domingo, 4 de agosto de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 055 - AGOSTO E ILIBERALISMO

A Venezuela & Nós

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Conheci vários venezuelanos e venezuelanas migrantes em outubro de 2021, por conta da conferência livre organizada pela Escola Estadual Fazenda Paraíso, em Espera Feliz, numa etapa preparatória para a construção do 1º Plano Estadual de Políticas Públicas para Refugiados, Migrantes, Apátridas e Retornados de Minas Gerais. Foi uma iniciativa cidadã muito impressionante.

Para um carioca acostumado ao frenesi metropolitano, participar daquele evento democrático naquela cidade foi como estar ao vivo em um filme de Nelson Pereira dos Santos.

Os anos de grande crescimento econômico para a Venezuela já eram coisas de um passado longínquo. A Caracas que ostentará arranha-céus urbanos que se cruzavam de forma caprichosa não existe mais.

A crise do petróleo da década de 1970 transformou a Venezuela num dos países mais ricos da América. A queda deste boom em 1983 levou a uma crise econômica prolongada, mas tanto durante os anos de auge como nos anos magros foram realizadas reformas econômicas e sociais, enfrentou-se a guerrilha de inspiração cubana nos anos 1960 até conseguir sua desmobilização nos anos 1970, tendo resistido à onda de ditaduras militares da América do Sul, tornando-se um oásis de refúgio e liberdade para muitos migrantes, ao mesmo tempo que não houve capacidade de evitar a corrupção generalizada durante os bons tempos e o aumento do crime e da violência nos tempos difíceis.

Embora no seu conjunto tenham sido anos de progresso, a distribuição medíocre levou a um crescimento do descontentamento que culminou em protestos sociais que deixaram uma marca profunda com o "Caracaço" de 1989. Isto desencadeou o ativismo militar e uma tentativa de golpe de Estado em 1992, chefiado por um tenente-coronel com tendências revolucionárias e devoto de Fidel Castro, para quem a continuidade das instituições democráticas não tinha valor. Seu nome era Hugo Chávez.

Fracassado o golpe, Chávez construiu um caminho eleitoral entendendo que só chegaria ao poder por esses meios e conseguiu isso em 1999. Os mesmos setores democráticos que haviam caído em desuso pensavam que talvez no governo Chávez avançassem em direção ao progresso democrático, mas os seus planos eram outros, movia-se com astúcia e habilidade, tinha a maioria dos votos e o apoio das armas, a sua revolução levaria o enigmático nome de Socialismo do século XXI, enigma que levou para o túmulo, mas isso significou desmantelar a democracia a partir de dentro do poder.

Como é habitual nas aventuras de reconstrução, a primeira coisa que fez foi aprovar por referendo a mudança do nome do país com uma visão ao mesmo tempo nacionalista e com uma estranha ideia de Bolívar, instituindo a República Bolivariana da Venezuela.

Nacionalizou indústrias-chave e com a nova bonança do petróleo realizou mobilizações sociais, minou as instituições democráticas e fez melhorias sociais, atacou histrionicamente os EUA em nome de um anti-imperialismo anacrônico. Ele desenvolveu um apoio maternal a uma Cuba que mal respirava e fez da Rússia, da China e do Irã os seus interlocutores favoritos no mundo.

Na América, ele estendeu um apostolado do petróleo e apoiou tendências semelhantes às suas em vários países que, em graus variados, abraçaram o seu bolivarianismo. Na verdade, nenhum deles se saiu bem e o fracasso os uniu mais do que a revolução.

Na Venezuela, os processos eleitorais tornaram-se cada vez mais suspeitos e a economia foi pelo ralo. Sete milhões de venezuelanas e venezuelanos fugiram para o estrangeiro, incluindo grupos criminosos, dada a carência e pobreza do mercado interno. A corrupção regressou ao seu auge, desta vez nas mãos de novos grupos civis e militares.

O autoritarismo aprofundou-se e as violações dos direitos humanos aumentaram.

Quando Chávez morreu, foi sucedido por Nicolás Maduro, o seu homem de confiança, agressivo, com insultos fáceis e um olhar de peixe morto, sem a sua astúcia nem seu carisma, com um pensamento tacanho, que venceu uma eleição muito apertada.

Dedicou-se a diminuir qualquer brecha democrática, terminou de consolidar a ditadura, mas não conseguiu suprimir, porém, a trajetória eleitoral com que chegou ao poder. A oposição foi reprimida, presa e espancada, mas continuou a existir para além de todos os obstáculos e abusos.

Foi assim que aconteceram as eleições de domingo passado, nas quais a oposição, contra todas as probabilidades, o enfrentou, apoiando um homem decente como candidato substituto do líder banido.

Já sabemos o que aconteceu, um manto de abusos, manobras, imprecisões e ameaças parece ter transformado uma ampla vitória da oposição numa vitória fantasiosa do governo em que nem eles acreditam. Tudo indica que os números fornecidos por seu governo que nunca fala a verdade correspondem a uma ação fraudulenta que ficará na história da antidemocracia. Nenhum país democrático, sob qualquer forma, concordou com esses absurdos, nem mesmo o Brasil, e devemo-nos sentir orgulhosos disso.

Num mundo tão polarizado, onde as tendências autoritárias seguem a crescer e a proteger os seus pares, o regresso da democracia na Venezuela enfrenta um caminho difícil porque o despotismo não vê futuro fora do poder, mas muito foi construído para baixar as armas agora. É preciso comprovar o saque, mesmo sob ameaça.

Uma questão que não pode ser evitada surge neste momento e é válida também para nós no Brasil: é possível, é correto, é consistente, é aceitável que aqueles que formaram sinceramente a Frente Democrática vitoriosa em 2022 possam caminhar de braços dados com aqueles que são solidários com a barbárie antidemocrática? Não estou falando de coincidências específicas que são a essência da práxis política, estou me referindo a uma construção estratégica duradoura.

Está claro que em algum momento isso deverá exigir reflexão, esse emparelhamento pode dar frutos imediatos nas eleições de 2024, mas sempre leva a um emaranhado mefistofélico, que leva à perda da alma.

 

3 de agosto de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, do Instituto Devecchi e da Teia de Saberes.



 

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