Em
prol da nossa virtude federativa
Ricardo José de
Azevedo Marinho[1]
Sabemos que o mundo não atravessa um bom momento, a ligeira
melhoria econômica dos últimos tempos não é suficiente para cobrir a gravidade
da atual fase que atravessamos a nível geopolítico, onde as guerras em curso
parecem intermináveis, sem esperança de negociação e com perigos de escaladas
ainda maiores. Teremos repatriação de brasileiros do Oriente Médio no curso das
eleições 2024.
As únicas manifestações mesquinhas ocorrem quando o inimigo é
destruído, recebe cadeiradas, e a política é morta aos poucos, e o número de
vítimas adquire a banalidade da denúncia da Hannah Arendt (1906-1975), onde as ameaças verbais alimentam o
medo e a desesperança.
Não temos de memória uma Assembleia Geral das Nações Unidas como
a atual, em que os chefes de Estado tenham demonstrado uma linguagem tão
agressiva, sem intenções dignas, onde predominou o mau humor.
É verdade que sempre houve personagens bufões e histriônicos que
marcaram um ou outro encontro. Nikita Khrushchov (1894-1971), baixo, redondo e
com sorriso com mais de um dente de ouro, quando representou a União Soviética
durante uma sessão em 1960, tirou o sapato e começou a bater na mesa porque não
gostou do discurso das Filipinas.
Em 2006, o belicoso Hugo Chávez (1954-2013), que falou no dia
seguinte a Bush, usando língua ferina, assinalou que havia um cheiro de enxofre
no púlpito porque o diabo havia falado ali recentemente. Nada disso tem graça,
mas foram tristes exceções.
Na atual Assembleia Geral tudo foi dito com vozes ultrajantes
como a do Presidente da Turquia Erdogan que criticou a inauguração dos Jogos
Olímpicos de Paris, atacando os valores do Ocidente; Benjamin Netanyahu, por
sua vez, descreveu o Secretário-geral das Nações Unidas como um antissemita e o
presidente da Argentina, cujos resultados até agora aconselhariam barbas de
molho, pelo menos a julgar pelos níveis de pobreza que atinge 52% dos seus
concidadãos, fala com autoconfiança categórica como possuidor da verdade
absoluta! Outros não estão dispostos a ouvir uns aos outros e se retiram quando
alguém de quem discorda fala. Os tons em geral têm sido mais parecidos com uma
rinha do que com uma ágora reflexiva.
O que acontece na relação entre os Estados reflete uma situação
mais ampla nas notícias, onde um idiota mediático acha interessante que as únicas
pessoas capazes de pensar com total liberdade sejam macho alfa com altos níveis
de testosterona, e que fariam isso melhor do que o conjunto do sistema
republicano e democrático.
Quem tem feito estes comentários não é outro senão o Elon Musk,
cujos amigos autocratas conhecemos.
O que está acontecendo no antropoceno? Estamos chegando ao fim?
Só existe o apocalipse no horizonte? Ou simplesmente que o processo
civilizador, o conhecimento, a inteligência e a modéstia se esvaíram?
Se o mundo que nos rodeia adquire este tipo de tom no debate,
talvez algo explique a degradação que o debate antipolítico se apresentou nas
eleições municipais no nosso país nesse 2024 e que abrange todos os setores,
inclusive documental, ou alguém esqueceu da pandemia e os imbróglios que
desejavam enredar o estado de Emergência em Saúde Pública de Importância
Internacional? O tom do debate segue áspero, dificultando a governabilidade,
como se não precisássemos de mais discussão com vistas aos encaminhamentos
pós-eleitorais. Há muitas questões que requerem acordos federativos e
transversais no Brasil, mas pelo menos três delas não podem ser resolvidas sem
estes entendimentos devido às suas magnitudes e gravidades.
A primeira é a da segurança pública, o aumento ilimitado da
violência que atingiu níveis vexaminosos onde o seu enfrentamento se coloca
como tarefa republicana e democrática. É necessário um total espírito público
para colocar todos os instrumentos policiais, institucionais e sociais
possíveis em uníssono para conter a sua expansão destrutiva e sua total
eliminação.
A segunda é que não podemos sustentar a coexistência pacífica do
país e o aumento da dignidade de vida dos cidadãos se não regressamos a um
caminho de crescimento sustentável que nos distinguiu durante anos na América.
Um maior bem-estar social não é possível sem maior investimento, sem
crescimento econômico, sem níveis mais elevados de produtividade. Não há maior
obstáculo para isso do que as visões ideologizadas, de bets e afins e outras modalidades de supostas prosperidades fáceis
e a ausência de colaboração público-privada.
A terceira está relacionada com as bases do futuro, a revisão do
nosso percurso educativo. Devemos ter a capacidade de rever onde estamos quais
erros foram cometidos mesmo com as melhores intenções. Será construído pelos
municípios que conseguiremos a base necessária para progredir. Devemos
restaurar este caminho, sem perder o que avançamos, mas solidificando o
sistema, não só abrindo mais oportunidades de melhoria, mas também melhorando a
sua qualidade. Só se formos capazes de fazer isso poderemos responder à mudança
de época que vivemos.
Estas são as prioridades, a base que permitirá avançar também
noutros aspectos, mas não podemos nos perder em debates de purezas simbólicas
que alegrem as diversas clientelas eleitorais e nada tem de exemplares.
Se não construirmos os acordos necessários de uma forma
democrática e republicana, não conseguiremos soerguer o nosso país. Isto
significa saber conduzir a competição política-eleitoral com base nas convicções
da Frente Democrática que aspira governar desde 2022, mas significa fazê-lo
testando quem na coalizão consegue fazer melhor, e não apenas tentando
favorecer as suas próprias siglas e mostrando o seu desdém aos demais.
6
de outubro de 2024
[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do
Instituto Devecchi.
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