segunda-feira, 14 de outubro de 2024

SÉRIE ESTUDOS - UM DEBATE URGENTE

CIDADE É DIREITO E MUNICÍPIO SEU EXERCÍCIO

Júlio Lopes[1]

 

 O maior desperdício cívico brasileiro é a ausência, tão habitual quanto eleitoral, do tema do direito à Cidade em eleições municipais. Seu desprezo ostensivo ignora como seu exercício contribuiria à cidadania e à economia, mesmo onde elas são mais frágeis.

Ser ambiente onde componentes artificiais superam os naturais não torna o urbano avesso às comunidades ou à Natureza. Todo elemento artificial é transmutação dela e através de ações coletivas, possibilitando escolher inserções tão sustentáveis quanto comunitárias da urbanização. Inovações urbanas podem ser harmônicas com elementos naturais e entre vizinhanças.

Cidade é direito ambiental, como fusão humana com a Natureza pela sustentabilidade urbana que reverteria, progressivamente, a exclusão de elementos naturais anteriores que fundou as cidades brasileiras. Não para repor todos os rios e matas precedentes, mas conectando pontos do fluxo hídrico subterrâneo e plantando espécies adequadas em espaços cujo acesso beneficiasse atividades, tradicionais ou inovadoras, pela população local.

Cidade é direito cultural, como única comunidade sem limites, onde diferentes se encontram como em nenhum outro lugar. Não para abandonarem sua estranheza cotidiana, mas para descobrirem possibilidades em diferenças constantes de novas formas de relacionamento pessoal e profissional, desde que seu fluxo migratório característico tanto não expulse moradores tradicionais ao advirem novos, quanto atraia qualificados para incrementar sua diferenciação populacional.

Ao ideal de Cidade corresponde uma renovação sustentável que harmonize a restauração (embora nunca total) de circunstâncias naturais à maior expansão comunitária possível (além da tradicional). Porque ela é uma conjugação político-administrativa de bens e serviços públicos cujas funções sociais locais são decisivas à transição energética, como já proclamado desde a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92). Concebê-la como direito consolidaria nossa cidadania precária, por abranger nossas falhas.

Já neste sentido é que a urbanização já fora adotada, constitucionalmente (artigo 182 da Constituição Federal), como política de desenvolvimento municipal permanente. Dela, portanto, imbuindo qualquer Município brasileiro, inclusive os rurais, a serem urbanizados, tão progressivamente quanto racionalmente. Porém, a dimensão ecológica, mediante alianças sustentáveis entre fatores artificiais e naturais, integra a dimensão comunitária, enquanto cruzamento entre fatores tradicionais e inéditos, da urbanização. Daí a conjugação entre ambas ser, preferencialmente, democraticamente exercida à medida que suas reconstituições, constantes e características das cidades, implicam que haja compromissos regulares para segmentos sociais cada vez mais diferenciados entre si.

O Brasil não é a única nação dotada de níveis municipais de organização. Mas é aquela nas quais municípios têm efetiva autonomia político-administrativa com vários instrumentos para o seu desenvolvimento urbano, embora infelizmente pouco utilizados, senão ignorados pela maioria das Prefeituras. Às quais, como guardiãs de quaisquer interesses locais neste âmbito geográfico, também são devidas assistências federais.

Assumir ambos os eixos ecológico e comunitário da urbanização, no Brasil atual, implicaria às Prefeituras e Ministério das Cidades um pacto básico em:

- tornar calçadas pedonais: cujo estado inadequado a caminhadas tolhe, ao menos, expandir as atividades locais em bairros ou distritos. Proximidade residencial é fundamental à vida municipal, ao depender de atividades provenientes de ou entre residências, inclusive comerciais;

- tornar celebrações habituais: para além de datas tradicionais, garantir variadas comemorações coletivas na maior amplitude territorial (obviamente sem descurar da ordem urbana) ensejaria a profusão de comunidades locais, cujo fortalecimento também basearia atividades turísticas correspondentes;

- tornar catadores profissionais: na circularidade econômica de rejeitos urbanos, não apenas quando reutilizáveis e recicláveis. A profissionalização municipal da coleta, ostensivamente já praticada por segmentos mais vulneráveis, acarretaria tanta inclusão socioeconômica deles, quanto fortaleceria arranjos empresariais circulares como vocação comunitária de municípios, em sua incumbência pública habitual na destinação de resíduos locais;

- tornar energias renováveis: viabilizar vizinhanças energeticamente conectadas em fontes solares, eólicas e demais com renovação energética intrínseca, incrementaria a profusão de atividades, inclusive como novos ou ampliados acessos locais para a distribuição de energia no âmbito municipal e, portanto, maior integridade corrente de seu uso comunitário;

- tornar praças ocupáveis: com segurança e comodidade permanentes para seu uso comunitário e também durante dias úteis, como locais de passagens corriqueiras, portanto, de atividades pontuais tradicionais e inovadoras;

- tornar verdes os espaços vazios: idealmente por ajardinamentos verticais e hortas comunitárias, inclusivas da função social de amenização climática local. Com plantios municipais, ao contrário dos que ainda predominam, orientados por seu impacto no solo natural ou artificial destinado;

Tais medidas ainda são tão básicas que continuam necessárias aos municípios brasileiros e mesmo naqueles onde funções urbanas já garantem ciclovias, blocos de rua ou praias. Beneficiariam à maioria munícipe, para que segmentos vulneráveis exerçam a cidade em níveis maiores.  Como única nação onde há autonomia municipal, articulada por Rui Barbosa em nossa instauração republicana, é o mínimo exigível de qualquer Prefeitura brasileira.



[1] Julio Lopes foi consultor para aspectos jurídico-institucionais do zoneamento econômico-ecológico de Rondônia, é Pesquisador em ciência e tecnologia da Casa de Rui Barbosa e autor de Viver em rede (Editora 7Letras).

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