quinta-feira, 22 de agosto de 2024

VAMOS AJUDAR NÚMERO 003 - PRECARIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

Por um financiamento sustentável para o ensino superior

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Para além da questão de como resolver a questão do contingenciamento orçamentário, que permanece desconfortavelmente em aberto, a questão subjacente do financiamento do ensino superior (ES) permanecerá presente na agenda estratégica do país. Com efeito, trata-se de descobrir como podemos garantir – com uma perspectiva futura – um financiamento sustentável para a nossa vida universitária.

Atualmente, a taxa bruta de participação brasileira no ensino superior é uma das mais altas do mundo. Nossos percentuais estão colados a média da praticada pelos países da OCDE. Ou seja, o acesso à vida universitária tornou-se acessível, gerando reações entre aqueles que preferem concebê-lo tão somente como capital que pode produzir retorno ao mercado de trabalho. Tanto fontes estatais como não-estatais contribuem para este enorme esforço.

Qualquer futuro esquema de financiamento da vida universitária deve partir, portanto, do fato de já ter sido alcançado um elevado nível de investimento, especialmente considerando que a despesa nos níveis mais baixos (ensino infantil, pré-escolar e básico) é comparativamente baixa. O dilema histórico do cobertor curto segue seu curso.

Entretanto, não há espaço para estatizar sonhos. O Brasil atingiu um nível mais elevado de investimento exclusivamente em virtude de ter um sistema misto de provisão.

Esta característica mista está profundamente enraizada na economia política do sistema: permite mobilizar um grande volume de recursos; garante acesso; apoia uma rede institucional diversificada e plural; oferece programas diferenciados em três níveis (SISU, PROUNI e FIES). Garante uma cobertura territorialmente descentralizada e apoia uma comunidade científica altamente produtiva a nível comparativo regional.

Um tal esquema – custos mistos e partilhados – tem justificações poderosas. Primeiro, o Estado, pelo SISU, não tem condições de manter um ensino superior de acesso universal e de qualidade garantida. Em segundo lugar, para sustentar este padrão seria necessário aumentar continuamente o gasto na produção, transmissão e aplicação de conhecimento. Terceiro, o ES gera simultaneamente benefícios públicos e privados, o que justifica que tanto a sociedade como um todo (contribuintes) como os beneficiários individualmente, contribuam para cobrir os custos desta função pública crucial.

Na verdade, a sociedade se beneficia de diversas formas com um ensino superior com ampla cobertura e qualidade. Por exemplo, terá um maior número de profissionais encarregados de serviços essenciais, como saúde, educação escolar, segurança cidadã, judiciário, legislativo, comunicações, Concurso Público Nacional Unificado e outros. Da mesma forma, contará com uma plataforma de conhecimento técnico-científico em permanente renovação e pessoas especializadas para a sua gestão. Melhora a competitividade histórica empresarial e das organizações. E será incentivada a educação cidadã, fator decisivo para a deliberação informada de políticas públicas.

Para tal, os Estados e as sociedades democráticas protegem a autonomia das universidades, instituições que, por sua vez, devem garantir a liberdade acadêmica e o pluralismo deliberativo no seu interior. Nem cancelamentos, nem acampamentos, nem ocupações, nem perseguições ou universidades monitorizadas cabem no espaço cultural do ES. Quando ocorrem, colocam em risco o valor público do conhecimento.

Mas a ES também produz benefícios privados de natureza individual. O nível salarial e a rentabilidade do capital humano adquirido são a sua expressão imediata, mas não a única. Devem também ser considerados a socialização dos valores e da ética profissional, uma melhor compreensão do mundo e de si mesmo, a participação em redes de pares e não só, o cultivo de uma visão não puramente paroquial da contemporaneidade, um sentido de responsabilidade para com a natureza e o desenvolvimento do senso crítico.

A partir do momento em que reconhecemos a geração – pela economia social – de valor público e privado, individual e coletivo, a partilha de custos também é legitimada como critério norteador deste sistema. O Brasil possui um esquema poderoso que envolve diversas fontes estatais e privadas e dezenas de instrumentos para alocar recursos a instituições e estudantes.

A operação deste esquema misto apresenta resultados. A qualidade das nossas instituições de ensino superior melhorou. Nossa pesquisa acadêmica, apesar da escassez de recursos, apresenta nível positivo de produtividade e impacto. Além disso, uma parte substancial está orientada para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Ao mesmo tempo, nosso sistema ainda goza de saúde financeira e a proporção de matrículas encontradas em instituições com perfis de risco é baixa. Entretanto, isso já não se pode dizer do ensino infantil, do pré-escolar e de toda a educação básica.

Ainda assim, existem questões críticas que precisam ser abordadas. A falta de uma Política Nacional de Educação Superior associada a uma concepção do gratuito, combinada com a regulação do MEC e afins estaduais, cria pressões onerosas sobre as instituições e dificulta o seu desenvolvimento. O sistema de garantia de qualidade aumenta os custos das funções institucionais sem que sejam disponibilizados recursos para esse fim. Os gastos com P&D são muito baixos – um dos mais baixos entre os países da OCDE – intensificando a competição entre pesquisadores, disciplinas, núcleos e áreas de conhecimento.

Também o atual regime de créditos estudantis, dos quais o PROUNI e FIES são peças, já deveria ter sido modificado há muito tempo. É insustentável, mas segue funcionando devido à falta de clareza diagnóstica. É urgente desfazer este nó, incluindo o não pagamento e as dívidas acumuladas, e criar um esquema de crédito – ou outro de manutenção de custos – para estabelecermos uma política de financiamento sustentável para o ensino superior.

 

22 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

sábado, 17 de agosto de 2024

SÉRIE ESTUDOS - DISCIPLINA NA HIPERMODERNIDADE


Propósito Educacional

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Os debates sobre os problemas e dificuldades mais imediatas da educação geralmente adiam a discussão substantiva sobre o seu propósito nas atuais circunstâncias históricas. No entanto, ambos os planos estão intimamente relacionados entre si.

As principais questões preocupantes em relação à educação hoje no Brasil – como controlar a violência escolar, melhorar o desempenho acadêmico, alcançar maior equidade e garantir uma melhor coexistência – estão efetivamente ligadas ao propósito educativo das sociedades contemporâneas. Qual é esse propósito? Em suma: qualificar as pessoas com as competências e conhecimentos necessários para uma vida produtiva, integrá-las no mundo das normas e valores típicos da coexistência em sociedades diversas e em mudança, e dotá-las de capacidades para agir de forma responsável. Historicamente, a educação aparece – juntamente com a lei, entre outras expressões da civilização – como um meio poderoso para debelar a agressividade social e socializar os indivíduos nos valores comunitários. Ensina, portanto, como conviver, como autorregular os impulsos destrutivos e como reconhecer a diversidade. Implica aprender que qualquer ordem baseada na liberdade das pessoas significa também submeter-se às regras, às disciplinas e às disposições das autoridades democraticamente legítimas em todas as dimensões da vida individual e coletiva.

É fato, porém, que esta finalidade educativa está hoje comprometida e a sua materialização é dificultada por fatores de natureza muito díspares.

No que diz respeito ao contexto social externo, a educação – institucional e não só formal – desenvolve-se em condições adversas. Os níveis de agressividade social aumentam, o crime se espalha e se torna mais organizado, são inúmeras as tecnologias que facilitam as ações criminosas. Pelo contrário, as comunidades sofrem erosão na sua coesão, os laços sociais são enfraquecidos, as âncoras tradicionais de existência desaparecem e os Estados enfrentam dificuldades crescentes em manter e exercer uma vida cidadã.

Por sua vez, no contexto interno e intersubjetivo das pessoas, onde a finalidade educacional busca refletir objetivos e valores culturais que fazem parte do autocontrole e autogoverno das pessoas, sua disposição de viver uma vida com sentido, tal propósito esbarra na perda de sentido dos valores (niilismo), na incapacidade de lidar com os desejos e impulsos e na ausência de normas sociais ou na sua degradação (anomia).

A crise da autoridade da docência desempenha um papel fundamental neste contexto, uma vez que dela depende a realização de qualquer propósito educacional. No entanto, hoje esta autoridade está localizada no ponto preciso onde se juntam um contexto social externo deteriorado e um contexto intersubjetivo interno danificado.

A chamada crise de autoridade da docência não é, portanto, um problema técnico, ou de mera disfuncionalidade ou perda de eficácia. Pelo contrário, é reflexo de uma profunda alteração cultural, relacionada com a secularização radical da vida. Desde Durkheim, esta circunstância – o colapso do sentido de autoridade legítima – tem sido diagnosticada como um mal-estar cultural.

Estas são, então, as razões fundamentais por detrás das atuais preocupações sobre a mitigação e a tão desejada erradicação da violência e a necessidade de melhorar a coexistência escolar.

Poder-se-ia pensar que as outras duas preocupações – desempenho acadêmico e equidade – são mais conhecidas e, portanto, também seriam mais fáceis de processar; isto é, ser diretamente atendido por políticas públicas apropriadas.

Bem, as políticas testadas em ambas as áreas – desempenho e equidade – produzem apenas um progresso limitado e têm uma maturação lenta. O que provoca frustração, desilusão e exasperação crescente com tais políticas, qualquer que seja a sua orientação.

Superficialmente, aparecem invariavelmente como dois lados da mesma moeda: melhorar a aprendizagem e distribuí-la de forma mais equitativa. Em essência, eles apontam, de fato, para uma causalidade idêntica. O desempenho acadêmico é desigual porque as trajetórias dos corpos discentes são desiguais. Essa trajetória desde tenra idade impacta em grande medida os desenlaces das pessoas.

Intersubjetivamente, esta percepção social afeta, sobretudo, moças e rapazes e jovens de lares com dotações desiguais de capital econômico, social e cultural. Desde cedo, eles vivenciam as diferenças de classe como uma ferida oculta como mostrou Richard Senett; uma desvantagem avilta, uma exclusão injustificada que afeta as motivações, a autoconfiança, as expectativas e os projetos de vida. Se tais sintomas não forem abordados precocemente, atenuados e enfrentados, o sistema escolar acaba por reproduzi-los, instalando uma espiral de desvantagens, que não são resolvidos com um pé de meia furada.

Em tais circunstâncias, a própria noção de aptidão e os seus pressupostos comportamentais – esforço pessoal e perseverança – dissipam-se no ar. Os fundamentos da coexistência civilizada enfraquecem e/ou desaparecem; não só na escola. Isto é especialmente verdade no quadro de uma hipermodernidade como ilustra Marco Aurélio Nogueira em A democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto (Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2023) que promete e eleva, como horizonte cultural, a igualdade de direitos e dignidade das pessoas, a distribuição merecida de oportunidades e o reconhecimento do esforço pessoal como única fonte de diferenciação legítima das trajetórias de vida.

Todo o quadro das sociedades democráticas hipermodernas é, portanto, apoiado por um propósito educativo que está em constante tensão com contextos de condições objetivas e subjetivas que dificultam a sua realização. Se estes condicionantes não forem erradicados, o objetivo educativo – promover a paz e a justiça social numa coexistência civilizada – não poderá ser alcançado.

 

11 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.

domingo, 4 de agosto de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 055 - AGOSTO E ILIBERALISMO

A Venezuela & Nós

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Conheci vários venezuelanos e venezuelanas migrantes em outubro de 2021, por conta da conferência livre organizada pela Escola Estadual Fazenda Paraíso, em Espera Feliz, numa etapa preparatória para a construção do 1º Plano Estadual de Políticas Públicas para Refugiados, Migrantes, Apátridas e Retornados de Minas Gerais. Foi uma iniciativa cidadã muito impressionante.

Para um carioca acostumado ao frenesi metropolitano, participar daquele evento democrático naquela cidade foi como estar ao vivo em um filme de Nelson Pereira dos Santos.

Os anos de grande crescimento econômico para a Venezuela já eram coisas de um passado longínquo. A Caracas que ostentará arranha-céus urbanos que se cruzavam de forma caprichosa não existe mais.

A crise do petróleo da década de 1970 transformou a Venezuela num dos países mais ricos da América. A queda deste boom em 1983 levou a uma crise econômica prolongada, mas tanto durante os anos de auge como nos anos magros foram realizadas reformas econômicas e sociais, enfrentou-se a guerrilha de inspiração cubana nos anos 1960 até conseguir sua desmobilização nos anos 1970, tendo resistido à onda de ditaduras militares da América do Sul, tornando-se um oásis de refúgio e liberdade para muitos migrantes, ao mesmo tempo que não houve capacidade de evitar a corrupção generalizada durante os bons tempos e o aumento do crime e da violência nos tempos difíceis.

Embora no seu conjunto tenham sido anos de progresso, a distribuição medíocre levou a um crescimento do descontentamento que culminou em protestos sociais que deixaram uma marca profunda com o "Caracaço" de 1989. Isto desencadeou o ativismo militar e uma tentativa de golpe de Estado em 1992, chefiado por um tenente-coronel com tendências revolucionárias e devoto de Fidel Castro, para quem a continuidade das instituições democráticas não tinha valor. Seu nome era Hugo Chávez.

Fracassado o golpe, Chávez construiu um caminho eleitoral entendendo que só chegaria ao poder por esses meios e conseguiu isso em 1999. Os mesmos setores democráticos que haviam caído em desuso pensavam que talvez no governo Chávez avançassem em direção ao progresso democrático, mas os seus planos eram outros, movia-se com astúcia e habilidade, tinha a maioria dos votos e o apoio das armas, a sua revolução levaria o enigmático nome de Socialismo do século XXI, enigma que levou para o túmulo, mas isso significou desmantelar a democracia a partir de dentro do poder.

Como é habitual nas aventuras de reconstrução, a primeira coisa que fez foi aprovar por referendo a mudança do nome do país com uma visão ao mesmo tempo nacionalista e com uma estranha ideia de Bolívar, instituindo a República Bolivariana da Venezuela.

Nacionalizou indústrias-chave e com a nova bonança do petróleo realizou mobilizações sociais, minou as instituições democráticas e fez melhorias sociais, atacou histrionicamente os EUA em nome de um anti-imperialismo anacrônico. Ele desenvolveu um apoio maternal a uma Cuba que mal respirava e fez da Rússia, da China e do Irã os seus interlocutores favoritos no mundo.

Na América, ele estendeu um apostolado do petróleo e apoiou tendências semelhantes às suas em vários países que, em graus variados, abraçaram o seu bolivarianismo. Na verdade, nenhum deles se saiu bem e o fracasso os uniu mais do que a revolução.

Na Venezuela, os processos eleitorais tornaram-se cada vez mais suspeitos e a economia foi pelo ralo. Sete milhões de venezuelanas e venezuelanos fugiram para o estrangeiro, incluindo grupos criminosos, dada a carência e pobreza do mercado interno. A corrupção regressou ao seu auge, desta vez nas mãos de novos grupos civis e militares.

O autoritarismo aprofundou-se e as violações dos direitos humanos aumentaram.

Quando Chávez morreu, foi sucedido por Nicolás Maduro, o seu homem de confiança, agressivo, com insultos fáceis e um olhar de peixe morto, sem a sua astúcia nem seu carisma, com um pensamento tacanho, que venceu uma eleição muito apertada.

Dedicou-se a diminuir qualquer brecha democrática, terminou de consolidar a ditadura, mas não conseguiu suprimir, porém, a trajetória eleitoral com que chegou ao poder. A oposição foi reprimida, presa e espancada, mas continuou a existir para além de todos os obstáculos e abusos.

Foi assim que aconteceram as eleições de domingo passado, nas quais a oposição, contra todas as probabilidades, o enfrentou, apoiando um homem decente como candidato substituto do líder banido.

Já sabemos o que aconteceu, um manto de abusos, manobras, imprecisões e ameaças parece ter transformado uma ampla vitória da oposição numa vitória fantasiosa do governo em que nem eles acreditam. Tudo indica que os números fornecidos por seu governo que nunca fala a verdade correspondem a uma ação fraudulenta que ficará na história da antidemocracia. Nenhum país democrático, sob qualquer forma, concordou com esses absurdos, nem mesmo o Brasil, e devemo-nos sentir orgulhosos disso.

Num mundo tão polarizado, onde as tendências autoritárias seguem a crescer e a proteger os seus pares, o regresso da democracia na Venezuela enfrenta um caminho difícil porque o despotismo não vê futuro fora do poder, mas muito foi construído para baixar as armas agora. É preciso comprovar o saque, mesmo sob ameaça.

Uma questão que não pode ser evitada surge neste momento e é válida também para nós no Brasil: é possível, é correto, é consistente, é aceitável que aqueles que formaram sinceramente a Frente Democrática vitoriosa em 2022 possam caminhar de braços dados com aqueles que são solidários com a barbárie antidemocrática? Não estou falando de coincidências específicas que são a essência da práxis política, estou me referindo a uma construção estratégica duradoura.

Está claro que em algum momento isso deverá exigir reflexão, esse emparelhamento pode dar frutos imediatos nas eleições de 2024, mas sempre leva a um emaranhado mefistofélico, que leva à perda da alma.

 

3 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.



 

SÉRIE ESTUDOS - AGOSTO E OS INTELECTUAIS

 Paulo Gracindo e José Mayer na Minisérie "Agosto"

O tiro esquecido na História

Pablo Spinelli[1]

A atriz Fernanda Torres escreveu em uma crônica que está no seu segundo livro[2] que ao contrário de americanos (e nós) que ficaram por anos diante da Netflix esperando os episódios de House of Cards, uma série sobre os bastidores da política com intensa carga dramática, aqui, nossa cultura televisiva e cinematográfica não aborda com a mesma visceralidade os dramas da política institucional. E ainda sugere que o PMDB, atual MDB, serviria de grande mote para tramas muito mais ligadas ao pensamento de Maquiavel do que ao jardim da infância da moralidade binária entre o bem e o mal.

Aproveitando o mote, cumpre concordar e dialogar com a atriz que concorda com o signatário que faltam bons roteiros brasileiros sobre o drama pequeno-burguês no nosso cinema. Em 1993, a Rede Globo fez um dos maiores investimentos financeiros, tecnológicos e artísticos na adaptação da obra-prima literária de Rubem Fonseca[3], Agosto.

A obra adaptada[4] tem uma estética hollywoodiana dos anos 1940-1950, muito por influência de um dos grandes nomes do cinema brasileiro, Carlos Manga. Coube a Paulo José o clima de cinema noir à série que foi protagonizada por José Mayer, hoje cancelado, em uma inteligentíssima caracterização do amargo, sofrido, ulceroso Comissário Mattos (um trocadilho irônico, pois não mata ninguém). Vera Fisher faz a loira fatal e a então iniciante Letícia Sabatella faz a mestiça e ingênua Salete. Coube ao inesquecível José Wilker ser o líder dos vilões. Ainda no elenco pode-se ter o deleite de ver participações de Mario Lago, Paulo Gracindo (em sua última aparição), Elias Gleizer, Lima Duarte, Ary Fontoura, Othon Bastos, Carlos Gregório, Lúcia Veríssimo, Norton Nascimento e dois destaques, Carlos Vereza, como o policial linha-dura e Tony Tornado, um diamante de atuação como Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas que era conhecido como o “Anjo Negro”.

A série, a primeira a usar computação gráfica no país para reconstruir o Palácio Monroe e tirar os aparelhos de ar-condicionado do prédio que morava o jornalista e político Carlos Lacerda em Copacabana, tratou com esmero um dos momentos mais dramáticos do país; uma conjuntura muito difícil: o clima de polarização do país com o recuo do centro democrático, o PSD, brilhantemente personificado por Cláudio Mamberti, o senador Victor Freitas; o uso da retórica da intolerância capitaneada por Carlos Lacerda, homem de formação cultural que teria engulhos com os seus herdeiros do lava-jatismo, bacharéis de rala ignorância; a solução da política pela antipolítica, como demonstrado no atabalhoado atentado da Rua Tonelero contra Lacerda; a miopia das esquerdas trabalhista e comunista; os abusos da imprensa escrita e falada quanto ao que é fato e o que é opinião; o processo de insular que Getúlio Vargas, mais idoso e sem forças para reagir, um Biden avant la lettre.

Dito isso, cumpre lembrar que a série teve seu primeiro capítulo em 24 de agosto de 1993, uma forma de inaugurar os 40 anos do suicídio de Vargas que seria lembrado no ano seguinte. Os tempos eram do governo Itamar Franco, um político que defendia ao seu modo o nacional-desenvolvimentismo. Em 1994 houve uma grande presença de jovens impulsionados por professores, pela minissérie, pela mídia, no Museu da República para ver o palco dos acontecimentos daquele fatídico agosto. Da mesa da última reunião ao pijama listrado chamuscado pela bala de calibre 22 no coração havia uma imersão no cenário varguista. No ano seguinte, chegaria ao poder, eleito em primeiro turno, um professor que dizia que seu governo seria o coroamento do fim da Era Vargas, que de forma cambaleante, resiste.

Resiste e agoniza. Pois se é verdade que na Era Vargas houve a instrumentalização da educação de crianças e adolescentes dentro de um projeto nacional-popular com cacoetes fascistóides da época da Pátria Educadora, a pergunta que se faz é: o que os Ministérios da Educação e de Cultura e a academia têm a propor para se debater esse momento agonístico da política brasileira? Ficarmos restritos à edições e reedições da academia, a documentários na Rede Brasil, reuniões e debates de velhinhos no Zoom/Youtube e artigos de opinião em jornais e revistas não serão suficientes para a formação da educação cívica, debate do pluralismo de ideias e avanço das ciências humanas e sociais[1] no país.  Agosto de 1954 teve em menos de um mês conspirações, atentado e suicídio, portanto, seria de bom tom a partir dele se pensar o lema da união e reconstrução do país de forma responsável e eficaz.



[1] Doutorando em PPGCP-UNIRIO e professor da educação básica das cidades de Saquarema e Rio de Janeiro.

[2] Fernanda Torres. Sete anos: crônicas. Companhia das Letras, 2014.

[3] Rubem Fonseca foi um dos escritores mais lidos no país desde os anos 1970. Vários de seus contos são clássicos. Teve várias adaptações para a TV e o cinema, como a série Mandrake (HBO) e o filme A Grande Arte. A sua experiência como policial e roteirista de filmes anticomunistas no IPES/IBADE pré-golpe de 1964 não o impediram de ter sido censurado por atentado aos bons costumes segundo o regime de exceção da época. Na nossa concepção, Fonseca faz uma mudança de rumo na escrita e no seu passado com o catártico Agosto, pois declaradamente nunca apoiara o golpe. Rubem Fonseca morreu por COVID-19 em 15 de abril de 2020 sem nenhuma nota de pesar do Governo Bolsonaro.

[4] Disponível na Globoplay.

[5] Para melhor debate, ver o artigo Desafio das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, de Ricardo J. de A. Marinho publicado em https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/07/boletim-brasilia-conection-bbc-049.html  (14 de julho de 2024).


sábado, 3 de agosto de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 054 - ELEIÇÕES CARIOCAS

 Deputado Estadual Eduardo Cavalieri e a Deputada Estadual "Tia" Ju
Da ALERJ para o xadrez das eleições cariocas

As escolhas políticas na sucessão carioca

Vagner Gome de Souza[1]

 

Nos tempos de ausência da democracia, o Vice-presidente Aureliano Chaves afirmou que o “Vice não é nada!” um momento que provavelmente marcaria seu afastamento do regime militar até apoiar a Aliança Democrática sob a cabeça de chapa de Tancredo Neves que teve a consciência política da moderação ao convidar José Sarney para seu companheiro de chapa. Diferente do bordão de Jô Soares (“Vice não é nada. Tirando Aureliano, que fala, o resto, ó!…”); numa eleição majoritária a escolha da candidatura a Vice pode em muito contribuir para influenciar os resultados eleitorais. O comportamento político e eleitoral da sociedade pode ser observado nesses momentos de anúncio. Muitas vezes a escolha se faz de uma forma “mecânica” o que não indica que tenha resultados perceptíveis.

Não há o melhor momento para o anúncio de uma candidatura a Vice. A dobradinha Lula-Alckmin, que uniu dois adversários políticos numa Frente Democrática, foi anunciada muito antes das convenções partidárias para acalmar os prantos de “gregos e troianos” que teimavam na linha política da Frente de Esquerda com a falcatrua da Frente Ampla. Em muitos casos, por conta de correlações partidárias complexas ou para alçar a dinâmica da campanha eleitoral o anúncio da candidatura a Vice se faz quase que ao limite do que se é permitido pela legislação eleitoral. O fundamental é que os dois nomes tenham sintonia política e não seja uma imposição de circunstâncias. A bela bibliografia política do candidato a Vice muitas vezes não soma votos a um processo político que já esteja comprometido como vimos na sucessão estadual do Rio de Janeiro numa das candidaturas de oposição.

A clareza programática também se faz necessária ao ponto que crie uma sinergia de forças políticas renovadoras até as eleições. Portanto, muitas vezes, buscar um Vice pela tabela do perfil do eleitorado é um risco político se não houver a percepção do eleitor de que aquela dobradinha soar como uma escolha artificial por indicação de um nome externo ao processo. Esse é um dos desafios de uma das candidaturas de oposição a sucessão carioca ao considerar que o “peso eleitoral” do segmento evangélico, negro e feminino transfere votos para sua candidatura pela escolha de uma Deputada Estadual sob o patrocínio de um antigo Presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, bons nomes políticos muitas vezes surgem em contextos políticos desfavoráveis uma vez que se antes o questionamento era em relação ao desconhecimento da cultura política carioca do adversário da oposição agora se acrescenta com a indicação feita pelos “Laboratórios de Consultorias Políticas” sem levar em consideração aos ensinamentos de Maquiavel.

Eleições ainda têm muito de elementos da “fortuna” e também da “virtú”. Nas palavras do pensador de Florença, “o primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta.” Esse é um fator determinante nas escolhas políticas na sucessão carioca porque temos que demonstrar que passamos pelo “furacão” das contas públicas municipais, mas o cenário no futuro não é de calmaria. Portanto, a experiência passada para uma equipe de Governo é determinante para que o Rio de Janeiro não busque atalhos numa nacionalização do voto que simplesmente nos empurraria para a ausência do debate programático. Sabemos em muito que alguns opositores se movem pela ganância por negociações no futuro.

Consequentemente, a candidatura à reeleição de Eduardo Paes num conjunto de forças políticas aliadas suprapartidárias fez uso da sabedoria do autor de O Príncipe uma vez que “quando um homem é bom amigo, também tem amigos bons.” O anúncio de seu companheiro de chapa demonstra muito a prudência da política associada a possibilidade de renovação dos quadros políticos carioca com nomes que sejam abertos a ouvir a experiência. Para além de uma configuração “puro sangue”, observamos sim a mais pura grande política na cultura política carioca diante dos desafios de uma cidade que será Capital Mundial do livro em 2025. Se os livros são veículos essenciais para acessar, transmitir e promover a educação, a ciência, a cultura e a informação, esse é um caminho a se aprofundar no debate eleitoral carioca.



[1] Doutorando em Ciência Política do PPGCP-UNIRIO.


sexta-feira, 2 de agosto de 2024

SÉRIE ESTUDOS - O DESAFIO DA FORMAÇÃO DE NOVOS PROFESSORES

A docência que queremos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O desempenho educativo das nossas crianças e jovens nos testes nacionais e internacionais mostra uma estagnação em níveis insatisfatórios. Há até retrocessos relevantes como se viu no Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS) e nas suas provas de compreensão da leitura para o quarto ano.

Essa realidade já era observada antes da pandemia. As explicações disponíveis não são claras. Ainda assim, sabemos que bons sistemas educativos partilham a sua capacidade de atrair pessoas competentes para o ensino. Em outros aspectos eles têm grandes diferenças. A enorme heterogeneidade observada na capacidade dos professores e professoras em impactar a aprendizagem de crianças e jovens deveria incentivar essa busca. Conseguir um conjunto de professores e professoras eficazes deve, portanto, ser um objetivo do nosso país. Isto, apesar dos múltiplos esforços, inclusive com mais um Parecer (CNE/CP N.º 4/2024) do Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação (CNE) que estabelece novamente Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Formação Inicial em Nível Superior de Profissionais do Magistério da Educação Escolar Básica – a nova carreira docente é talvez o mais significativo de todos – não parece estar a ser alcançado no nosso país.

Assim, por exemplo, nos ingressos ao longo do século XXI das pessoas matriculadas em Licenciaturas e em Pedagogia pelo processo regular vieram da maioria absoluta de notas limítrofes inferiores ponderadas para classificação. Embora estes números devam ser analisados com cautela - nas décadas do século XXI novas instituições de ensino superior (IES) foram incorporadas aos sistemas de admissão e os limites de candidaturas a elas foram modificados, entre outros fatores - o cenário mais provável é que o ingresso em Licenciaturas e Pedagogia nesses últimos decênios tenha se tornado menos seletiva (aliás, se fossem consideradas apenas as mesmas IES, com todas as limitações que isso tem a seletividade relativa para esses cursos caía).

Esta análise pressupõe que os professores e professoras eficazes tendem a serem aqueles e aquelas com maior aptidão acadêmica. No entanto, mesmo com essas evidências é preciso cautela a este respeito. Mas é um fato, como tem sido demonstrado planetariamente, que os países com bons sistemas educativos tentam selecionar os seus professores e professoras a partir desta amostra. Ao mesmo tempo, à medida que mais informações e dados se tornam disponíveis, os estudos começam a concluir que a formação acadêmica é importante para a eficácia de um professor e/ou professora. Perseverar, então, em mecanismos que garantam que pessoas com solidez acadêmica cheguem às salas de aula parece essencial.

Um primeiro impedimento para alcançar este objetivo pode ser o salário dos professores e professoras. Segundo o Panorama Mundial da Educação 2023 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil seria um dos países onde os salários dos professores em comparação com pessoas com estudos semelhantes têm um valor menor. Apenas os outros Estados desleixados com a educação apresentariam uma situação menos favorável para os professores e professoras.

Aliás, este não é o único fator que explica a dificuldade em atrair e reter bons professores e professoras. É uma profissão que perdeu estatuto, os programas de formação inicial e contínua não parecem ser tão atrativos para os jovens e as exigências impostas pela profissão são talvez superiores às esperadas pela juventude hodierna. Todos esses são fatores que estão obviamente interligados.

Se o país decidir investir mais na consecução deste objetivo, deve garantir uma estratégia republicana bem concebida com indicadores de progresso transparentes e amplamente partilhados democraticamente. Isto deve incluir um sistema de avaliação de professores e professoras melhor e mais exigente, alinhado com a aprendizagem dos alunos e alunas, a fim de garantir um conjunto eficaz de professores e professoras.

Se o país não escolher esses grandes eixos fundamentais para impulsionar o nosso sistema educativo nos próximos anos, o desempenho dele continuará a ser abaixo do medíocre e estaremos longe de criar as condições concretas para enfrentar as enormes mudanças tecnológicas, econômicas, culturais e sociais que estão afetando a vida em comum.

27 de julho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.

sábado, 27 de julho de 2024

SÉRIE ESTUDOS - 220 ANOS LUDWIG FEUERBACH

LUDWIG FEUERBACH, PRECURSOR DA CONTEMPORANEIDADE

Julio Lopes[1]

 

O filósofo Ludwig Feuerbach (28/7/1804 a 13/9/1872) vem tendo suas obras republicadas na Itália, Colômbia, Espanha, Argentina, Alemanha e Brasil, onde a coleção “Os Pensadores” (lançada pela Folha de São Paulo em 2021) recentemente incluiu seu livro A essência do Cristianismo, pouco tempo após sua inclusão no rol das grandes obras filosóficas por outras instituições acadêmicas estrangeiras.

O revival bibliográfico advém de trabalho meticuloso por Sociedade acadêmica internacional como pioneiro em assuntos contemporâneos: evolução das espécies e impulsos psíquicos humanos (posteriormente por Darwin e Freud), alianças da Humanidade com a Natureza e direitos animais (posteriormente por movimentos ambientalistas), orientações tecnológicas e paisagismo (conforme estudos emergentes no século XXI), diversidade identitária humana e direito individual à comunidade (como reivindicações identitárias atuais e progressistas ainda em face da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948).

Nem sempre foi assim. Ele passou longo ostracismo intelectual pela má sorte interpretativa por um de seus maiores admiradores: Karl Marx. Cujas correspondências com Feuerbach (outubro de 1843) buscaram recrutá-lo para a nascente causa comunista, mas decepcionou-se ao ponto de escrever 11 críticas em 2 páginas que jamais lhe entregou e ficaram guardadas até sua publicação em 1888, quando ambos já eram falecidos. Publicadas como Teses ad Feuerbach anexas ao livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã de Friedrich Engels, elas integraram o cânon marxista e fortaleceram a detração do filósofo, até por letargia política.

Nada mais longe da verdade. Feuerbach participou intensamente da Revolução de 1848 pela unificação democrática alemã antes, durante e depois dela. Desde 1840 postulava a liberdade política para a plenitude humana; foi candidato de democratas radicais ao primeiro Parlamento livremente eleito em território germânico; mesmo derrotado, mudou-se com a família para Frankfurt, onde se reunia a Assembleia eleita, para influir nos debates; e no descenso revolucionário, deu 30 palestras aos universitários progressistas e à população geral, em Heidelberg, quando a Universidade proibira sua presença. As quais compõem o livro Preleções sobre a essência da religião no qual o leitor brasileiro pode conhecer (desde 2009 quando foi publicado pela Editora Vozes) como concebia a História enquanto contraste ou alinhamento entre tendências progressistas e conservadoras – ambas sempre igualmente tão fortes quanto permanentes, embora sua opção política fosse a da máxima progressão em cada momento histórico.

Sua crítica da pobreza, pioneiramente concebida como privação tão material quanto cultural, o tornava igualitário somente para bens já fornecidos pelo ambiente natural (ar, luz, espaço, água), mas entendia sua superação generalizada por políticas governamentais que tornassem as tendências cooperativas e colaborativas, nos mercados, tão ou mais fortes que as competitivas. Em ambos os sentidos, defendeu soluções coletivas para generalizar alimentação saudável, ginástica segura, habitação confortável, assistência médica e educacional à população.

Marginalização ainda maior foi o entendimento de suas críticas às religiões como pregações ateísticas: cresce o reconhecimento de tais estudos para diálogo entre culturas e destacar nelas as virtudes cívicas para haver uma comunidade humana entre religiosos e ateus. Elas também advinham de sua periodização histórica, à medida que, para Feuerbach, as mutações religiosas integravam a passagem de eras humanas e a inaugurada pelo tema da liberdade política exigiria tanto distinguir a religiosidade, como consciência de dependência da natureza em geral, das doutrinas correspondentes, quanto que todos – incluindo mulheres, cujo voto foi dos primeiros a defender em política – assumissem a condição de filósofo(a)s e a Filosofia (antes da tese XI que Marx sobre ou contra ele formularia) se tornasse desbravadora de possibilidades futuras.

De fato, Feuerbach foi o primeiro pensador da democracia como processo progressivo, o qual deveria ser ininterrupto embora conservando algo anterior, a cada passo da cidadania e antes de quaisquer reflexões afins em obras liberais ou de esquerda. No texto A Ciência Natural e a Revolução (1850), caracterizou um regime democrático aberto às evoluções necessárias, porque baseado na garantia básica de bens imprescindíveis ao amor-próprio de cada pessoa, mas alinhando todas as paixões individuais da diversidade identitária. Uma reflexão necessária, quando comunidades intencionais se tornam mais relevantes que comunidades tradicionais.



[1] Julio Lopes é Pesquisador Titular em Ciência e Tecnologia da Casa de Rui Barbosa, autor de Viver em rede (7Letras) e pós-doutorando em Filosofia pela Universidade de Lisboa.

domingo, 21 de julho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 053 - AS IDEIAS MOFADAS QUE NOS RODEIAM

Velhas e Novas Extremas-Direitas

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Em todo o mundo, as extremas-direitas que na geografia política estão no seu extremo, radicais, duras, sem alternativas factíveis, em tudo distantes dos inúmeros ramos clássicos da direita que perfaz conservadores, liberais, conservador-liberal, liberal-conservador, entre tantas desenhos possíveis que os englobam, são um fenômeno emotivo tanto aliciante para uma minoria e repulsiva para o Grande Número.

Eles desenvolvem a maior desconfiança dos filiados da direita clássica. Eles irritam além dessas Direitas, os Centros e as Esquerdas. Recentemente essa rejeição pelo Centro se deu em França como declarou o antigo primeiro-ministro do Centro de Macron, Édouard Philippe: “É necessário bloquear o "Reunião Nacional" (Rassemblement National, partido de extrema-direita). E no domingo (no último dia 7) do segundo turno votou num candidato de esquerda.

Apesar desta rejeição universal, a extrema-direita permanece. O que os caracteriza?

Primeiro, a crítica ao liberalismo político, inseparável da democracia pluralista. Em vez disso, aspiram a uma ordem política autoritária eleita, capaz de mobilizar as capacidades coercivas do Estado para manter a sociedade sob controle e disciplinada. Por isso se percebe que cultivam uma ideologia antiliberal a despeito de alguns deles se alegarem liberista e admirarem ditos líderes fortes.

Em segundo lugar, um foco intenso nas questões de segurança numa chave do século XVIII leitora de Hobbes, partindo do pressuposto de que vivemos num estado de exceção permanente, sitiados num ambiente de ameaças e riscos. Tal como no poema de 1904 de Konstantínos Kaváfis existimos sob a advertência de que os bárbaros chegarão hoje.

Terceiro, a vontade contínua de travar uma guerra ideológica e rodear-se de paliçadas morais. Com isto, colocaram os setores da direita clássica como Sparrings, fazendo-os parecer indiferentes e/ou pouco dispostos a defender fronteiras simbólicas e imaginárias à revelia das físicas e constitucionais. Ao mesmo tempo, transformam os Centros e as Esquerdas – por vezes como cúmplices – de um conglomerado de reivindicações tais como dos identitários, antinacionais, anticostumes e inimigas do bom senso.

É assim que a extrema-direita surge na cena global em toda a sua variedade: autoritária, contrária aos limites e equilíbrios da democracia liberal, com uma mentalidade de manada sitiada, disposta a reunir os ressentimentos da sociedade numa cruzada cultural contra os Centros que seriam Fracos e as ditas Esquerdas Woke.

Há espaço para tudo, desde o chamado anarcocapitalismo de Milei até ao capitalismo de compadrio de Putin; das ideologias eurocéticas as ultranacionalistas; desde aqueles “nostálgicos do fascismo”, como parcela dos Irmãos de Itália (Fratelli d'Italia), os cúmplices da ditadura de Pinochet; do “Deus acima de tudo”, pátria e família de Bolsonaro ao “a guerra foi vencida no nível espiritual” do elsalvadorenho Bukele; desde a acusação contra a direita clássica de ser uma “direita covarde e fraudadora”, como disse o chefe do Vox na Espanha, e até o José Antonio Kast que negou que o Chile nos governos do recém-falecido Sebastián Piñera era governos de direita.

Pois bem. Após termos acompanhado a Convenção do Partido Republicano em Milwaukee nos últimos dias é inequívoco dizer que houve nele a ascensão avassaladora de uma visão, de valores e de um projeto de restauração conservadora; de um nacionalismo cristão a favor de uma guerra ideológica contra tudo o que não é “norteamericano”. E inimigo do estrangeiro, diverso, híbrido. Ao mesmo tempo, um populismo surpreendente – vindo de um partido tradicionalmente plutocrático. A guerra ideológica da extrema-direita estava lá.

Daí que nós defensores e defensoras da democracia, liberdade e igualdade seguiremos a encorajar sempre a tolerância e a doçura emanadas da flor de lótus e as nossas tendências confessas a favor da paz.

 

21 de julho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.