quarta-feira, 10 de abril de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 036 - A LONGA CAMINHADA

Lula e Macron visitam a Ilha do Combú, perto de Belém, no Pará 26/03/2024 REUTERS/Ueslei Marcelino

Uma Democracia de Valor Concreto

 

Em memória de Ziraldo, patrono da UniverCidade

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Um clássico do pensamento político, o francês Alexis de Tocqueville[2], disse há quase três séculos que a democracia se baseava no valor intrínseco das suas ideias, mas também na sua utilidade concreta. Em abstrato, poderíamos iludir-nos de que nenhum sistema político alternativo lhe pode ser preferido, porque racionalmente estaríamos a prestar um mau serviço a nós próprios, enquanto indivíduos e à sociedade como um todo. Não é em vão que a democracia, apesar das suas muitas imperfeições, revelou-se não só idealmente, mas historicamente, o único sistema capaz de proteger elevados níveis de liberdade e níveis crescentes de igualdade, ao mesmo tempo em que permite controlar a arbitrariedade do poder.

Mas isto seria assumir que as opções políticas são formadas apenas através da razão, da reflexividade e do discernimento informado dos cidadãos.  Como bem sabemos, e a nossa história também nos mostra, as opções políticas estão longe de se formar desta forma; cordialidade, empatias e emoções efémeras, ressentimentos e medos, preconceitos, interesses mal compreendidos, impulsos de escasso altruísmo, indiferença pelo bem comum e fanatismo tribal muitas vezes predominam na formação da vontade popular. Bastaria, como exemplo do quanto a desrazão influencia estes processos, analisar, mesmo com espírito benevolente, o elenco de incompetência estelar que atualmente constitui uma maioria significativa das Presidências das Américas.

Se continuarmos a viagem pelo resto do mundo, as coisas não serão muito diferentes. Não à toa o sucesso mútuo que a viagem que o presidente da França, Emmanuel Macron realizou ao Brasil em fins de março. Além disso, na atual atmosfera política global, é muito provável que nas 76 eleições que terão lugar no mundo este ano não haja uma mudança suficientemente significativa num sentido positivo.

Isto explica por que a solidez da democracia, a sua manutenção ao longo do tempo, o seu fortalecimento não é algo que tem a ver apenas com o seu valor tipo ideal, mas também em face a eficácia dos seus resultados, com a percepção que tem os cidadãos de que ela os protege e dentro da qual a prosperidade se espraia para todos e cujos benefícios são palpáveis ​​na vida cotidiana.

Entretanto, se ela é superada pela insegurança e pelas dificuldades, pela estagnação e pela ineficiência, o apreço pelos valores que encarna começa a regredir e aí predomina a preocupação com as condições materiais de existência de cada cidadão. Não é de estranhar, como já acontece em muitas partes do mundo, que comecem a duvidar das instituições democráticas e de sentir a tentação de um regime de força, da figura sem escrúpulos, a tentação da ordem a qualquer custo ou de populismos iliberais. E é isto que impulsiona o surgimento de autoritarismos eletivos que enfraquecem as instituições democráticas e, em nome da segurança e do bem-estar, acabam por transformar os cidadãos no gado humano que pontuou Nestor Duarte em 1936 dispostos a renunciar a serem sujeitos políticos para poder brincar e pastarem em paz. Mesmo que na maioria das vezes acabem sem pão, paz e terra.

Estas figuras supostamente providenciais que oferecem soluções categóricas podem ter uma ideologia das extremidades da geografia política, ligadas pelo que o próprio Tocqueville disse “uma ideia falsa, mas clara e precisa terá sempre maior poder no mundo do que uma ideia verdadeira e complexo."  A ideia do autoritarismo é simples, a ideia de democracia é complexa.

A nossa democracia no Brasil tem dificuldades no seu funcionamento e é assim que a grande maioria das pessoas a percebe. Sem dúvida há boas intenções e esforços daqueles que governam, mas décimos a mais ou décimos a menos, estamos numa paralisia, não há olhar demorado, mas sim confusão, posições contraditórias, brigas e erros tortuosos e ininteligíveis em suas colocações explosivas. Por mais que explicitem, é claro que as almas dos partidos da Frente Democrática não são gémeas, mas a cordialidade da vida brasileira está a torná-los parentes distantes e desconfiados um do outro.

Já a oposição também não incorpora serenidade e moderação. Quem tenta levantar o olhar com o sentido de estadistas são o minimum minimorum, vê-se muito canibalismo andando por aí.

Algo está errado no atual quadro político que não nos ajudam a obter resultados que resolvam os graves problemas abertos de segurança pública e de bom desenvolvimento que fortaleçam a democracia.

Existe um grande vazio político que, se preenchido, poderá nos ajudar a sair do atual bloqueio, embora não a curto prazo, uma vez que os dados estão lançados para o próximo processo eleitoral que temos pela frente em 2024, onde as alianças políticas já acordadas manterão a confusão e bloqueio ao não se trazer à consciência política da sociedade brasileira que ensejou a Frente Democrática formada ao longo da histórica campanha de 2022. Esse vazio é a inexistência dela como um ator reformador atualizado face as tarefas que o Brasil e o planeta necessitam hoje, pois no passado recente este existiu direcionando com sucesso a transição para a democracia no final do século anterior e quando dela nos afastamos em 1989 adentramos numa tragédia.

Portanto, a Frente Democrática como ator político deverá ter uma orientação clara no seu projeto que inclua as raízes sociais liberais e conservadoras democráticas, o cristianismo social católico e evangélico e as sociais-democracias, e considerar retomar nesta época o impulso propulsor ao desenvolvimento sustentável econômico com níveis apreciáveis ​​de igualdade e de acumulação da civilização brasileira. Deverá estar aberto ao diálogo com os setores da centro-direita que abraçaram sem reservas. Deverá ser um pilar de uma dialética construtiva e da criação de acordos que tirem o país da sua letargia de mais de uma década.

O caminho fácil que aí está é juntar-se ao que já existe, mas nessa hipótese um grande setor do país não teria representação e seguirá a votar de forma volátil, surfando para no decrescimento ou crescimento dos extremos que compõem esses setores, para os quais a democracia nada mais é do que uma variável tática com a qual devem conviver até que sejam criadas as condições necessárias que lhes permitam avançar para um futuro que não definem, mas que cheira ao autoritarismo eletivo.

O caminho difícil, cuja chegada a um porto não está de forma alguma garantida, é aquele que procura reconstruir a política da Frente Democrática reformadora, com os olhos postos no futuro, capaz de fortalecer a democracia como um todo. Bem sabemos que é um caminho que carece de glamour, será uma caminhada difícil, mas é a que tem a grandeza da civilização brasileira.

 

9 de abril de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Vide https://votopositivo-cg.blogspot.com/2023/08/serie-estudos-lembrancas-sobre.html

 

Nenhum comentário: