importância das vozes que existem e de que maneira essas vozes populares são colocadas à vista. Há esperança ao olhar para produção cultural popular brasileira.

    Por fim, ainda que existam questões a serem pensadas sobre as obras e os movimentos citados, em cada um deles é possível encontrar as vozes e os ecos que duros regimes com suas armas, censuras e discursos de ódios não o são capazes de sufocar, pois todas são como uma bela rosa que brota do quente e sufocante asfalto.

domingo, 31 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 10

Ernesto Geisel e Sylvio Frota: o primeiro general ficou no Planalto (na Presidência da República) e o segundo general caiu na planície(fora do Ministério do Exército) | Foto: Reprodução

Sedimentos de 1964 sessenta anos depois

Tiago Martins Simões

Professor da Educação Básica

 

Para revisitar o período da ditadura de 1964, faz-se necessário, além da leitura e da pesquisa, o diálogo geracional. Afinal, eu, como muitos e muitas, nascemos já no curso da abertura democrática e, no que diz respeito ao tempo, existe um suposto afastamento. Suposto porque a não linearidade do tempo histórico em nosso contexto do conservar-mudando carrega sedimentações daquele período, que não são de pouca importância.

 Assim é que, apesar de desgastante, a menção ao fenômeno Jair Bolsonaro - tanto pela sua eleição quanto pela sua quase reeleição -, demonstra traços importantes, a começar pela crença da maioria dos votantes, de que ele viria com um suposto projeto liberal. É curioso que a geração que nasce e cresce embriagada na internet não tenha dado um rápido “Google” na biografia do ex-presidente para constatar certa desconfiança neste discurso, até mesmo pelas constantes referências a personagens da ditadura, representando o que nela havia de pior.

No plano mais interpretativo, faz sentido este ator ter carregado determinados aspectos daquele americanismo perverso, especialmente dois: o uso do Estado de forma alheia ao bem estar da sociedade e um aspecto que extrapola o período 2019-2022. Apesar de minoritários, houve apontamentos sobre traumas da ditadura na emergente sociedade civil da década de 1980. Infelizmente suas virtudes, que surgiam naquele momento, ofuscaram seus vícios, como o apartamento da matriz do interesse ao da opinião e do interesse geral[1]. A crítica viria como tentativa de qualificar os atores sociais e políticos e explorar suas virtudes.

Os sinais confirmam aquele diagnóstico feito nos difíceis anos 1990 e a política manteve-se como espaço de reserva, em que os atores sociais seguem majoritariamente suas vidas de forma inorgânica com a vida pública, ou atendendo interesses cotidianos, imediatos. É o que mostram, por exemplo, as sensíveis palavras do colega Vagner, publicado neste blog[2] ao resgatar o que há de mais recente na cidade do Rio de Janeiro através da história do assassinato de Marielle.

É importante o registro dos preocupantes rumos da Frente Democrática que elegeu Lula 3. Vivemos uma política refém das circunstâncias e de um Congresso ostensivo, ao custo de concessões políticas particularistas e que vem inflamando movimentos de greve na educação[3], que fora esquecida pela pandemia, de sua origem à atualidade. Se, pela sociedade, esse desencontro com a política já está crônico, deveria a classe política auscultar melhor nossa história, inclusive de 1964, sob o risco de se esfacelar a Frente e de abrir novamente rumos obscuros ao país.

Por mais trágico que tenha sido o recente flerte com um novo Golpe de Estado, talvez ele nunca tenha estado presente de forma tão clara em minha geração como agora. A lição para os mais novos e para os formadores e educadores, é analisar, dentro de cada conjuntura, nossa história política tendo como horizonte a democracia, valor universal que parece que fora esquecido pelas pautas identitárias e pela representação política em suas várias formas, desta vez não capturadas pelo Estado, mas voluntariamente postas a serviço deste, e com uma impressionante miopia acerca dos problemas sociais.

 

[1] Vianna, Luiz Werneck. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994.

[2] Souza, Vagner Gomes. 1964 e a “bestialização” carioca. Voto Positivo. Rio de Janeiro, 28 de março de 2024. Disponível em: https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/03/especial-19642024-numero-03.html?m=1. Acesso em 29/03/2024.

[3] O Governo vem anunciando a abertura de 100 Institutos Federais, em pleno ano eleitoral, em mais um movimento de expansão sem planejamento, enquanto que a estimativa de greve supera 200 outros Institutos que já aderiram à mesma. Não se trata, aqui, de realizar um juízo de valor sobre as greves, mas de evidenciar a dramaticidade de um amplo movimento grevista que possui suas razões de ser, ainda que seja surpreendente, visto que sua maioria compôs movimentos para a eleição de Lula. Sobre a expansão dos IFs, Cf. COSTA, Pedro Luiz de Araujo; MARINHO, Ricardo José de Azevedo.  Educação profissional e tecnológica brasileira institucionalizada:  uma visão geral dos embates sobre a aprovação dos IFs. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018.

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 09


 JK ouve o Clube da Esquina em Diamantina (MG) em 1971

O silêncio de Saladino

Tariq Bastos de Souza

Vagner Gomes de Souza

 

Na magnus opus de Alan Moore, “Watchmen", observamos um personagem icônico que  é Dr. Manhattan, conhecido por seus poderes divinos, incluindo a onisciência que lhe permite ver passado, presente e futuro simultaneamente. No desfecho da história em quadrinhos, ele ressalta que "nada nunca acaba", enfatizando a interconexão temporal. Essa perspectiva falta ao atual mandatário da República, como evidenciado em suas declarações sobre eventos históricos recentes e sua postura em relação à democracia.

Falar sobre o Holocausto deve ter criado temor ao Presidente circunscrito as “bolhas” do identitarismo. Falaremos na Ditadura como só “direito de fala” de quem tenha vivido aquela época. Não nos esqueçamos de sua fala sobre o AI 5 há quase 50 anos num antigo Teatro do Rio de Janeiro. O AI 5 do trabalhador sempre foi o AI 5 foi a correção do saudoso Luiz Werneck Vianna.

Ao minimizar a importância de eventos passados e focar em questões imediatas, como a tentativa de Golpe de Janeiro, a assessoria do atual mandatário da República revela uma visão míope da história e suas ramificações. O “sindicalismo de resultados” se transformou num pragmatismo eleitoral diante dos olhares nos índices de popularidade. Falta-lhe o reconhecimento de que episódios como o golpe de 1964 estão intrinsecamente ligados ao presente, especialmente considerando a retórica e práticas reminiscentes do governo anterior, que ecoava a ditadura militar.

Uma oportunidade perdida em se valorizar as forças políticas do centro que foram vítimas do extremismo de uma Guerra Fria. De mãos dadas com o Presidente da França que deixou o legado da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. O silêncio do atual mandatário da República se assemelharia ao ficcional silêncio de Saladino na época das Cruzadas. Os tempos das Cruzadas foram evocados polos extremistas da direita e devemos enfrentar com as sutilezas da “virtú” de Maquiavel.

Essa falta de perspectiva histórica compromete a capacidade do governo da Frente Democrática de consolidar a democracia, deixando espaço para a manipulação política e a subversão dos ideais democráticos. O negacionismo da História que se trata de uma ciência humana. Ao negligenciar essa oportunidade a partir do uso das fontes históricas, ele inadvertidamente permite que outros preencham o vácuo político, ilustrando assim a constante ressonância do passado no presente: nada nunca verdadeiramente chega ao fim. Abre um espaço no vácuo do centro político, pois se faz uma fuga para mais adiante.

Perde o presidente a oportunidade de lutar por um Brasil que foi roubado dos brasileiros naquele longínquo ano de 1964. Havia a perspectiva de um Brasil com reforma agrária e com nacionalização das riquezas, independente  na política externa. O silêncio diante da Cruzada, como o presidente se põe, nos deixa aberto para que outras forças reacionárias  ou de extrema direita pautem o nosso "presente passado", dentre elas o ex presidente que ainda não é carta fora do baralho totalmente.

Os sinais dos cavaleiros medievais se aproximam com a regressão da mentalidade criativa e a negação do uso da racionalidade.  O “silêncio sectário” deixa figuras como JK e sua tentativa de frente ampla na obscuridade, assim como os militares legalistas que foram expulsos e difamados pelo regime militar, estes esquecidos até pela esquerda que não estuda figuras como o Marechal Lott apenas por serem militares. Pouca política e pouco estudo na memória de 1964 é uma demonstração do “presentismo” como tema que pauta nosso mandatário da República.