Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Passaram 30 anos desde a
medonha efeméride do 30º aniversário da tragédia para a nossa democracia que
significou o golpe de Estado de 31 de março de 1964.
Coube ao saudoso Luiz
Werneck Vianna
(1938-2024) dar sentido aquele momento[2].
Apenas 9 anos de governos democráticos se passaram e os efeitos da longa
ditadura que os precedeu estavam mais próximos.
Contudo, o tom do seu
sentido foi sereno. Eram tempos em que o mundo atravessava momentos mais
esperançosos, o processo de globalização ainda estava longe do seu contexto tristonho
e um certo clima mais próximo da convivência democrática ainda predominava no
continente.
O Brasil estava no final do
segundo governo democrático e nascido de um impeachment. Ambos os governos,
de Sarney e de Itamar, buscaram o crescimento econômico à procura de uma
expansão do bem-estar social, do reforço do funcionamento da democracia, das
virtudes republicanas e à expansão das liberdades democráticas e das garantias
dos direitos das humanidades conforme programaticamente expressas na nossa
jovem Constituição de 1988.
O caminho escolhido pelo
governo do impeachment de 1992 demorou até encontrar o avanço gradual
com o Plano Real que abriu uma nova esperança.
O sentido ofertado por Luiz
Werneck Vianna
aquela macabra lembrança teve sobretudo a ver e a destacar
que o Brasil sob a democracia mesmo com seus percalços era infinitamente melhor
do que o Brasil sob a ditadura e esse foi o profundo significado de recordar
aquela tragédia sangrenta com toda a dor que acarretou.
É por isso que era
importante combinar elementos muito diversos para fazê-lo. Em primeiro lugar, a
preservação da memória, a busca dos desaparecidos como tarefa permanente, a
exigência de punição pelos crimes cometidos, a reparação aos torturados e às
famílias das vítimas. Ao mesmo tempo, tratava-se de normalizar as relações com
as Forças Armadas como instituições permanentes da República, governadas pela
obediência ao poder constitucional e civil democraticamente constituído e pelo
reconhecimento de responsabilidades partilhadas na criação de uma situação
política não mais divisora e polarizada que levou a 1964.
No Golpe de 1964, está contido
a sua fundamental inaceitabilidade e junta-se o fato de aqueles que o
perpetraram, alegando a defesa de uma democracia supostamente em perigo, terem
em poucos dias a certeza de que não havia Forças Armadas nas sombras e
controlaram todo o território nacional, mas continuaram aprisionando, assassinando,
torturando e desaparecendo com cidadãos.
Por fim, é claro que a
intenção dos seus líderes não era “colocar as coisas em ordem”, mas sim mudar a
“ordem das coisas”, não precisamente num sentido democrático, mas sim
estabelecer uma ditadura que durou mais de 20 anos e que suprimiu todas as liberdades
em especial as civis e políticas.
Será então um erro apontar
que houve responsabilidades partilhadas no processo de divisão, polarização e
crise que precedeu o golpe?
A resposta é negativa. Os
principais partidos que compunham o Governo João Goulart, para além das suas
aspirações de justiça social, não tinha uma ideologia comunista tampouco marxista-leninista.
Agiu absorto aos anos da
Guerra Fria, sem considerar a posição que os EUA adotariam, junto com a extrema
direita, antes mesmo do governo começar.
Aos olhos de hoje, do ponto
de vista teórico e histórico, não havia nenhum programa e seguiu a triste sina
da nossa “proverbial inorganicidade”. Nenhuma democracia é capaz de navegar sem
balizas minimamente definidas e claras.
Isto contribuiu para a
impossibilidade de um acordo de governabilidade à época com as forças políticas,
desde o início do governo em 1961 como antes do fim abrupto de 1964. Dentro do
próprio governo João Goulart havia divergências profundas sobre como sair da
crise e evitar um mal maior como o que nos abateu. No final foi a tragédia. Sem
democracia, terminamos quase sem democratas.
Este ano, quando recordamos os
60 anos da tragédia, vivemos tempos muito mais tumultuados no mundo, o impulso
propulsor no Brasil foi perdido em 2018, e recuperá-lo será complexo e levará
tempo.
Temos um governo que nesta
quadra histórica tem apoios restritos e que comete erros com demasiada
frequência e uma oposição que tende a endurecer o seu papel à medida que se
sente reforçada. O tom da política fica cada vez mais enrijecido e isso
bloqueia acordos para o avanço do país.
Mais do que nunca, é necessário afirmar a convivência republicana de sua Frente Democrática vitoriosa em 2022, dialogando com os adversários para que não se elimine os acordos necessários para avançar e fazer dos sofrimentos da memória da “hecatombe” uma base sólida para não repetir os erros do passado. Esse deve ser o significado desses 60 anos.
22 de março de 2024
[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
[2] Luiz
Werneck Vianna. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 2, n. 1,
30 de junho de 1994: 7-10. Publicado em https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/20/22
Nenhum comentário:
Postar um comentário