O último decênio em perspectiva
Ricardo José de
Azevedo Marinho[1]
A história recente do último decênio exige uma avaliação contundente dos sentidos políticos de um conjunto de
eventos que nem sempre são discutidos com o rigor que necessitam o que acaba
por gerar a incompreensão de nossa experiência. Muito se escreveu e falou, por
exemplo, sobre os acontecimentos de junho de 2013, com interpretações ora
entusiastas, ora apocalípticas, que viram na sequência de protestos que
sacudiram a cena do país, com o redespertar da nossa geografia política. Ao
consultar vozes incontornáveis em nosso debate público, a Revista VERSUS (N° 11,
novembro de 2023 - https://versus.ccje.ufrj.br/versus-hoje/) ouviu estudiosos
sistemáticos sobre o tema, desde sua eclosão até o seu primeiro decênio. Lá
Julio Aurélio Vianna Lopes (Fundação Casa de Rui Barbosa) e Marco Aurélio
Nogueira (professor titular da UNESP, e autor do incontornável A democracia desafiada: recompor a política
para um futuro incerto, 2023), eles analisam a experiência dos governos e
sua complexa relação com a sociedade, expressas nos diferentes teatros das
ruas. Desde Junho de 2013 às ruas foram compostas por muitos movimentos, de
orientações políticas distintas e com agendas próprias. Para Marco Aurélio
Nogueira: “Por conta da efeméride, ou
seja, dos dez anos de 2013, houve uma série de artigos e entrevistas que fazem
uma conexão mecânica entre 2013 e a situação atual, passando particularmente
pelo governo Bolsonaro. Como se 2013 tivesse botado um ovo de serpente. Penso
que esta é uma visão equivocada, mecanicista, que despreza vários outros
acontecimentos que tiveram alto poder de determinação na ascensão do
bolsonarismo (a crise econômica, a perda de base parlamentar do governo Dilma,
a falta de políticas claras).” Na revista, se discute os principais embates
das gestões nesse decênio, construindo um panorama amplo e complexo de nossa
experiência política recente.
Na revista se traz à baila Treze:
A política de rua de Lula a Dilma (2023), de Angela Alonso. Este título
apresenta sua pesquisa desse decênio que compara as avaliações dos eventos de
Junho de 2013, da década e de hoje.
Para se ter a dimensão dos achados duas produções audiovisuais
em 2022 foram lançadas: a série documental de seis episódios, Junho, o começo do avesso, com
subsídio do Fundo Setorial Audiovisual, e o longa Ecos de junho, apoiado por Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e
Rede Globo.
Para quem viu os documentários e depois lê o livro percebe que a
maioria dos inquiridos considera difícil avaliar as consequências, mas condenam
a violência que os cercou. No entanto, julgam que as suas causas foram justas e
que revelou o descontentamento generalizado.
Apesar do tempo que passou, ainda são lembradas as frases de
autoridades referentes ao “gigante acordou”, “o despertar social”, entre outras
imagens. Mas neles está encarnado o olhar crítico a uma tecnocracia impermeável
aos graus de igualdade (se não material, pelo menos simbólica) alcançados pela
sociedade brasileira na década de 1980 com a expansão da democracia, da
educação e das redes sociais.
2013 e depois vimos a ação coletiva e anônima de indignação
acumulada contra uma cultura elitista egocêntrica, indiferente à situação e
angústia da população. Esta crise de representação não era nova: vinha
fermentando desde Collor. Nas palavras de Angela Alonso: Tanto em São Paulo como no Rio, onde se julgava que as prefeituras eram
o alvo, instalou-se o impasse. Noutras partes do país, onde nem havia aumento
de tarifa, ficava claro que as demandas eram outras, com destaque para as
disputas em torno de terra e moralidade. Indicação de que as razões não eram
municipais. A presidente, contudo, permanecia impávida, como se nada tivesse
com isso, embora a vaia do dia 15 já desse pista de seu ledo engano.
As ruas, então, serviram de megafone através do qual milhões de
compatriotas saíram para expressar algo muito básico: “estamos aqui”. Não
aceitamos viver marginalizados na periferia atravessada por uma modernização
que não utilizamos. Se para ser ouvido era preciso sair às ruas e participar de
marchas e manifestações, faremos como se fizera em 1984, ainda que essa
história não nos tenha sido contada.
Os custos de 2013 e depois não foram iguais para todos. Nos
bairros dos eventos era um espetáculo dantesco visto pela televisão, e não
vivido diretamente. Os eventos visavam atingir e conscientizar aqueles que
teriam o controle sobre uma ordem que girava sobre si mesma sem dar sentido à
vida; um sentido como aquele que outrora surgiu da história da modernização
(prosperidade e igualdade) e, ainda mais profundamente, da salvação que a fé
promete.
Comovidas e assustadas, as elites políticas e econômicas
abriram-se ao clamor, mas isto só durou até que as mobilizações cessassem. No
final tudo parecia permanecer igual; ou pior, devido aos custos políticos. Aí
veio o que o Marco Aurélio Nogueira mencionou na entrevista acima citada, onde
a ela devemos adicionar 2014, 2016, 2018, a pandemia e, acima de tudo, um mundo
com guerra.
Apesar de tudo 2013 e depois foram atos da sociedade e de
esperança. Mas aparentemente em vão, pois a vida desde então ficou mais
difícil, como indicam os resultados preliminares do Censo Demográfico 2022.
Daí que a explosão pública foi transformisticamente dando lugar
então à implosão individual. A 2013 e depois foi privatizada, o que certamente
contribui para as atuais pandemias de Influencers, Tiktokers, Youtubers,
OnlyFans e afins e de saúde mental. Mas ontem e hoje a exigência da população é
a mesma: seguridade; seguridade para a velhice, contra as doenças e pró saúde,
o desemprego e, hoje, como prioridade, pró segurança pública. Se as
instituições não agirem para responder a este apelo, que ninguém volte a dizer
que não previu que isso aconteceria, pois isto não se entende com as lentes
ditas sociológicas da demofobia.
20
de outubro de 2024
[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do
Instituto Devecchi.
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