CIDADE É DIREITO E MUNICÍPIO SEU EXERCÍCIO
Júlio Lopes[1]
O maior desperdício cívico brasileiro é a
ausência, tão habitual quanto eleitoral, do tema do direito à Cidade em
eleições municipais. Seu desprezo ostensivo ignora como seu exercício
contribuiria à cidadania e à economia, mesmo onde elas são mais frágeis.
Ser ambiente onde
componentes artificiais superam os naturais não torna o urbano avesso às
comunidades ou à Natureza. Todo elemento artificial é transmutação dela e
através de ações coletivas, possibilitando escolher inserções tão sustentáveis
quanto comunitárias da urbanização. Inovações urbanas podem ser harmônicas com
elementos naturais e entre vizinhanças.
Cidade é direito
ambiental, como fusão humana com a Natureza pela sustentabilidade urbana que
reverteria, progressivamente, a exclusão de elementos naturais anteriores que
fundou as cidades brasileiras. Não para repor todos os rios e matas precedentes,
mas conectando pontos do fluxo hídrico subterrâneo e plantando espécies
adequadas em espaços cujo acesso beneficiasse atividades, tradicionais ou
inovadoras, pela população local.
Cidade é direito
cultural, como única comunidade sem limites, onde diferentes se encontram como
em nenhum outro lugar. Não para abandonarem sua estranheza cotidiana, mas para
descobrirem possibilidades em diferenças constantes de novas formas de
relacionamento pessoal e profissional, desde que seu fluxo migratório
característico tanto não expulse moradores tradicionais ao advirem novos,
quanto atraia qualificados para incrementar sua diferenciação populacional.
Ao ideal de Cidade
corresponde uma renovação sustentável que harmonize a restauração
(embora nunca total) de circunstâncias naturais à maior expansão comunitária
possível (além da tradicional). Porque ela é uma conjugação
político-administrativa de bens e serviços públicos cujas funções sociais locais
são decisivas à transição energética, como já proclamado desde a
Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92).
Concebê-la como direito consolidaria nossa cidadania precária, por
abranger nossas falhas.
Já neste sentido é que a
urbanização já fora adotada, constitucionalmente (artigo 182 da Constituição
Federal), como política de desenvolvimento municipal permanente. Dela,
portanto, imbuindo qualquer Município brasileiro, inclusive os rurais, a serem
urbanizados, tão progressivamente quanto racionalmente. Porém, a dimensão
ecológica, mediante alianças sustentáveis entre fatores artificiais e naturais,
integra a dimensão comunitária, enquanto cruzamento entre fatores tradicionais
e inéditos, da urbanização. Daí a conjugação entre ambas ser,
preferencialmente, democraticamente exercida à medida que suas
reconstituições, constantes e características das cidades, implicam que haja compromissos
regulares para segmentos sociais cada vez mais diferenciados entre si.
O Brasil não é a única
nação dotada de níveis municipais de organização. Mas é aquela nas quais municípios
têm efetiva autonomia político-administrativa com vários instrumentos para o
seu desenvolvimento urbano, embora infelizmente pouco utilizados, senão
ignorados pela maioria das Prefeituras. Às quais, como guardiãs de quaisquer
interesses locais neste âmbito geográfico, também são devidas assistências
federais.
Assumir ambos os eixos
ecológico e comunitário da urbanização, no Brasil atual, implicaria às
Prefeituras e Ministério das Cidades um pacto básico em:
- tornar calçadas
pedonais: cujo estado inadequado a caminhadas tolhe, ao menos, expandir as atividades
locais em bairros ou distritos. Proximidade residencial é fundamental à vida
municipal, ao depender de atividades provenientes de ou entre residências,
inclusive comerciais;
- tornar celebrações
habituais: para além de datas tradicionais, garantir variadas comemorações
coletivas na maior amplitude territorial (obviamente sem descurar da ordem
urbana) ensejaria a profusão de comunidades locais, cujo fortalecimento também
basearia atividades turísticas correspondentes;
- tornar catadores profissionais:
na circularidade econômica de rejeitos urbanos, não apenas quando reutilizáveis
e recicláveis. A profissionalização municipal da coleta, ostensivamente já
praticada por segmentos mais vulneráveis, acarretaria tanta inclusão
socioeconômica deles, quanto fortaleceria arranjos empresariais circulares como
vocação comunitária de municípios, em sua incumbência pública habitual na
destinação de resíduos locais;
- tornar energias
renováveis: viabilizar vizinhanças energeticamente conectadas em fontes
solares, eólicas e demais com renovação energética intrínseca, incrementaria a
profusão de atividades, inclusive como novos ou ampliados acessos locais para a
distribuição de energia no âmbito municipal e, portanto, maior integridade
corrente de seu uso comunitário;
- tornar praças
ocupáveis: com segurança e comodidade permanentes para seu uso comunitário
e também durante dias úteis, como locais de passagens corriqueiras, portanto,
de atividades pontuais tradicionais e inovadoras;
- tornar verdes os espaços
vazios: idealmente por ajardinamentos verticais e hortas comunitárias,
inclusivas da função social de amenização climática local. Com plantios
municipais, ao contrário dos que ainda predominam, orientados por seu impacto
no solo natural ou artificial destinado;
Tais medidas ainda são
tão básicas que continuam necessárias aos municípios brasileiros e mesmo
naqueles onde funções urbanas já garantem ciclovias, blocos de rua ou praias. Beneficiariam
à maioria munícipe, para que segmentos vulneráveis exerçam a cidade em níveis
maiores. Como única nação onde há
autonomia municipal, articulada por Rui Barbosa em nossa instauração
republicana, é o mínimo exigível de qualquer Prefeitura brasileira.
[1]
Julio Lopes foi consultor para aspectos jurídico-institucionais do zoneamento
econômico-ecológico de Rondônia, é Pesquisador em ciência e tecnologia da Casa
de Rui Barbosa e autor de Viver em rede
(Editora 7Letras).
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