O tiro esquecido
na História
Pablo
Spinelli[1]
A
atriz Fernanda Torres escreveu em uma crônica que está no seu segundo livro[2]
que ao contrário de americanos (e nós) que ficaram por anos diante da Netflix
esperando os episódios de House of Cards,
uma série sobre os bastidores da política com intensa carga dramática, aqui,
nossa cultura televisiva e cinematográfica não aborda com a mesma visceralidade
os dramas da política institucional. E ainda sugere que o PMDB, atual MDB,
serviria de grande mote para tramas muito mais ligadas ao pensamento de
Maquiavel do que ao jardim da infância da moralidade binária entre o bem e o
mal.
Aproveitando
o mote, cumpre concordar e dialogar com a atriz que concorda com o signatário
que faltam bons roteiros brasileiros sobre o drama pequeno-burguês no nosso
cinema. Em 1993, a Rede Globo fez um dos maiores investimentos financeiros,
tecnológicos e artísticos na adaptação da obra-prima literária de Rubem Fonseca[3], Agosto.
A
obra adaptada[4]
tem uma estética hollywoodiana dos anos 1940-1950, muito por influência de um
dos grandes nomes do cinema brasileiro, Carlos Manga. Coube a Paulo José o
clima de cinema noir à série que foi protagonizada por José Mayer, hoje
cancelado, em uma inteligentíssima caracterização do amargo, sofrido, ulceroso
Comissário Mattos (um trocadilho irônico, pois não mata ninguém). Vera Fisher
faz a loira fatal e a então iniciante Letícia Sabatella faz a mestiça e ingênua
Salete. Coube ao inesquecível José Wilker ser o líder dos vilões. Ainda no
elenco pode-se ter o deleite de ver participações de Mario Lago, Paulo Gracindo
(em sua última aparição), Elias Gleizer, Lima Duarte, Ary Fontoura, Othon
Bastos, Carlos Gregório, Lúcia Veríssimo, Norton Nascimento e dois destaques,
Carlos Vereza, como o policial linha-dura e Tony Tornado, um diamante de
atuação como Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas que era
conhecido como o “Anjo Negro”.
A
série, a primeira a usar computação gráfica no país para reconstruir o Palácio
Monroe e tirar os aparelhos de ar-condicionado do prédio que morava o
jornalista e político Carlos Lacerda em Copacabana, tratou com esmero um dos
momentos mais dramáticos do país; uma conjuntura muito difícil: o clima de
polarização do país com o recuo do centro democrático, o PSD, brilhantemente
personificado por Cláudio Mamberti, o senador Victor Freitas; o uso da retórica
da intolerância capitaneada por Carlos Lacerda, homem de formação cultural que
teria engulhos com os seus herdeiros do lava-jatismo, bacharéis de rala
ignorância; a solução da política pela antipolítica, como demonstrado no
atabalhoado atentado da Rua Tonelero contra Lacerda; a miopia das esquerdas
trabalhista e comunista; os abusos da imprensa escrita e falada quanto ao que é
fato e o que é opinião; o processo de insular que Getúlio Vargas, mais idoso e
sem forças para reagir, um Biden avant la
lettre.
Dito
isso, cumpre lembrar que a série teve seu primeiro capítulo em 24 de agosto de
1993, uma forma de inaugurar os 40 anos do suicídio de Vargas que seria
lembrado no ano seguinte. Os tempos eram do governo Itamar Franco, um político
que defendia ao seu modo o nacional-desenvolvimentismo. Em 1994 houve uma
grande presença de jovens impulsionados por professores, pela minissérie, pela
mídia, no Museu da República para ver o palco dos acontecimentos daquele
fatídico agosto. Da mesa da última reunião ao pijama listrado chamuscado pela
bala de calibre 22 no coração havia uma imersão no cenário varguista. No ano
seguinte, chegaria ao poder, eleito em primeiro turno, um professor que dizia
que seu governo seria o coroamento do fim da Era Vargas, que de forma
cambaleante, resiste.
Resiste
e agoniza. Pois se é verdade que na Era Vargas houve a instrumentalização da
educação de crianças e adolescentes dentro de um projeto nacional-popular com
cacoetes fascistóides da época da Pátria Educadora, a pergunta que se faz é: o
que os Ministérios da Educação e de Cultura e a academia têm a propor para se
debater esse momento agonístico da política brasileira? Ficarmos restritos à
edições e reedições da academia, a documentários na Rede Brasil, reuniões e
debates de velhinhos no Zoom/Youtube e artigos de opinião em jornais e revistas
não serão suficientes para a formação da educação cívica, debate do pluralismo
de ideias e avanço das ciências humanas e sociais[1] no
país. Agosto de 1954 teve em menos de um
mês conspirações, atentado e suicídio, portanto, seria de bom tom a partir dele
se pensar o lema da união e reconstrução do país de forma responsável e eficaz.
[1]
Doutorando em PPGCP-UNIRIO e professor da educação básica das cidades de
Saquarema e Rio de Janeiro.
[2]
Fernanda Torres. Sete anos: crônicas. Companhia das Letras, 2014.
[3]
Rubem Fonseca foi um dos escritores mais lidos no país desde os anos 1970.
Vários de seus contos são clássicos. Teve várias adaptações para a TV e o
cinema, como a série Mandrake (HBO) e o filme A Grande Arte. A sua experiência
como policial e roteirista de filmes anticomunistas no IPES/IBADE pré-golpe de
1964 não o impediram de ter sido censurado por atentado aos bons costumes
segundo o regime de exceção da época. Na nossa concepção, Fonseca faz uma
mudança de rumo na escrita e no seu passado com o catártico Agosto, pois
declaradamente nunca apoiara o golpe. Rubem Fonseca morreu por COVID-19 em 15
de abril de 2020 sem nenhuma nota de pesar do Governo Bolsonaro.
[4]
Disponível na Globoplay.
[5]
Para melhor debate, ver o artigo Desafio das Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas, de Ricardo J. de A. Marinho publicado em https://votopositivo-cg.blogspot.com/2024/07/boletim-brasilia-conection-bbc-049.html
(14 de julho de 2024).
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