segunda-feira, 1 de abril de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 12


 Da esquerda para a direita, o presidente Goulart e os generais Osvino Ferreira Alves e Amaury Kruel

Sessenta Anos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Passaram 30 anos desde a medonha efeméride do 30º aniversário da tragédia para a nossa democracia que significou o golpe de Estado de 31 de março de 1964.

Coube ao saudoso Luiz Werneck Vianna (1938-2024) dar sentido aquele momento[2]. Apenas 9 anos de governos democráticos se passaram e os efeitos da longa ditadura que os precedeu estavam mais próximos.

Contudo, o tom do seu sentido foi sereno. Eram tempos em que o mundo atravessava momentos mais esperançosos, o processo de globalização ainda estava longe do seu contexto tristonho e um certo clima mais próximo da convivência democrática ainda predominava no continente.

O Brasil estava no final do segundo governo democrático e nascido de um impeachment. Ambos os governos, de Sarney e de Itamar, buscaram o crescimento econômico à procura de uma expansão do bem-estar social, do reforço do funcionamento da democracia, das virtudes republicanas e à expansão das liberdades democráticas e das garantias dos direitos das humanidades conforme programaticamente expressas na nossa jovem Constituição de 1988.

O caminho escolhido pelo governo do impeachment de 1992 demorou até encontrar o avanço gradual com o Plano Real que abriu uma nova esperança.

O sentido ofertado por Luiz Werneck Vianna aquela macabra lembrança teve sobretudo a ver e a destacar que o Brasil sob a democracia mesmo com seus percalços era infinitamente melhor do que o Brasil sob a ditadura e esse foi o profundo significado de recordar aquela tragédia sangrenta com toda a dor que acarretou.

É por isso que era importante combinar elementos muito diversos para fazê-lo. Em primeiro lugar, a preservação da memória, a busca dos desaparecidos como tarefa permanente, a exigência de punição pelos crimes cometidos, a reparação aos torturados e às famílias das vítimas. Ao mesmo tempo, tratava-se de normalizar as relações com as Forças Armadas como instituições permanentes da República, governadas pela obediência ao poder constitucional e civil democraticamente constituído e pelo reconhecimento de responsabilidades partilhadas na criação de uma situação política não mais divisora e polarizada que levou a 1964.

No Golpe de 1964, está contido a sua fundamental inaceitabilidade e junta-se o fato de aqueles que o perpetraram, alegando a defesa de uma democracia supostamente em perigo, terem em poucos dias a certeza de que não havia Forças Armadas nas sombras e controlaram todo o território nacional, mas continuaram aprisionando, assassinando, torturando e desaparecendo com cidadãos.

Por fim, é claro que a intenção dos seus líderes não era “colocar as coisas em ordem”, mas sim mudar a “ordem das coisas”, não precisamente num sentido democrático, mas sim estabelecer uma ditadura que durou mais de 20 anos e que suprimiu todas as liberdades em especial as civis e políticas.

Será então um erro apontar que houve responsabilidades partilhadas no processo de divisão, polarização e crise que precedeu o golpe?

A resposta é negativa. Os principais partidos que compunham o Governo João Goulart, para além das suas aspirações de justiça social, não tinha uma ideologia comunista tampouco marxista-leninista.

Agiu absorto aos anos da Guerra Fria, sem considerar a posição que os EUA adotariam, junto com a extrema direita, antes mesmo do governo começar.

Aos olhos de hoje, do ponto de vista teórico e histórico, não havia nenhum programa e seguiu a triste sina da nossa “proverbial inorganicidade”. Nenhuma democracia é capaz de navegar sem balizas minimamente definidas e claras.

Isto contribuiu para a impossibilidade de um acordo de governabilidade à época com as forças políticas, desde o início do governo em 1961 como antes do fim abrupto de 1964. Dentro do próprio governo João Goulart havia divergências profundas sobre como sair da crise e evitar um mal maior como o que nos abateu. No final foi a tragédia. Sem democracia, terminamos quase sem democratas.

Este ano, quando recordamos os 60 anos da tragédia, vivemos tempos muito mais tumultuados no mundo, o impulso propulsor no Brasil foi perdido em 2018, e recuperá-lo será complexo e levará tempo.

Temos um governo que nesta quadra histórica tem apoios restritos e que comete erros com demasiada frequência e uma oposição que tende a endurecer o seu papel à medida que se sente reforçada. O tom da política fica cada vez mais enrijecido e isso bloqueia acordos para o avanço do país.

Mais do que nunca, é necessário afirmar a convivência republicana de sua Frente Democrática vitoriosa em 2022, dialogando com os adversários para que não se elimine os acordos necessários para avançar e fazer dos sofrimentos da memória da “hecatombe” uma base sólida para não repetir os erros do passado. Esse deve ser o significado desses 60 anos.

22 de março de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

[2] Luiz Werneck Vianna. 1964. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 2, n. 1, 30 de junho de 1994: 7-10. Publicado em https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/20/22

Nenhum comentário: