domingo, 23 de outubro de 2022

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE O POPULISMO REACIONÁRIO

Sobre o populismo reacionário

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Lynch, Christian e Cassimiro, Paulo Henrique. Populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente, 2022. 209 págs.

 

A noção de populismo encontra-se em discursos muito diferentes e, claro, em diferentes realidades. Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro propõem-se reconstruir em nossa história recente os elementos que lhe deram vida aqui e fazem uma crítica mais pertinente do que nunca. Para além das especulações de todo tipo e das diferentes abordagens acadêmicas, a verdade é que o fenômeno tem impactado e desgastado ao extremo – e talvez irreversivelmente – as democracias. Não é uma questão restrita às universidades e faculdades, mas está no núcleo do debate e da preocupação pública.

Os autores resgatam elementos constituintes da construção narrativa da política populista reacionária: uma concepção do povo, uma modalidade de representação, uma política e uma filosofia da economia e um regime de paixões e emoções. Cada um desses elementos é analisado e, em seguida, são reconstruídos alguns dos episódios que deram azo a esses momentos que podem ser considerados como irrupções do populismo reacionário, para finalmente realizar uma crítica perspicaz e pertinente.

O livro vai longe. O componente e nutriente emocional do populismo reacionário mobiliza ressentimentos de forma destrutiva, colocando ácido nas balizas do acordo democrático, mas também deslocando a tradição que lançou a arquitetura da ilustração entre nós; uma arquitetura que apostava na razão, no conhecimento e na ciência como características modelares da conversa pública, da convivência e até mesmo da luta política.

Quando se mobilizam retoricamente as paixões, sempre se coloca sob suspeição a civilidade e se constitui uma ameaça à democracia. Inclinada a falsificar julgamentos, desviar comportamentos, perturbar as relações com os outros e derruir a convivialidade na sociedade, isso pode engendrar nos grupos humanos, compostos de indivíduos isoladamente racionais, um sentimento de multidão incontrolável e até criminosa. Primeiro em linguagem comum e, depois, mesmo na ordem intelectual, a conotação reacionária se firma. Por referir-se ao excesso, a uma força descontrolada, tudo passa a ser quase como um sinônimo de “emoção” ou mesmo mais uma variável da ação humana. No entanto, seu uso em linguagem cotidiana gera muitas apreensões, uma vez que se mostra relevante quando as paixões extremas (em oposição à razão) inundam o espaço público.



É claro que paixões e política não podem ser dissociadas. Elas são combustíveis fundamentais para mobilizações de todo tipo. Muitas vezes, para quem a encarna, a política está cheia de emoções, tratando-se de matéria de graus. Não estamos, quando falamos de política, diante de uma atividade “fria” e/ou apenas racional, mas, se a racionalidade estiver nublada – ofuscada – pela emoção, todos estarão em dificuldades.

O populismo reacionário soube capturar e explorar essas emoções. O sentimento de raiva, de não ser considerado, produto de uma divisão entre o mundo dos poderosos e o resto dos mortais, foi colocado à flor da pele. E esse ressentimento tornou-se um poderoso nutriente para o discurso populista.

Paradoxalmente, nas sociedades democráticas, a informação corre com enorme velocidade e combina verdades com inverdades descaradas. As redes aumentam o poder das trocas e a leitura do significado do que está acontecendo torna-se mais difícil. Há uma catarata imparável de informação, quase impossível de digerir e ordenar. Nesse roldão, as versões conspiratórias acabam maculando as tentativas políticas de restaurar a coerência em um mundo vivido como indecifrável e ameaçador. O populismo reacionário atua como uma espécie de sedativo, oferecendo ordem à desordem e suposta compreensão ao caos. E somado a isso há erosão da confiança nas instituições democráticas, o ambiente armado para a exploração de visões simplistas, como a contundente contraposição entre “nós, o povo” e “a máfia no poder”. Na percepção de Tocqueville, uma ideia falsa, mas clara e precisa, terá sempre mais força no mundo do que uma ideia verdadeira e complexa.

Não é então apenas a expansão de um impulso reacionário, mas algo mais profundo. É um composto discursivo que atenta contra os grandes pilares civilizatórios que apostam no conhecimento científico e no humanismo como forja de um espaço público conhecedor e razoável, promotor de diálogo e debate informados, uma sociedade de indivíduos e não alguma forma de rebanho.

Kant disse que o Século das Luzes significaria o abandono pela humanidade da condição de minoridade. Esse abandono da minoridade significava vencer a eventualidade de ser usado ou ser guiado por outra pessoa. O populismo reacionário marcha na direção oposta: o mito parasitário – nos termos de Manuel Bomfim – pastoreia uma visão de mundo como um mingau simplista e contundente, explorando as emoções e oferecendo-lhes uma sensação de falsa transcendência.

É necessário recordar, como o fazem Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, que foi o momento civilizatório das Luzes que forjou usos e costumes, bem como direitos, instituições e normas que permitem uma convivência cidadã. O mais preocupante com a proliferação das alavancas populistas reacionárias é que elas não apenas minam o arranjo democrático, mas também vão de encontro a muitos dos hábitos que permitem uma vida democrática e republicana.


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

BOLETIM ROMA CONECTION - EDIÇÃO EXTRA 2 - CARTA ABERTA AO LULA

 

JFK@gov para Lula@pres

Ítalo Calvo 

(Pseudônimo de um rubronegro muito famoso)

Prezado Lula

Estava conversando com o Roosevelt e o Vargas com a intermediação de San Tiago Dantas e eles me contaram que você representa o último líder do movimento operário do século passado, uma classe praticamente extinta como os camponeses. Vendo a sua campanha e seus debates com o seu adversário fiquei rindo pensando que Nixon era um escoteiro comparado com o que vocês criaram no Brasil, terra que ajudei com o “Aliança para o Progresso” e ganhei como retorno um local na periferia chamado “Vila Kennedy” com gente sofrida, mas alegre.

Eu entrei para a História por vários motivos, uns bons, outros ruins, como o meu fraco por mulheres e o que fazia na Casa Branca. Vi que Trump fez muito pior, segundo me falou George Bush pai. Um dos motivos pelo qual sou lembrado é o debate que fiz com Nixon na televisão. Ele suava, eu fiquei mais calmo. Ele não sabia usar a televisão, eu aprendi a usar a essa máquina fazendo o papel de bom-moço. O programa dele era melhor que o meu, mas queriam “comprar” um produto e não, ouvi-lo. Nixon e eu rimos disso outro dia num pôquer. Ele perdeu porque eu sei blefar melhor. Minhas sugestões para essa reta final:

- Esqueça o voto evangélico. Não use essa expressão. Eu fui o único católico que presidiu os EUA e levei muita pedrada e nunca precisei fazer um pedido para qualquer outra religião. Na minha época já existia líder religioso picareta que depois entrou para a televisão. Eu incluí os negros, os latinos furiosos com Fidel. Acenei para os jovens. Fale para os jovens. Vi um rapaz fumando algo esquisito num programa e você falava sobre o que fará pelos jovens na geração 4.0. Foi algo positivo. Fale para os pobres. E diga algo legal: chame os evangélicos de Protestantes. Lembre que eles começaram protestando, Lutero era um revolucionário. Dica do Luther King que foi um ex-presidiário, como o Mandela.


- Os jovens têm hormônios em ebulição como eu. Fale de novo que todo mundo vai namorar. Só não diga “quem quiser”. Só namorar.

- Eu vi uma parte do seu debate falando sobre Petrobras. Não entendi nada. Perguntei ao Lacerda, com quem tenho boas relações e ele me disse: Lula nesse você “cirou”. Não entendi a piada interna. Só sugiro: evite números demais. Nunca precisamos disso para ganhar eleição nos EUA. O Dewey me falou que a garotada hoje presta atenção só uns 5 minutos no que se fala. Menos número e mais emoção. Mas controle seu tempo.

- Gostei da gravata. Ela chamou a atenção. Repita. Faça a sua marca. Aposente as vermelhas. Tem uma menina aí que já falou sobre isso. Teu povo fala sobre não ser vermelho e esquece que o nome do país vem de brasa, vermelho. Fale mais do futuro. O JK me disse que o slogan dele falava sobre futuro. Vargas me contou que ele sofreu porque só falavam de passado.

- Eu não bato papo com o Mussolini, mas meu pai tinha amizade secreta com ele por mais de dez anos. Meu pai me disse que não adianta chamar fascista de fascista. É elogio. Mussolini não gostava de lembrar das derrotas, como o desgaste na Etiópia e a vergonha na II Guerra. Fale mais da pandemia. E lembre que Bolsonaro foi expulso do exército. Patton ouviu uma frase um aliado seu e gostou: Quem nunca foi um bom soldado, jamais será um bom comandante. Lembre que seu adversário tem que sair expulso da presidência como saiu do Exército. Isso mexe com quem tem o cheirinho fascista. Imagino que deva ser esquisito ter um adversário que não é da sua praia. Tenha calma. Controle seu tempo. Ria. Roosevelt sepultou o Lindbergh (o nosso) com temperança.

- Por último, o “sonho americano” chegou com 100 anos de atraso. Os pobres não gostam mais de serem chamados de empregados ou funcionários. Todos são colaboradores. E o “sonho americano” agora é dizer que é “empreendedor”. Você teve e criou nos anos 1980 o sonho americano no sindicalismo. Não bata nisso dizendo que as pessoas são exploradas etc. Diga que vai ajudar no sonho. Sabemos que é um pesadelo, mas as pessoas gostam de sonhar.

Jacqueline mandou recomendações. Disse que a anterior na sua campanha é melhor que a atual. “O menos é mais”. Não entendi o que ela quis dizer.

Atenciosamente,

John Fitzgerald Kennedy


sábado, 22 de outubro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 35 - ESTAMOS DE FATO NA RETA FINAL?

Sob a ameaça de Torquemada

Em memória de Lyncon Guidion

Vagner Gomes de Souza

 

Tomás de Torquemada foi um inquisidor-geral espanhol que viveu no século XV. Esteve a serviço da Igreja Católica em nome de um fanatismo que lhe qualificaria em muito a mentalidade distinta do iberismo hispânico em relação ao português. Sebastián de Olmedo o chamou de "O martelo dos hereges, a luz de Espanha, o salvador do seu país, a honra da sua ordem". Essa era a “espinha” dorsal de uma unificação sob a égide da religião como discurso de Estado. Estima-se que foi responsável por aproximadamente 2200 pessoas levadas ao suplício da fogueira.

Nesses tempos de “linchamento virtual” presentes em tantos quadrantes políticos, expor o ódio contra a afeição se tornou cada vez mais uma ameaça a Democracia no mundo. A mobilização nas redes sociais contribuiu para aceleração da individualização da sociedade numa lógica de um profundo individualismo metodológico em que muitas vezes as instáveis aproximações seriam em contextos de tentar ter algum benefício individual como se fosse um “efeito carona”.


Novos inquisidores se materializaram como vozes rudes que refletem uma sociedade fraturada e muito mais aberta aos pronunciamentos reacionários. O medo dos fantasmas de um sistema político que deixou de existir desde a queda do “Muro de Berlim” se observa muito nesse universo inquisitorial de Torquemada na sua busca identitária. Nada abala as concepções dos fanáticos como observamos nas lições sobre o fascismo (uma das múltiplas correntes do extremismo de direita) surgido no entre guerras junto com a pandemia da “Gripe Espanhola”.

Não nos estranha que o temor de que tenhamos “Casas de Banho” Unissex não tenha sido solidário no repúdio as falas e práticas infelizes sobre as jovens venezuelanas. Os olhos estariam vendados para a sensibilidade e a racionalidade numa política cada vez mais “Barroca”. O mundo do absolutismo está se tornando mais forte nesse contexto que se permite condenar a globalização ao contrário de orientar para sua republicanização. Os desafios são inúmeros, mas percebemos na leitura da fundamentação programática do bloco governista a “manipulação do medo” em relação ao novo e as mudanças.

As palavras do candidato a reeleição ressoam forte ao vaticinar na noite do dia 2 de outubro sobre os perigos de abraçar as mudanças. Todavia, desejam que se ande para trás em inúmeras conquistas sociais em relação ao poder de compra dos assalariados e aposentados/pensionistas. No país da “fila do osso” há aqueles que acreditam nos devoradores de cães acima da linha do Equador. Aqueles que desacreditaram que havia mortos nos caixões por conta da COVID-19 seriam os mesmos a acreditar numa ameaça a liberdade religiosa. Não confortaram as famílias e órfãos da COVID-19 e cinicamente dizem que defendem os valores da família. Não é somente as perdas da pandemia,  mas também a perda gradual da afeição. O mundo reacionário é movido pelo ódio e pela mentira.

A Carta Constitucional de 1988 está sob a ameaça dos visionários fechados as boas novas anunciadas na partilha do Pão. E anunciam cada vez mais novos retrocessos que vão atingir as mulheres e a juventude uma vez que há fratura em nossa Terra Prometida uma visão do paraíso. Sob ameaça de Torquemada surgem parlamentares que insinuam a inquisição de jovens universitários que seriam “taxados” como “filhos de papai”. Esse é mais um exemplo do perfil ignóbil de uma sociedade adoecida uma vez que se indultou um parlamentar condenado por atacar um dos Três Poderes (ao mesmo tempo em que mais de 19% de eleitores sufragaram, mesmo sub judice, esse candidato ao Senado enquanto que o mesmo teve aproximadamente 25% dos eleitores num bairro predominantemente evangélico na capital carioca).

Não é liberdade de expressão que está sob ameaça, mas seus limites republicanos impostos pelos marcos legais. Nesse momento a força da Cruzada Iliberal contra um Brasil muito abalado economicamente pela pandemia precisa de que a juventude dedique mais tempo de ocupação das ruas para dialogar com eleitores indecisos. A fase das Lives e dos influenciadores já passou. As ruas estão abertas para que os jovens falem para os jovens que se deixaram mobilizar pelas fake news. Os segmentos mais idosos precisam ser acolhidos pelo ânimo desses eleitores novos para que suportem a travessia de reconstrução nacional. Por fim, as mulheres seriam mais bem acolhidas pela juventude nessa dinâmica eleitoral. Aqueles que não tenham tempo nesses próximos dias que justifiquem no futuro, aos seus filhos e netos, o motivo de sua omissão. Não façam como o memorialismo sob a Alemanha Nazista registrou diversas respostas evasivas sobre atitude: “Não sabíamos de nada”.


terça-feira, 11 de outubro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 34 - PANTANAL E O BRASIL REAL

Pantanal e as eleições

Por Pablo Spinelli

 

Acabou Pantanal, um dos poucos casos raros de remake de uma novela que deu certo no mesmo nível que a anterior. A original, exibida por uma emissora carioca – rompendo o monopólio global – rompeu com uma estética convencional da teledramaturgia que ainda era presa ao teleteatro e aos planos da televisão americana. Num misto de ousadia e inventividade por falta de recursos financeiros, a Rede Manchete mostrou para o país aquilo que o presidente JK, amigo do então dono da emissora, Adolpho Bloch, realizara no governo: a marcha para o Oeste brasileiro, pelo bem e pelo mal.

Curiosamente, a conjuntura brasileira não era de boa fortuna para a democracia e instituições brasileiras, assim como a do remake: um presidente que foi eleito com discurso da antipolítica; do anticomunismo; defensor da moralidade pública e nos costumes e defensor do neoliberalismo. Esse era o perfil de Fernando Collor, esse ano derrotado fragorosamente em Alagoas e aliado de primeira hora do atual presidente e candidato à reeleição.

Muita coisa mudou de lá para cá. A Manchete faliu e dois impeachment depois, a sociedade brasileira tem que fazer um ato da ética da responsabilidade acima da ética da convicção pela manutenção da democracia, do pão, da razão e da própria existência do pantanal. Para a Aliança Democrática de oposição o tema tem que sair da antropofagia modernista e entrar no Brasil real que não é o da USP, mas o do patriarcado de capitalismo moderno e avançado representado pelo Marcos Palmeira e seu José Leôncio.

A oposição tem que parar para pensar que o Brasil conservador e a panaceia do “voto evangélico a favor da teocracia” assistiu a uma novela que tinha um “Cramulhão”; um espírito das águas e das matas, quase um orixá caboclo vivido pelo Osmar Prado, o mesmo que os mais velhos riam das estripulias do poliamor do Tabaco na novela Roda de Fogo. Os conservadores não fizeram um abaixo-assinado e nem passeatas ao ver dois peões se beijando no último capítulo – como aconteceu com outras novelas. Há necessidade de paciência com o mover do mundo, já nos dizia Joaquim Nabuco.

Um país formado por rupturas pelo transformismo não irá ver uma sociedade feita à fórceps pelo identitarismo americano que tomou força nos discursos neo-anarquistas do mundo acadêmico. As palavras perdem força diante dos fatos: Maria Bruaca, interpretado com força de Isabel Teixeira, defendida pelas feministas, nada mais queria que ser a única esposa de sua família. Fez de tudo para seu casamento não ruir, inclusive propor o trisal, para manter o marido. Todas as mulheres queriam não outra coisa a não ser um casamento (Filó, Zefa), ser mãe (Juma, Guta) e felizes (todas). Nessa reta final para o segundo turno a candidatura da Aliança Democrática tem que entender a novela pela sociologia e pela política. O cantor Sérgio Reis, autor da música mais tocada na roda dos peões, apareceu na festa de José Leôncio. Que a mulher do Pantanal, Simone Tebet, possa ajudar a campanha para um “larga mão” da Avenida Paulista pelo futuro dos filhos dos filhos dos nossos filhos no embarque da chalana da Esperança.

sábado, 8 de outubro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 33 - DESAFIOS NO SEGUNDO TURNO

Prorrogação

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Os resultados do primeiro turno das eleições brasileiras trazem várias lições para o país e para toda a América, que valem a pena assimilarmos. São de vários tipos, mas gostaríamos de nos concentrar em três: para os pesquisadores de toda a região; para Lula, para seu partido, para sua coligação eleitoral; e para os progressistas do continente.

Pela segunda vez em poucos meses, as pesquisas subestimaram o eleitorado de centro-direita e de direita na América. Foi o que aconteceu no Chile, tendo em vista a proporção muito maior do que as pesquisas apontavam, no referendo sobre a nova Constituição, no início de setembro. E agora, claramente, as pesquisas no Brasil também operaram em desenhos análogos sobre o voto a favor da centro-direita e da direita. Algumas pesquisas que lhe deram 48% estavam corretas na estimativa do percentual de Lula, mas quanto às centro-direita e a direita, a maioria das pesquisas previa entre 35 e 40% dos votos, e elas terminaram com 43%, uma diferença considerável.

A explicação mais provável em ambas as experiências – Chile e Brasil – é algo que já havia sido visto nos Estados Unidos da América (EUA) e em alguns países europeus, a saber: eleitores de centro-direita, de direita e/ou de extrema-direita relutam em confessar sua verdadeira intenção de votar ao pesquisador.

Essa síndrome, que nos EUA é uma teoria chamada de efeito Bradley, nasceu com a eleição para governador da Califórnia em 1982. Nessas eleições, o prefeito de Los Angeles, Tom Bradley (1917-1998), negro, estava à frente em todas as pesquisas. Ele perdeu para seu rival republicano George Deukmejian (1928-2018). A explicação encontrada pelos pesquisadores, que previam a vitória de Bradley, é que grande parte dos eleitores, mais de centro-direita, não quiseram admitir que jamais votassem num negro.

A lição para Lula e sua aliança é que, além da fragilidade que certamente se percebe nas duas casas do Congresso, onde a centro-direita e a direita alcançaram números melhores do que o esperado, o país permanece muito dividido. Se olharmos para os resultados desastrosos da gestão de Bolsonaro, em questões econômicas: na gestão da pandemia, na defesa do meio ambiente e no seu ridículo papel internacional, racionalmente poderia se esperar uma rejeição muito mais retumbante do eleitorado. Mas não é por esse parâmetro que as pesquisas deveriam ter ido. O povo obviamente votou; em parte contra o PT, em parte por causa do reacionarismo de Bolsonaro; mas não o abandonou por causa de critérios racionais por seu péssimo desempenho como presidente. Obteve quase dois milhões de votos a mais do que em 2018.


Isso significa que Lula, na prorrogação, tem tudo menos um programa para um mandato. Inteligentemente, o ex-presidente antes do início da prorrogação, falou pouco sobre o que planejava fazer e muito sobre o que havia feito durante seus anos como presidentes. Mas agora, por necessidade, terá que dizer, moderadamente, suas ambições sociais, ambiental, econômica e internacional dada a força que consolidou a centro-direita e a direita brasileira. Lula é um político inteligente, e com certeza saberá se alinhar com a realidade.

A lição para os democratas ibero-americana é que, apesar da pandemia, da contração econômica derivada dela a partir de 2020, da desigualdade, da péssima gestão da centro-direita e da direita em muitos desses países, os eleitores da região estão não estão dispostos a dar a seus governantes um mandato fora da revolução passiva. Querem alternância, querem mudança, querem uma política social ambiciosa, ousada e eficaz, mas não procuram uma revolução que não seja passiva. Concretamente, a centro-direita e a direita continental existe. Os resultados do Brasil e do Chile confirmam isso.

Teremos que ver com mais detalhes nos próximos dias e semanas porque os brasileiros votaram como votaram, qual é o perfil preciso das eleitoras e do eleitor da centro-direita e da direita, o porquê da opção inicial pelo reacionarismo de Bolsonaro e das eleitoras e eleitores de Lula, tanto em termos regionais quanto étnicos, em termos de gênero, religião, idade e inclinação política. Mas, por enquanto, essas três lições preliminares parecem ter chegado do primeiro turno das eleições brasileiras.

 

7 de outubro de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

SÉRIE ESTUDOS - RESENHA DO LIVRO LINGUAGEM DA DESTRUIÇÃO ALERTA SOBRE O BOLSONARISMO


Bolsonarismo como linguagem da destruição

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Starling, Heloisa Murgel, Lago, Miguel e Bignotto, Newton. Linguagem da destruição: A democracia brasileira em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 174 págs.

 

O início do século XXI encontrou intelectuais de várias experiências nacionais muito preocupados com o estado em que se encontra a democracia. A análise e as conclusões obtidas pela "intelligentsia" revelam crise funda deste sistema de governo. A crise tem se expressado de diversas maneiras, entre as quais a falta de interesse pela política, a diminuição do apoio a essa forma de governo e, sobretudo, a perda de confiança na democracia e nos atores políticos que lhe dão vida. Há apenas quatro anos, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt publicaram "Como as democracias morrem" (Rio de Janeiro: Zahar, 2018), em que a democracia aparece como sistema de governo muito deteriorado em termos de credibilidade, uma questão muito sensível se pensarmos que é a cidadania que vai às urnas.

Nesse cenário, Starling, Lago e Bignotto destacam as novas linguagens da destruição da democracia. O livro ilustra abundantemente as significativas linguagens que fraturam e enfraquecem esse sistema de governo entre nós. Combina, ainda, três bases teóricas – história, filosofia e ciência política – para analisar a experiência brasileira nascida do resultado eleitoral de 2018, que mostra as tentativas recentes de colapsar o sistema político. Do ponto de vista desses acadêmicos, incentivou-se a infiltração na estrutura do governo Bolsonaro de uma nova casta de políticos e líderes de diferentes áreas, com mandato democrático, que utilizam os próprios instrumentos do sistema para exercer o poder autoritariamente, às vezes aparentando estarem próximos do tipo ideal totalitário de Hannah Arendt (1906-1975). E são tão dogmáticos quanto às ideologias de igual estirpe concebidas nos séculos anteriores.

A semelhança com os anos 1920 e 1930 para por aqui. Lá havia o avanço do totalitarismo – o fascismo e o nazismo –, mas a nossa circunstância é completamente diferente. No arcabouço histórico, filosófico e político que fornece o sistema de governo democrático brasileiro, representantes eleitos exercem uma liderança autoritária que destrói até mesmo as formas mais simples de participação. Apesar de não advirem de golpes de estado de velho tipo, com origem militar e/ou cívico-militar, o governo Bolsonaro e o movimento que leva o seu nome cumprem uma trajetória que atenta contra o desenvolvimento participativo e representativo da sociedade, como se verificou durante várias décadas do século XX. Efetivamente, os golpes sangrentos, que custaram à vida de milhares de cidadãos, foram substituídos em nossos dias pelo advento de sujeitos autocráticos que exercem o poder, transgredindo instâncias de participação vital para a democracia.

Nesta ascensão ao poder, o livro atribui responsabilidade decisiva aos partidos políticos. Essas instituições é que deveriam resguardar o sistema político democrático, evitando a ascensão em suas estruturas de figuras autoritárias. Os políticos devem, portanto, ser guardiões da democracia e os partidos não podem sucumbir a outsiders e a figuras disruptivas que visam tão só o assalto ao poder. A preocupação dos textos gira em torno da preservação da democracia, insistindo na necessidade de resguardar dois princípios fundamentais: tolerância e contenção. Ambos devem ser garantidos pelas instituições que sustentam nosso sistema político.

A análise apresentada por Starling, Lago e Bignotto leva o leitor a reflexões sobre o governo brasileiro atual e sua reverberação em outros lugares do mundo, com os consequentes impactos nas formas de governança. O aviso fundamental de "Linguagem da destruição" concentra-se nos líderes políticos que assumem o poder democraticamente, mas transgridem autocraticamente as regras. Valendo-se dos fundamentos de uma sociedade tolerante, eles podem se expressar livremente e têm nessa janela a oportunidade de serem protagonistas das tentativas de derruição da democracia. Para tanto, colocam mais lastros na cruz da desigualdade seiscentista (o que é próprio da dimensão religiosa do bolsonarismo, que opõe a mística à racionalidade) e erguem empecilhos para a construção de um futuro mais equitativo e justo para todos os cidadãos.

 

24 de setembro de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 25 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

Eric Hobsbawm: uma vida pela Frente Democrática no Rio

Por Vagner Gomes de Souza

Em memória do professor e amigo Ricardo Oliveira que me chamava carinhosamente de "Hobsbawm do Jeannette".

Um historiador que foi sucesso de vendas de livros no Brasil, mas provavelmente o grande público o conhece por “terceiras” leituras e interpretações. A tradutibilidade de Eric Hobsbawm do mundo acadêmico para o leitor médio brasileiro o “enquadrou” sob as lentes de um marxismo reducionista próximo ao perfil nacional-popular. Portanto, ainda temos um Hobsbawm desconhecido e que incomoda uma “esquerda acadêmica”. Mencionam leituras de Pierre Bourdieu, Michel Foucault e criam um imaginário E. P. Thompson para “devorar” a Grande Política nesse grande pensador inglês. Na sequência, o autor de Ecos da Marselhesa não encontra eco na prática da política diante de teias de debates inorgânicos.

Sua profissão de fé pela Frente Única contra o fascismo e todas as mazelas do mundo pós-moderno que emergiu após a “Era dos Extremos”. De herdeiro da cultura política do “antifascismo”, se transformou num pensador de movimentos sociais. Menos República e Democracia e muito mais a análise do banditismo social. O público brasileiro provavelmente se encanta com a erudição do autor inglês, mas reage a sua política denunciadora dos erros sectários nas posturas de uma Esquerda incomodada com os atributos populares. As “luzes” só partem da Zona Sul carioca diante das “trevas” desconhecidas numa “Baixada Fluminense”. Assim, não se aplica as consequências políticas de seus estudos da questão que aproxima os bandidos do poder.

Os juízos da política no “tribunal da História”, que Marc Bloch muito bem condenou, faz um “curto circuito” na formação de dirigentes da política. Por exemplo,  na contracapa do livro de Era dos Extremos (1995) temos os breves comentários de William Waack, Perry Anderson e Elio Gaspari. Essa tríade poderia ser muito improvável para aqueles que não entendem a postura da política “frentista” nos dias atuais. Todavia, o ser político de uma obra transcende as gerações e as linhas da reflexão política. Imaginemos que há os desavisados que “cancelariam” um comunista inglês pela sua proximidade com o atual jornalista da CNN. Por outro lado, em sua melhor biografia, lançada e também não lida no Brasil, Eric Hobsbawm: Uma vida na história, Richard J. Evans comenta sobre o encontro Hobsbawm e Boris John Johnson que fez questão de lhe demonstrar ser um leitor devorador de seus livros (outra possível explicação para suas atitudes sobre a Pandemia da COVID 19 após sua internação).


Na biografia citada acima, há um reencontro entre dois ex-presidentes do Brasil. Fernando Henrique Cardoso atribui a Hobsbawm a característica de ser uma pessoa simples e encantadora. “Era um erudito que dava relevo ao essencial e sabia escrever.” Enquanto, o ex-Presidente Lula escreveu uma breve apresentação que anteciparia um convite para um certo Geraldo. Algo semelhante observamos nas linhas da manifestação pública de FHC sobre as eleições de 2 de outubro. Temos condições em reverenciar nas urnas os ensinamentos do autor de Rebeldes Primitivos.

Entretanto, não se ler Hobsbawm com um apuro na política de Frente é o que entrava até alguns historiadores no mundo da política no Estado do Rio de Janeiro numa sinuca diante da inversão dos “rebeldes primitivos”. Se transformaram em “primitivos rebeldes” ao reagirem a ampliação do diálogo frentista com as forças do atraso. O historiador inglês muito bem soube lidar com os ensinamentos do O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, as máscaras que encobrem os personagens numa conjuntura e suas devidas consequências. Assim, alimenta um “lavajatismo” da esquerda muito presente no Rio de Janeiro com base numa região política que sempre votou na UDN até o golpe de 1964.


Assim, o Rio de Janeiro necessita muito de um encontro para pensar e refletir sobre as ideias de Eric Hobsbawm, pois nosso pensamento ilustrado francês althuseriano na esquerda carioca se fragmentou numa diversidade de ideias fora do lugar em derivas de muitas ideologias soberanas e/ou soberbas do eu. Seria necessário um reencontro com a Grande Política que elegeu Negrão de Lima ou que fez nascer a Frente Ampla (Jango, JK, Lacerda), levou o “Amaralismo” a se abrigar no MDB e colocou numa mesma mesa dois adversários de Segundo Turno das eleições de 1992 (César Maia e Benedita da Silva). Ainda há tempo para que o ensinamento do historiador inglês se faça na história fluminense mesmo que não seja na “pureza” que muitos julgam defender.


domingo, 18 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

Hobsbawm, História & O Poderoso Chefão

Por Pablo Spinelli

À memória de Jabor, de Milton Gonçalves e aos 30 anos do Impeachment de Collor

 

O historiador Eric Hobsbawm foi um fenômeno na venda de livros para um público leitor leigo – especialmente a partir dos anos 1990 com o bem-sucedido “A Era dos Extremos – o breve século XX: 1914-1991”[1] – o que não significa que tenha sido realmente lido e analisado, e mesmo hoje, ao se analisar a bibliografia nas disciplinas de cursos de ensino superior no país é perceptível seu lento desaparecimento quando comparado há duas décadas.

Por mais que sua identificação com o marxismo – foi membro do Partido Comunista britânico, um partido muito discreto dentro no contexto dos partidos comunistas europeus, mas que muito contribuiu para a resistência ao fascismo e na socialização de acadêmicos com o movimento operário inglês.[2] Sua enorme erudição enciclopédica e sua formação política fez estudar movimentos camponeses rurais das Américas – o termo cunhado por ele de “banditismo social” para o fenômeno, dentre outros, do cangaço brasileiro é encontrado em qualquer livro didático de História no país -; com estudos no desenvolvimento da Revolução Industrial inglesa ao jazz, Hobsbawm entrou para a historiografia e no mundo leigo pela tetralogia das “Eras” para explicar a formação; consolidação; expansão; crise e reconfiguração do mundo burguês. [3]

Atualmente, há no meio acadêmico novos olhares da historiografia como “história global” e “história pública” e pelos motivos expostos acima, nos surpreende a raridade ou o sumiço do historiador inglês na bibliografia estudada nesses cursos, pois o historiador teve papel de destaque em ambos os temas. É possível que seja reflexo da persistência do pós-modernismo ao ver a sua obra como uma “grande narrativa” (mesmo que tenha escrito um livro falando das fraturas nos tempos modernos) ou por ser um homem branco europeu (nascido no Cairo e de origem judaica) heteronormativo. Cumpre destacar uma faceta desse historiador que não ganha tanto relevo em suas obras e que nos permite estudos instigantes sobre esse objeto espalhado em várias obras do autor: o cinema.

Eric Hobsbawm recebendo condecoração da Rainha da Inglaterra, em 1998 I (Reprodução: Financial Times)

Hobsbawm, um crítico irônico dos movimentos e manifestos vanguardistas – que muito nos lembram da abordagem do nosso poeta Ferreira Gullar – identificou somente duas manifestações vanguardistas que vieram da América e prosperaram: o jazz e o cinema (criado na Europa e metamorfoseado em produto de massa nos EUA). Foi e é o cinema uma ponte ininterrupta entre os artistas europeus e a indústria americana. O mais popular e genial personagem do cinema foi o inglês Charles Chaplin, assim como o estúdio Universal (de um alemão) bebeu na fonte da literatura do final do XIX para consolidar seu perfil em filmes de terror como Drácula; Lobisomen e Frankestein. O historiador destacava a importância do cinema soviético menos pelo perfil propagandístico e mais pela revolução em sua técnica, como o feito pelo icônico Sergei Einsenstein de “Outubro” (1927) e “Encouraçado Potemkin” (1925) – cuja montagem serviu de base para a revolução no cinema feita pelo recém-falecido Jean Luc-Goddard nos anos 1960.

O cinema, para ele, além do fascínio da imagem em ação tinha um papel democrático porque incorporava uma massa de iletrados ao lazer e que alcançou uma escala internacional. No mundo ocidental a produção de Hollywood era industrial – uma fonte importante para geração de empregos como na Grande Depressão de 1929 – e incorporava de artistas a técnicos europeus que migraram no período entreguerras e, em especial, na ascensão dos fascismos na Europa. De Greta Garbo a Otto Preminger; de Fritz Lang a Marlene Dietrich; de Billy Wilder a Alfred Hitchcock, o cinema americano era inclusivo, sem muros e, com exceção de negros, latinos e asiáticos (cujo cinema japonês era igual ao americano quanto à produção), permitia o esplendor da tela (muitos dos grupos excluídos das telas eram incorporados nos bastidores e com presença expressiva em sindicatos) em milhares de cinema mundo a fora.

Por outro lado, o autor, contemporâneo do fascismo, nazismo e stalinismo, fez eco aqueles que viram no cinema uma máquina poderosa de propaganda de regimes políticos. O “American way of life” vendido nas telas (uso de cigarros e automóveis, por exemplo) foi uma ferramenta poderosa nas mãos de tiranos. Porém, diferente de analistas pessimistas como Adorno, Eric Hobsbawm via no cinema uma perspectiva poderosa de influir na denúncia, na crítica social, no retrato de um tempo, na adaptação literária que permitiria a popularização de autores como John Steinbeck (As vinhas da ira) e o desconhecido B. Traven (O Tesouro de Sierra Madre).

Por fim, Hobsbawm em um artigo sobre os usos e abusos da memória sobre um bandido siciliano que gerou livros e adaptações cinematográficas, nos deixou um legado valioso enquanto crítico de cinema e historiador, trajetórias sincrônicas na análise de uma obra. No artigo intitulado “Bandido Giuliano[4], o autor, que estudou “rebeldes primitivos”, começa a falar do fenômeno popular que foi e é o filme O Poderoso Chefão, que nesse ano completa meio século. Sua enorme perenidade no imaginário coletivo, a presença na cultura pop nas mais diversas faixas etárias deve-se, segundo Hobsbawm, à perspectiva de organização, planejamento, valores familiares que se incorporam a um estilo empresarial na cadeia de comando (o filme foi lançado em plena Guerra do Vietnã).

A máfia não era a de Bonnie, Clyde, Dillinger, mas a de Vito Corleone e uma hierarquia definida. A família não era diversa da gestão de empresas que passam por gerações – em uma época que não se mascarava a sucessão com termos como meritocracia - e nem era refratária ao Estado, ao contrário, bancava candidaturas de senadores e deputados; subornava juízes e delegados. Por sua vez, o historiador-crítico percebe que a aura dos Corleone é fruto da utopia romântica de um passado no qual as autoridades eram respeitadas; os chefes eram pais substitutos de imigrantes pobres como os italianos do Sul italiano que “iam fazer a América”. Em uma frase que pode gerar o “cancelamento” de Hobsbawm e do filme de Coppola, “os homens eram homens, e as mulheres eram felizes com isso”[5]. Hobsbawm, de forma perspicaz fez um paralelo da vitória de uma família que migrou de uma ilha na Europa nos EUA com a trajetória da mais superestimada e pop família americana, os irlandeses Kennedy; daí seu sucesso no inconsciente coletivo americano além dos valores destacados acima. Ainda nesse artigo, há uma excelente análise comparativa sobre o enfoque dado pelo escritor Mario Puzo (de O Poderoso Chefão) e do filme Francesco Rosi à trajetória conturbada do bandido Salvatore Giuliano – um miliciano que servia aos interesses dos potentados locais da Sicília que depois foi traído nesse e um “Robin Hood” belo, varão e defensor da comunidade aldeã para aquele.

Por fim, Eric Hobsbawm nos deixa um legado nesses tempos fraturados. Ele foi um intelectual no espaço público, sabia escrever para o público leigo, lido por pessoas de ideologia diversa da dele, mas que sabia escrever como se dialogasse com o leitor sentado em um sofá. Seu espírito renascentista – fruto de sua formação política -  lhe deu um inigualável posto no terreno da História, algo esmagado pelos particularismos e sectarismos seja da política ou d academia ou de ambos. A tarefa que se impõe é tirar os livros desse autor da estante e começar a realmente lê-lo.


[1] A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[2] Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Especialmente os capítulos “Contra o fascismo” e “Ser comunista”

[3] Estamos nos referindo aos livros Era das Revoluções : 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009; Era do Capital: 1848-1875, 1996. São Paulo: Paz e Terra; Era dos Impérios: 1875-191, São Paulo: Paz e Terra, 1988 e o já citado Era dos Extremos. 

[4] In. HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

[5] Idem. p.278.

 

 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

RIO DE JANEIRO - ELEIÇÕES PARA O SENADO/2022


 Professor Luiz Eduardo Soares abraça o Deputado Estadual André Ceciliano

O que eu sei sobre André Ceciliano

 

Luiz Eduardo Soares

 

Nós vivemos sob o signo da guerra. Não por acaso, o poder é patriarcal. A violência é masculina. Mais de 90% dos assassinatos no mundo são cometidos por homens. Eles, nós, somos educados para terceirizar para o falo nosso valor. Por isso, ficamos, literalmente, pendurados na brocha. Inseguros, somos muito perigosos. Não é coincidência que os fascistas se oponham tão ferozmente ao que denominam “ideologia de gênero”.

Eles não odeiam as mulheres, individualmente, mas o feminino como signo de um mundo que ignoram e temem, um mundo que poderia vir a ser hostil ao autoritarismo falocêntrico e à exploração mercantil. Eles odeiam o potencial de construção política do feminino. Eles odeiam a população LGBTQIA+ porque temem a subversão dos papéis tradicionais, promovida por quem ousa privilegiar a liberdade fluente do próprio desejo e experimentar a indisciplina no jogo das identidades. Às vezes, na esquerda, nós escorregamos, seja por negligenciar como “identitárias” as lutas que não compreendemos, seja por compartilhar preconceitos machistas (os quais não fazem a cabeça apenas dos homens).

 Não raro, cobramos postura esteticamente combativa de nossos representantes, exigimos que nossos candidatos ajam como guerreiros, gritem, hostilizem adversários, adotem a linguagem verbal e corporal do embate. O homem de esquerda se estiver na vida política, deve exibir disposição para o confronto. Com frequência, entre nós, há um veto estético a quem não se encaixa no modelo de inspiração militar. Um veto à fala mansa, ao estilo amável, ao articulador arguto que alcança finalidades estratégicas por meio da negociação, sem ardis e bravatas. Negociar não significa ceder, transigir, trair princípios e renunciar a compromissos, mas reconhecer com realismo qual a correlação de forças em cada caso e avançar, passo a passo, sem necessariamente cantar vitória. Foi assim que André Ceciliano, como presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio, conquistou a vitória extraordinária que poucos estão vendo. Sem alarde, sem autopromoção, pé ante pé, sem dós de peito retóricos, sem brados doutrinários, com candura e respeito, fazendo valer a palavra empenhada. Foi assim, com essa incrível coragem de ser simples e gentil, que André impediu que a esmagadora maioria bolsonarista na ALERJ fizesse avançar suas pautas conservadoras. O triunfo foi resistir em tempos tão sombrios e, em meio à tempestade fascistóide, promover avanços progressistas e democráticos. Os exemplos são inúmeros. Não se enganem com o jeito modesto do André: o Rio de Janeiro pode dar ao Senado um dos mais competentes, sensíveis e leais políticos brasileiros. A luta também se faz com a palavra serena e afetuosa, com o sorriso doce e a empatia. Nem sempre a força e a firmeza estão onde parecem estar. A luta política muitas vezes pode ser vencida sem armas e gritos de guerra. O Rio está farto de sangue, fome e iniquidades. Chegou a hora da virada com Lula, Freixo e André Ceciliano.

BOLETIM ROMA CONECTION - NÚMERO 32 - UM BALANÇO SOBRE A LEI DE RESERVA DE VAGAS


 Sobre a importância da reserva de vagas na educação no bicentenário brasileiro


                                                                                   Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Tudo começou em fevereiro de 1999. A deputada Nice Lobão, recém-eleita e empossada em primeiro mandato pelo Partido da Frente Liberal (PFL) pelo Estado do Maranhão, tornou-se conhecida por ser autora do Projeto de Lei (PL) N° 73, de 1999, que propôs a reserva de 50% das vagas em universidade públicas para estudantes oriundos de escolas públicas. O projeto de lei tramitou por 13 anos até chegar à sanção com vetos em 2012.

Hoje, preocupados com os desafios de nosso tempo pandêmico, os brasileiros provavelmente ainda dedicam pouca atenção a década da Lei Nº 12.711 de 29 de agosto de 2012, a era turbulenta que se seguiu. Isso é lamentável, pois esse período histórico merece nossa observação ardente.

Questões que agitam a política brasileira hoje – acesso aos serviços cidadãos e direitos, os poderes relativos aos governos nacional, estadual e municipal, a relação entre democracia política e a economia, a resposta adequada a pandemia – todas essas são questões que impactaram a década dessa lei. Mas essa época tem sido mal compreendida.

A década da reserva de vagas refere-se ao período, datado de 2012 a 2022 (ano do nosso bicentenário), durante o qual a lei e a Constituição da nação foram reescritas com o propósito de garantir os direitos básicos da educação a um conjunto enorme de jovens, que permitisse um tratamento equânime para a chegada da juventude em todo o sistema educacional do nível médio ao superior. Durante essa década, esses anos ainda não foram amplamente vistos e entendidos como um ponto importantíssimo da saga do avanço da democracia brasileira. De acordo com essa visão, o papel de justiça reparadora que nos empenhamos, estabeleceu um novo regime educacional, promovendo o gradativo processo de percepção e entendimento no exercer direitos democráticos e republicanos. Os heróis dessa história somos todas e todos que restauraram o amplo acesso à educação do Grande Número.

Este retrato, ainda não recebeu expressão acadêmica nas obras do início do século XXI. Ele fornece uma base intelectual para a abertura do sistema educacional contra qualquer segregação e privação de direitos. Daí que todo o esforço para restauração de direitos, implica numa reconstrução e afastamento de horrores que poluem a nossa história.

Os historiadores não rejeitaram essa percepção lúgubre, embora ela seja disputada na imaginação popular. Mas para quem acompanhou a década em tela, sabemos que muito se avançou por conta dessa tentativa reparadora.

A reserva de vagas realmente começou após 11 de outubro de 2012, quando se editou o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. O Decreto institui o Comitê de Acompanhamento e Avaliação das Reservas de Vagas nas Instituições Federais de Educação Superior e de Ensino Técnico de Nível Médio, para acompanhar e avaliar o seu cumprimento. Importa reter que a reserva de vagas concede uma oportunidade educacional à maioria da população, desde que se encontrem dentro dos critérios estipulados para as vagas, mas nada disse sobre os direitos que essas vagas comportam além da admissão. Em vez de um projeto integral para as vagas, esta foi uma medida parcial de direito à educação no sentido tão só de acessibilidade. Claro que ao longo dessa década da reserva de vagas, como em outras questões, as ideias entorno da sua operacionalidade se desenvolveram.

Quem sancionou a lei com veto (um outro capítulo dessa história que é a Mensagem Nº 385, de 29 de agosto de 2012) não acompanhou sua operacionalização até o final do mandato. Sobre o veto parcial, o Congresso não o derrubou, mas ainda assim se promulgou uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei de Reserva de Vagas, já alterada e ainda em vigor hoje. Ela afirmou que a cidadania educacional era para todos os nascidos no Brasil, independentemente da raça (inclusive dos povos originários).

A lei passou a exigir que todos os cidadãos usufruíssem dos direitos educacionais básicos da melhor maneira. A mensagem de veto dizia veladamente que poderia se incorrer numa discriminação reversa, ao se usar o Coeficiente de Rendimento (CR) como critério adequado para a reserva de vagas, uma vez que “não se baseia em exame padronizado comum a todos os candidatos e não segue parâmetros uniformes para a atribuição de nota.” De fato, na ideia de que expandir os direitos educacionais de alguma forma, não deveria se valer de mecanismos que pudessem vir a vedar inadvertidamente o Grande Número ao acesso as vagas. Assim, o Veto Nº 32/2012, de 30 de agosto não recebeu relatório pela Comissão Mista do Congresso Nacional e assim não foi apreciado.


Nice Lobão numa reunião com apoiadores 

O acompanhamento operacional seguiu com os sucessores, Michel Temer e Jair Bolsonaro. O primeiro, outrora celebrado como um heroico defensor da Constituição, hoje é visto pelos historiadores como o que alterou a lei da reserva de vagas ao sancionar a Lei Nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016, e se encontra como uma figura soturna dessa década. Ele foi incorrigivelmente relutante em ouvir críticas e foi incapaz de trabalhar com a chapa que o elegeu a Vice-Presidente da República. Temer na sequência editou o Decreto Nº 9.034, de 20 de abril de 2017 que altera o Decreto Nº 7.824 que regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, decorrente da alteração da lei de reserva de vagas. O Decreto modifica a fórmula de cálculo da reserva das vagas, reconfigurando o acompanhamento e metodologia avaliativa do seu cumprimento. O segundo, que se encontra bem perto de sair do governo, que por todos os meios atuou obsessivamente no sentido de erradicar as obras da democratização do país, e por conseguinte, a lei de reserva de vagas.

Com essas medidas, a discussão sobre a reserva de vagas mudou de patamar, o que em si implica uma nova configuração avaliativa dessa política, uma vez que ao ampliar a incorporação de novos possíveis beneficiários dela, não trouxe consigo a questão orçamentaria necessária para esse devido acolhimento.

Inclusive, a sanção de 2016 seguia-se a um confronto político importante, a luta dentro do processo de impedimento da Presidência da República Interina, e a assunção definitiva e término da interinidade. Daí que o Congresso ter incorporado a cidadania educacional as/os deficientes possibilitou a ampliação da igualdade legal na legislação infraconstitucional. Também marcou uma mudança significativa no poder federal, capacitando o governo nacional para proteger os direitos educacionais dos cidadãos.

Os Decretos das reservas de vagas inauguraram, cada qual a seu modo, um período de ampliação do Estado (Hegel e Gramsci), quando a comunidade politicamente mobilizada, com seus aliados, levou um novo contingente ao mundo educacional em todo o país. Pela primeira vez, os pretos, pardos, indígenas, e os cidadãos com deficiência, adentraram em grande número nas instituições federais de ensino técnico, de nível médio, e nas universidades federais.

A maioria das unidades educacionais envolvidas na reserva de vagas, implicou numa mudança sociológica de grande relevância e em duas ondas. Com o advento de pretos, pardos e indígenas e os cidadãos com deficiência no sistema educacional, isso despertou uma pauta de pesquisa ainda em curso sobre os efeitos dessa política. Tanto os artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, estabeleceram métricas a serem realizadas sobre os novos integrantes do sistema educacional que não se encontram disponíveis.

A reserva de vagas tem ainda que ser estudada no impacto, e no que também possibilitou na consolidação de novas percepções dos domiciliares, responsáveis, e familiares que acompanharam essa incorporação. Até porque, ao desonerar um pouco economicamente esses cidadãos com despesas educacionais, isso aduz uma relação ao ideal de igualdade, pois implica em possibilitar a elevação das classes mais baixas da sociedade.

Está claro que a reserva de vagas deve compor um sistema abrangente de erradicação das desigualdades. É por isso que devemos fazer a avaliação dessa política pública, por esse conjunto de variáveis elencadas e outras que por ventura se façam necessárias, uma vez que representa até aqui uma inspiração para todo o mundo.

Embora ainda não realizados os artigos 7º e 8º da Lei de Reserva de Vagas, no entanto, permaneceram a serem apresentadas, o que implica numa vacância que não deve ensejar solução de continuidade a essa política. Inclusive por que com a alteração legal de 2016, é de bom tom indicar o novo marco de 2026, para se valer da métrica prevista no próprio diploma. Além disso, como a vigência legal prevista da década do diploma originário de 2012, implica reconhecer até aqui, que essa política fornece a base legal para uma revolução dos direitos educacionais.

Cidadania, direitos, república, democracia – enquanto estes conceitos permanecerem incompreendidos, o mesmo acontecerá com a necessidade de uma compreensão precisa, da reserva de vagas. Mais do que a maioria dos assuntos históricos, como pensamos sobre esta década, realmente importa, pois nos força a refletir sobre o tipo de sociedade que desejamos para o Brasil e o mundo.

 

1 de setembro de 2022


[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.