domingo, 31 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 09


 JK ouve o Clube da Esquina em Diamantina (MG) em 1971

O silêncio de Saladino

Tariq Bastos de Souza

Vagner Gomes de Souza

 

Na magnus opus de Alan Moore, “Watchmen", observamos um personagem icônico que  é Dr. Manhattan, conhecido por seus poderes divinos, incluindo a onisciência que lhe permite ver passado, presente e futuro simultaneamente. No desfecho da história em quadrinhos, ele ressalta que "nada nunca acaba", enfatizando a interconexão temporal. Essa perspectiva falta ao atual mandatário da República, como evidenciado em suas declarações sobre eventos históricos recentes e sua postura em relação à democracia.

Falar sobre o Holocausto deve ter criado temor ao Presidente circunscrito as “bolhas” do identitarismo. Falaremos na Ditadura como só “direito de fala” de quem tenha vivido aquela época. Não nos esqueçamos de sua fala sobre o AI 5 há quase 50 anos num antigo Teatro do Rio de Janeiro. O AI 5 do trabalhador sempre foi o AI 5 foi a correção do saudoso Luiz Werneck Vianna.

Ao minimizar a importância de eventos passados e focar em questões imediatas, como a tentativa de Golpe de Janeiro, a assessoria do atual mandatário da República revela uma visão míope da história e suas ramificações. O “sindicalismo de resultados” se transformou num pragmatismo eleitoral diante dos olhares nos índices de popularidade. Falta-lhe o reconhecimento de que episódios como o golpe de 1964 estão intrinsecamente ligados ao presente, especialmente considerando a retórica e práticas reminiscentes do governo anterior, que ecoava a ditadura militar.

Uma oportunidade perdida em se valorizar as forças políticas do centro que foram vítimas do extremismo de uma Guerra Fria. De mãos dadas com o Presidente da França que deixou o legado da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. O silêncio do atual mandatário da República se assemelharia ao ficcional silêncio de Saladino na época das Cruzadas. Os tempos das Cruzadas foram evocados polos extremistas da direita e devemos enfrentar com as sutilezas da “virtú” de Maquiavel.

Essa falta de perspectiva histórica compromete a capacidade do governo da Frente Democrática de consolidar a democracia, deixando espaço para a manipulação política e a subversão dos ideais democráticos. O negacionismo da História que se trata de uma ciência humana. Ao negligenciar essa oportunidade a partir do uso das fontes históricas, ele inadvertidamente permite que outros preencham o vácuo político, ilustrando assim a constante ressonância do passado no presente: nada nunca verdadeiramente chega ao fim. Abre um espaço no vácuo do centro político, pois se faz uma fuga para mais adiante.

Perde o presidente a oportunidade de lutar por um Brasil que foi roubado dos brasileiros naquele longínquo ano de 1964. Havia a perspectiva de um Brasil com reforma agrária e com nacionalização das riquezas, independente  na política externa. O silêncio diante da Cruzada, como o presidente se põe, nos deixa aberto para que outras forças reacionárias  ou de extrema direita pautem o nosso "presente passado", dentre elas o ex presidente que ainda não é carta fora do baralho totalmente.

Os sinais dos cavaleiros medievais se aproximam com a regressão da mentalidade criativa e a negação do uso da racionalidade.  O “silêncio sectário” deixa figuras como JK e sua tentativa de frente ampla na obscuridade, assim como os militares legalistas que foram expulsos e difamados pelo regime militar, estes esquecidos até pela esquerda que não estuda figuras como o Marechal Lott apenas por serem militares. Pouca política e pouco estudo na memória de 1964 é uma demonstração do “presentismo” como tema que pauta nosso mandatário da República.


sábado, 30 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 08


                Sede da União Nacional dos Estudantes em chamas após 1964

A voz que soa de 1964

Isabella Souza da Silva


A proximidade da data do final do mês de março traz a rememoração dos fatídicos vinte e um anos do que se iniciou com discursos nacionalistas e ferozes contra o comunismo, e logo após adentrou-se aos eventos de repressão política e, do que anteriormente já foi arquitetado em ditaduras de inúmeros países latino-americano, o desmonte da democracia.

O ano sexagenário que se completará neste final do mês do golpe militar de 1964 é oportuno e de suma importância abordar novamente sobre as lacunas que esse momento emblemático enraizou no país, vigente aos velhos e novos personagens e capítulos que os quatro anos anteriores da gestão de Jair Bolsonaro transparecem no atual governo de Frente Democrático. Seu saudosismo á ditadura e seu governo militarizado foi o reflexo perigoso dessas correntes e da distante plenitude de vivermos numa democracia saudável.

Consideramos pertinente usar de um dos textos fundamentais do sociólogo Luiz Werneck Vianna, "1964". O texto onde ele nos oferece uma visão abrangente dos aspectos anteriores do deporte de João Goulart até a tomada do Estado pelos militares. Nesta dissertação, Werneck faz um apontamento acerca do período do golpe militar ser a continuação do Estado Novo de Getúlio Vargas. Embora suas semelhanças sejam pelo totalitarismo institucionalizado nos dois fatos, a certas divergências nos dois regimes. Werneck prossegue com a ideia sobre a Era Varguista ter seguido um percurso de estilo de modernização europeia e Durkheimiano, ter levado em consideração a economia, política e organização social, evitando o isolacionismo dessas esferas a qual foi conquistado pela introdução da fórmula política do cooperativismo. Neste mesmo parágrafo, Luiz Werneck faz a comparação entre Oliveria Viana e o Getúlio Vargas, que partilharam de concepções organicistas e comunitárias da ordem nacional e se mantendo obstruídos em relação ao individualismo e o mundo livre de interesses.


Luiz Werneck Vianna em campanha para Deputado constituinte (1986)

Entretanto, 1964 foi de teor americanizado e os recursos da política cooperativista era meramente instrumental, assim como se alinhou em sua base teórica da modernização social Americana. Seguindo um panorama diferente do que se antecedeu em 1937. Pois até então, a assimetria da economia, política e organização social de 1964 estavam divididas, onde a economia disparava sucessivamente e as duas últimas áreas políticas estavam paralisadas pelo autoritarismo.

Luiz Werneck finaliza o texto enfatizando que embora o golpe militar tenha ficado no passado, ainda enfrentamos problemas de construção da ordem. Uma indagação certeira diante do atentado antidemocrático a Praça dos Três Poderes em oito de janeiro de 2022, um ocorrido sucessivo a uma derrota eleitoral e que reforça as maléficas consequências do convênio entre o Estado e setores das FFAA.

Com o auxílio do texto de Werneck Vianna pudemos analisar os efeitos colaterais persistentes no núcleo da política e sociedade atual referente a modernização conservadora inserida há seis décadas atrás no nosso contexto de Revolução Passiva. Contudo, a constituinte de 1988 foi recebida com entusiasmo pelos segmentos da sociedade brasileira por ser a consequência de longa resistência da mobilização popular. De certo que ainda há muitos impasses a serem ultrapassados até o alcance de uma ordem mais justa, visto que o país possui um longo histórico de abalos democráticos e o reflexo do regime militar ainda seja visível. No entanto, a união da camada popular deve ser contínua, a fim de guiar o país em direção a um futuro com a democracia socialmente consciente pelos caminhos da cidadania.


ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 07

História e memória: os 60 anos da Ditadura Militar e as narrativas em disputa

Lucas Azedias

 

“A história é "uma resposta a perguntas que o homem de hoje necessariamente se põe."” —  Lucien Febvre

  

Debater as rupturas e continuidades políticas de um dos episódios mais tristes da história brasileira parece um contrassenso em um mundo onde os conceitos Ditadura e Democracia bastam para explicar todos os processos históricos estranhos às experiências ocidentais de democracia[1].

A vulnerabilidade conceitual que paira sobre a conjuntura política para além do ocidente é, sem dúvida alguma, digna de observação aos que pretendem enxergar a história através de seus processos, afastando-se desta ótica de esquemas herméticos de interpretação da conjuntura comum aos formadores de opinião que fazem dos meios de comunicação um espaço de instrumentalização de conceitos e narrativas.

Isto posto, é de observar que também paira sobre a conjuntura brasileira uma memória afetiva acerca da presença dos militares no comando do Estado brasileiro quando do golpe que neste ano completa 60 anos de existência. A disputa deste espaço de memória, neste caso, sempre esteve em vias de derrota pelo campo democrático. A rejeição do historiador na figura da autoridade sobre a ciência histórica é também, sem dúvidas, um desafio para este campo.

Desafio maior, talvez, seja para os novos historiadores que vêem suas pesquisas em descrédito fora das bibliotecas empoeiradas da academia. A invalidação da cientificidade das pesquisas destes historiadores age, como consequência, em detrimento da crença de que ter vivido os anos de chumbo legitima inquestionavelmente a experiência da população que compartilha deste estranho afeto. Neste caso, a cobrança pela imparcialidade do historiador quando da análise de um fato é deixada de lado, ao passo que os “sobreviventes da ditadura” não se enxergam como mentes pensantes passíveis de atribuir aos acontecimentos o mesmo viés ideológico que tanto acusam os historiadores. A diferença de ambos, no entanto, não seria moral ou ideológica, mas metodológica. 

Diferenças metodológicas à parte, uma coisa é certa: todo discurso é político. A negação de tomar partido em detrimento da neutralidade, comum aos críticos da história enquanto ciência, já é a manifestação do discurso politizado. Ainda assim, é papel do historiador que pensa seu ofício a partir da ética necessária à prática da pesquisa um afastamento emocional de seu objeto, para que metodologicamente lance sobre ele suas indagações e tenha como resultado as respostas que se aproximem ao máximo do que de fato foi a realidade. É pensando nisso que se torna urgente e inadiável a necessidade de cada vez disputarmos a opinião pública sobre temas como este. Deixar que o apagamento histórico, sem compromisso com a verdade e a seriedade da história brasileira, domine os meios de comunicação é um erro que pode voltar a reproduzir ataques como o de 8 de Janeiro.

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Nota do Editor: as imagens do corpo desse artigo foram acessadas ao acessar a interessante reportagem "Os evangélicos e a ditadura militar" de Rodrigo Cardoso na revista IstoÉ, 12 de maio de 2021 o que demonstra a percepção das citadas narrativas entre evangélicos numa intervenção de pesquisador. https://istoe.com.br/141566_OS+EVANGELICOS+E+A+DITADURA+MILITAR/




[1] As experiências Russas e Chinesas são exemplos desta vulgarização conceitual. No Livro China: o socialismo do século XXI, Elias Jabbour e Alberto Gabrielle destacam a forma como o senso comum tem reproduzido um juízo de valor acerca destas experiências ao passo que ignoram a historicidade e as especificidades históricas de cada um deles.



ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 06

Tropas do Batalhão Anhangüera REC-TC marcham de volta para a capital, após mobilização no dia 31 de março de 1964, dia do golpe militar

Foto: Acervo Estadão / Estadão

1964: A luz da longa duração

Pacelli H S Lopes

 

          Em 31 de março de 2024, o Golpe Civil-Militar de 1964 fará 60 anos. Diante das atuais disputas narrativas, é crucial para nós, historiadores, reafirmar a importância de não analisar fatos históricos isoladamente, para evitar um mundo despolitizado.

          Por essa razão, é necessário conectar a curta duração dos fatos de 1964 a média e longa duração que constituem a história nacional. Precisamos refletir: Como o ano de 1964 se liga a 1822, 1889 e a 1930? Algumas ações dos atores envolvidos nos antecedentes que levaram a 1964 e nas suas consequências nos permite compreender os vestígios da longa duração?

          Em um percurso tortuoso para nossa república chegamos aos idos de 1964. Nos primeiros anos do governo militar a conclusão que se poderia ter era que a nossa predileção pela revolução passiva terminou. Isso ocorreu devido à reforma liberal dentro do Estado, que valorizava o mercado em vez do setor público, procurou despolitizar a economia e abandonar uma política externa independente. Outra conclusão possível, no caso da observação se restringir aos primeiros anos do regime, é a de que a tradição ibérica teria chegado a seu fim.

          A antítese do regime surgiu de sua própria modernização conservadora, incitando estudos e necessidades para superar o autoritarismo, visando a restauração da democracia. A superação do regime ditatorial não foi resultado de revolução armada, mas sim de negociações entre vários atores, através de uma frente ampla, culminando no retorno da democracia.


Escolhemos analisar a vida de Afonso Arinos de Melo Franco[1] que durante sua trajetória demonstra como a longa duração, esse tempo lento e quase imperceptível é um imperativo nas nossas vidas. Nascido em Belo Horizonte em 27 de novembro de 1905, Arinos faz parte de uma linhagem consagrada de políticos e intelectuais brasileiros.

          Destacou-se como professor de história e direito constitucional em várias universidades. Trabalhou no Banco do Brasil, foi Ministro das Relações Exteriores em 1961 e Diretor do INDIPO na Fundação Getúlio Vargas. Além disso, atuou como deputado e senador em diferentes períodos.

          Interessamo-nos pelas posições políticas do ator de tradição ibérica no século XX. Cofundador da UDN e autor do manifesto inaugural, este criticou fortemente o Estado Novo. Em 1947, opôs-se à cassação dos mandatos do PCB, contrariando a maioria da UDN.

          Este foi contra a eleição de Juscelino Kubitschek, já o seu apoio a Jânio Quadros o permitiu alçar a posição de Ministro das Relações Exteriores. Como ministro, ele promoveu uma nova política externa brasileira. Abandonou o alinhamento automático com o bloco ocidental e defendeu o restabelecimento de relações com países socialistas, além do reconhecimento do governo de Fidel em Cuba.

          Ele condenava o colonialismo, defendia novas relações com África e Ásia e apoiava a desnuclearização. Depois da renúncia presidencial, retomou o cargo de senador e apoiou o movimento civil-militar de 1964, posteriormente, participou da fundação da Arena. Contudo, mudou sua posição após o AI-2. Em 1966, decidiu não buscar a reeleição. Como último ato, pediu uma reforma constitucional e sugeriu a adoção do parlamentarismo em 1971.

          Este criticou fervorosamente o Ato Institucional n.º5 (AI-5), considerado por ele como o maior exemplo de autoritarismo na história do país. Durante os anos 80, ele se empenhou em pesquisas voltadas para os problemas nacionais e defendeu mudanças democráticas. Apoiou Tancredo Neves, tornou-se senador da Assembleia Nacional Constituinte e se sobressaiu ao organizar trabalhos e defender o parlamentarismo.

          Hoje infelizmente a crise da democracia não assola só o nosso país, ela está alastrada por várias partes do globo. Porém, para entendermos o tamanho da nossa crise republicana teremos que compreender a história nacional, bem como, olhar a história pós — constituinte de 1988. A importância da longa duração e da conexão de 1964 a outros eventos históricos é salutar para nossa democracia.

          É vital que conservadores e progressistas entendam a história política e social do Brasil, em particular o evento de 1964, para evitar associação com grupos antidemocráticos, independentemente do matiz político. A vida do conservador Afonso Arinos de Melo Franco evidencia a persistência da cultura política udenista em Minas Gerais, que favorece candidatos outsiders em eleições recentes. Contudo, o equilíbrio do fiel da balança reside no conservadorismo republicano. Assim, não precisamos esquecer ou reescrever ao sabor das ideologias a história nacional, empenhamos sim, por aprender com 1964 e tornar perene e fortalecida uma cultura política para uma frente ampla e democrática.



[1] CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Afonso Arinos de Melo Franco. In: _____. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Disponível em: <https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/dicionarios/verbete-biografico/afonso-arinos-de-melo-franco> Acesso em: 28 mar. 2024.


sexta-feira, 29 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 05

Os 60 anos do Golpe de 1964 e a leitura do mundo real

Marcio Junior[1]

Para o saudoso Mestre Raimundo Santos.

 

Era 2019 quando estive sentado diante de Raimundo, meu orientador à época e com quem costumava almoçar com frequência, ele compartilhou algumas memórias de Golpes de Estado que, enquanto brasileiro, acompanhou. Segundo ele, o Golpe Militar no Brasil, em 1964, terminou por levá-lo a, com visual limitado da posição em que estava, em cima do muro da casa onde viveu em Santiago, o bombardeio ao Palácio de La Moneda, o da Presidência Chilena, que deu início ao regime autoritário naquele país. O Golpe no Chile completou 50 anos no ano passado enquanto o nosso completa 60 anos neste. Nosso país vizinho, talvez com maior dificuldade do que nós, também precisa ainda lidar com as consequências do acontecido lá.

Este exemplo biográfico ganha mais peso quando nos vemos agora, em 2024, em um mundo em que, além de não termos - a quatro anos - mais Raimundo, não temos também boa parte dos frágeis alicerces que o mundo de 2019 ainda procurava se sustentar e que a pandemia de COVID-19 fez questão de acelerar seus fins. Para além daqueles que se foram pelas complicações da convalescência causada pelo vírus durante a emergência sanitária (que não vitimou o Mestre), esta também levou diversos elementos que compunham o modo de vida de muitos no Brasil.

Desta, se mostra um cenário sombrio de falência educacional e empregatícia, resultando em falta de perspectivas sobretudo para a juventude, principalmente no que diz respeito aos seus futuros. Esta, que termina por cair nas armadilhas da percepção de que bastaria o apetite individual (envolto de uma profissão de fé relativa à formas de socialização que cada vez mais se fortalecem dentro e fora das Igrejas Evangélicas) para não apenas sobreviver, mas sim viver com máxima abundância afim de satisfazer ao máximo seus impulsos, sofreu uma queda brusca ao se deparar com uma realidade que, a rigor, revela que não há salvação enquanto não haver política feita a partir do bom diagnóstico das circunstâncias, habilidade que Maquiavel chamou atenção.

Com a publicação de A Revolução Brasileira em 1966, Caio Prado Junior (autor de predileção de Raimundo, junto com Habermas) buscou fazer um balanço crítico das forças de esquerda na conjuntura de 1964. Já em plena ditadura, Caio Prado Junior fez um balanço da fácil derrota da democracia naquele momento, na medida em que busca, de forma programática, dar um sentido prático à uma interpretação do processo de longo curso brasileiro, marcado por uma formação que dispôs os trabalhadores rurais como núcleo impulsionador das transformações sociais e, portanto, as forças produtivas que, pela sua face moderna advinda da nossa escravidão, deveriam ser incorporadas ao capitalismo afim de se fazer uma modernização de tipo diverso à aquelas ditadas pelo passado colonial ainda vivo.

Desta interpretação deriva a orientação em direção a um desabrochar das forças trabalhadoras tendo como principal via a dos sindicatos rurais, com apoio do regramento presente no Estatuto do Trabalhador Rural (sancionado em março de 1963), na medida em que a universalização dos direitos sociais seria o instrumento correto para responder a uma realidade cujo diagnóstico não seria a da luta pela terra, interpretação advinda da compreensão da história brasileira que via o homem rural do país enquanto um ator de tipo anacrônico.

A falta de aderência à realidade de tal programa foi, na interpretação de Caio Prado Junior, fundamental para a derrota da democracia em 1964. Este programa haveria de se revelar irrealista enquanto não percebia, no processo de longa duração em curso, a modernização ocorrendo ao nosso modo e demandando que este modo fosse interpretado por ele mesmo, e não na importação de modelos externos enquanto base para a formulação de programas partidários.

Ler é uma atividade que tem, como condição mínima para ser bem-feita, a devida contextualização no tempo e no espaço. Dito isso, sempre é de interesse dos derrotados avaliar em que pé ficou a conjuntura, o que passa pela compreensão dos erros cometidos e de como superá-los. Essa perícia básica, que está entre as habilidades necessárias ao ator que deseja definir a vitória e a derrota da grande política, tem nos faltado mais do que nunca. Novamente estamos diante de entendimentos que estão pouco alicerçados na realidade objetiva; O estudo histórico, e não só, de 1964 passa, também, pela compreensão de que, por mais dolorosas e áridas que tenham sido as suas consequências, devemos aprender com ele. Como dar conta de tal tarefa em plena falência de uma educação que nada indica que ressuscitará?



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ, Consultor Educacional da Teia de Saberes e responsável pelo Treinamento e Desenvolvimento Profissional da Cedae Saúde.

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 04


Sessão da Câmara dos Deputados negou autorização para que Márcio Moreira Alves (MDB) fosse processado por injúria às Forças Armadas, em 12 de dezembro 1968 | UPI

“60 não é meia dúzia”[1]: conciliar não é esquecer ou se submeter

Alexandre Vinicius Nicolino Maciel

 

Em primeiro de abril de 1964 foi deflagrado no Brasil um golpe de Estado que depôs o  presidente João Goulart. A partir desse golpe, executado pelos militares, mas orquestrado em conjunto com diversas classes civis, o Brasil mergulhou numa ditadura cruel que matou, torturou, sequestrou, exilou e limitou vidas e trajetórias. Durante 21 anos o Brasil teve como presidentes generais do exército que foram eleitos de forma indireta, num período eleitoral no qual o Brasil tinha somente dois partidos, Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava uma oposição consentida. No jargão mais popularesco, eram os partidos do “Sim” e do “Sim, Senhor”, indicando que a oposição clara e manifesta ao regime de forma institucionalizada, inexistia.

É importante reforçar que no mesmo período em que a ditadura brasileira se desenrolava, alguns vizinhos sul-americanos também passavam o mesmo drama. Nutridos pela dinâmica estadunidense da Doutrina de Segurança Nacional e pelas dinâmicas geopolíticas da Guerra Fria, Argentina (1966-1970 e 1976-1983), Chile (1973-1990), Paraguai (1954-1989), Peru (1968-1980) e Uruguai (1976-1983) também sofreram com regimes de exceção marcados por muitas mortes, torturas, prisões e desaparecimentos. A comparação entre esses regimes de modo algum pode reduzir o caráter ditatorial de uma ou outra experiência, ou ainda, considerar que algum regime, por ter um número menor de mortes causadas pelo Estado, se abrisse a possibilidade de ser classificado como ditabranda, como já fizeram com o regime brasileiro em algumas oportunidades.[2] Esse tipo de eufemismo reverbera o modo pelo qual os arquitetos do golpe o tratam desde a execução do movimento. A Revolução de 64, dada em 31 de março, nas palavras deles, buscou expurgar do Brasil as células que tornariam o país uma “Grande Cuba” e teoricamente, reforçou que nas palavras deles, não matou tanto opositor assim, pois “ao terminar a ditadura, a cultura como um todo (professores, mídia, literatura, filosofia, ciências humanas, artes, os principais partidos políticos) se revelou completamente de esquerda.”[3]

Ulisses Guimarães (MDB) enfrenta os cães na Ditadura Militar

Em nível acadêmico os debates sobre o período já se encontram consolidados. Inúmeros trabalhos acadêmicos já exploraram, e continuam a explorar o alargamento da ditadura para além da política institucional e dos atos repressivos, debatendo a atuação dos golpistas na música, na TV, nos esportes, na educação e em outros contextos sociais. Todavia, é preciso pensar no como a população em geral vê o período da ditadura, ainda mais num contexto de ebulição política e clamor constante por intervenções militares por partes de ditos conservadores (golpistas). Não raros são os vídeos dos acampados nas portas de quartéis que conclamam a volta dos militares ao poder.

Esse modo deturpado de ver história pode ser visto também como uma herança do nosso processo de redemocratização. Como dito acima, no mesmo período em que sofríamos com a nossa ditadura, o Cone Sul da América Latina era um laboratório vivo da crueldade. É também num período similar que esses mesmos países retomam a democracia e aqui é necessário exercitar o método comparativo. Alguns processos de são vistos pela historiografia como processos realizados por rupturas, já o processo brasileiro é estabelecido por pactos.[4] Esse tipo de acordo permitiu que os militares e entes públicos e privados que se favoreceram da ditadura, continuassem livres e poderosos. Fato visível dessa força é o tão falado artigo 142 da Constituição Federal, que supostamente permitiria a intervenção militar.

Deputado Alencar Furtado (PR) cassado em 1977 quando era líder da Bancada do MDB
Seu filho foi assassinado em campanha no ano de 1978
Faleceu em 2021 aos 95 anos

Assim, é preciso que os debates sobre a ditadura empresarial-militar no Brasil ultrapassem os espaços acadêmicos e se tornem comuns nos espaços públicos do país. É preciso desnaturalizar a ideia de que os militares salvaram o país do comunismo e que na “época deles” não havia corrupção. Inúmeros estudos já comprovaram o contrário, mas eles precisam chegar à base da sociedade. Para além, disso, utilizando-se dos pilares estabelecidos pela Justiça de Transição[5] é preciso avançar em políticas públicas de memória e Justiça. Assim, é preciso que o Estado se pronuncie em questões acerca da ditadura e possibilite a criação de espaços de memória, tal quais outros países possuem. Não em tom de revanchismo, mas em busca de memória e justiça. Os sessenta anos do golpe nos recordam que é preciso avançar, mas não esquecer. Pois, conciliar não é o mesmo que esquecer ou se submeter.



[1] O título faz referência ao evento organizado pelo instituto Coalizão Brasil em referencia aos 60 anos do golpe de 1964.

[2] LIMITES a Chávez. 2009. Folha de S. Paulo, Editoriais, 17 fevereiro 2009. Disponível em : < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm >. Acesso em: 9 julho 2020.

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da História do Brasil. São Paulo: LeYa, 2009. [recurso digital]

[3] PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo: Leya, 2012. 232 p [recurso digital]

[4] FRIDERICHS, Lidiane Elizabete. Transição democrática na Argentina e no Brasil: continuidades e rupturas. AEDOS, Porto Alegre, v. 9, nº. 20, p. 439-455, Agosto, 2017.

[5] A justiça de transição é composta por quatro elementos ou pilares. São eles: (1) o direito à memória e à verdade; (2) as reformas institucionais; (3) as reparações simbólicas e financeiras; e (4) a responsabilização por atos praticados no período autoritário.

quinta-feira, 28 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 03


Um tanque de guerra do Exército em frente ao Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro em 8 de abril de 1964 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo) 

1964 e a “bestialização” carioca

Em memória ao centenário de Lindolpho Silva

Vagner Gomes de Souza

 

1964 marca um profundo impacto para a antiga sede da Assembleia Constituinte de 1823, 1891, 1934 e 1946. Seu esvaziamento político institucional se aprofundou sob os parâmetros da perseguição política que muito atingiram cariocas e seus residentes como a memória do chamado “Massacre de Manguinhos” nos faz lembrar[1]. O Rio de Janeiro formado como a cidade da consolidação da unidade nacional em suas linhas tortuosas e ibéricas se abriu para uma “americanização” de seu subúrbio transformado num “Novo Oeste” americano ao Sul do Equador. Na expansão da ocupação do espaço urbano desordenado sob a égide de uma modernização conservadora muito de perversão do americanismo assolou a nossa cultura carioca.

A falta de autonomia da antiga capital do Império e da República não impediu que houvesse uma vida dinâmica se fizesse perceber nas favelas no pré-1964 com a dinâmica disputa política pela organização de seus moradores entre setores da Igreja Católica e os comunistas. As principais favelas cariocas, sob nossa medida, estavam se transformando com uma semelhança a longa disputa política entre a democracia cristã e os comunistas italianos essa é nossa hipótese que justifica as intervenções urbanas das chamadas “remoções” que fizeram emergir os conjuntos habitacionais de Vila Kenedy e Cidade de Deus.

A cultura do samba carioca no período anterior a 1964 estava em grande conflagração diante de inúmeros exemplos de agremiações com inserção de componentes com militância no PCB e que foram perseguidos ou se afastaram no decorrer da ditadura militar. O mesmo ocorreu no meio sindical carioca com a intervenção do Governo Federal em inúmeros sindicatos aonde podemos mencionar o antigo Sindicato dos Urbanitários do Rio de Janeiro que guardou uma marcante presença na participação e organização do comício de 13 de março de 1964.

Esses exemplos demonstram que a inserção da política não se limitava as fronteiras de uma classe média carioca e universitária. Nos distantes bairros de Campo Grande, Santíssimo e arredores, então Zona Rural da Guanabara, as mobilizações dos sitiantes e posseiros se faziam no intuito de organização dos trabalhadores rurais sob a liderança de um quadro dirigente do PCB, porém com muitas fontes que demonstram lideranças locais que submergiram ao silêncio talvez do medo[2]. Aliás, seguindo a nossa hipótese anterior, havia uma articulação entre os setores rurais do PCI e PCB acompanhado por Lindolpho Silva[3]. Assim, a chamada “grilagem” na atual Zona Oeste carioca ganhou mais força nos tempos da Ditadura Militar transformando a região num amplo espaço de nova orientação política. Os ventos da modernização conservadora fez emergir uma sociedade carioca “bestializada”.

Consequentemente, diante das investigações sobre o assassinato de uma Vereadora e seu motorista no ano de 2018, há muito dessa sociedade que se fez emergir como “besta-fera” diante da “bestialização” até na formulação de políticas daqueles que se encontram na chamada esquerda carioca muito prisioneiras das imagens sem perceber que o Rio de Janeiro é um mundo político das mediações. Um “coronelismo contemporâneo” de lideranças políticas decadentes diante do fator religioso do neopetencostalismo.

1964 fez com que tenhamos uma sociedade aliada a esse processo de política degenerativa, pois o “mercado do crime” que no seu mutiverso tem o “mercado da fé”. A representação da política democrática se faz pelo espelhamento com um uma estranha desconfiança das instituições e maior individualização das manifestações políticas hipermodernas. As mobilizações sociais foram capturadas por um “mercado do identitarismo” que criou uma “reserva de cargos comissionados” a militância política desconectada com os cariocas do dia a dia. Formando um “vazio político” ocupado pelas forças políticas reacionárias uma vez que as análises daquilo que chamam esquerda carioca parecem moldadas na “Ágora da Praça São Salvador ouvindo uma Mafalda”.

Não se percebeu que 1964 fez emergir um laboratório do pinochetismo no submundo do crime desde com suas chacinas executadas por agentes do Estado. O Rio de Janeiro é a hiperatividade do neoliberalismo. Sociedade pura na matriz do interesse individual. A ideia de Estado se foi no “chaguismo” ao mapear politicamente o universo da cidade. A fusão, implementada na Ditadura, esvaziou ainda mais a vida política do Rio de Janeiro pois se fez na égide do clientelismo e com as ações do “Mão Branca” na Baixada Fluminense. Faltam mais estudos recentes no mundo acadêmico fluminense sobre esse processo.

Logo, o bolsonarismo não é nada no Rio de Janeiro e paradoxalmente ele é tudo, pois ele se alimenta desse esvaziamento da política na sua postura antipolítica. Portanto, para ficarmos num problema de comportamento político que nos interessa, se a família Brazão é mais uma no mosaico da Zona Oeste carioca, o “caso do Bairro de Campo Grande” é a demonstração de que a hipótese do “lulismo”, segundo André Singer, se tornou uma pura noção conceitual, pois os interesses se uniram aos intermediários que de “Escritório do Crime” alimentam o “Escritório do Voto”. 




[1] O Massacre de Manguinhos foi um caso de expurgo político ocorrida no então Instituto Oswaldo Cruz (IOC) - hoje unidade técnico científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - durante a ditadura militar brasileira. Dez cientistas do IOC/Fiocruz foram cassados em 1º de abril de 1970 com base no Ato Institucional n.º 5 (AI-5).

[2] Voz Operária, Edição 213, 1953, página 8. https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154512&pagfis=2416 Consultado em 28 de março de 2024.

[3] Cf. https://journals.openedition.org/nuevomundo/69678 (Consultado em 28 de março de 2024).




quarta-feira, 27 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 02

60 anos do Golpe Militar 

Giovana Freire, Valença-Rj

1964 poderia ser o primeiro ano do voo de um Conde Chileno[1], sinceramente nunca foi apenas um regime. Um golpe articulado pelas diretrizes da época que resultou em mais ou menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas, fora as que foram torturadas ou privadas de seus direito diante dessa ferida que segue sem muita reflexão histórica na nossa República Federativa.

Em nossa pesquisa, relembremos o relatório “Brasil: Nunca mais”[2] que enumerou pelo menos 1918 prisioneiros políticos que testemunham terem sido brutalmente torturados entre (1964-1979), este documento -  elaborado sob apoio da CNBB - descreve duzentas e oitenta e três diferentes formas de torturas utilizadas pelos militares durante a ditadura.

Além de ler e estudar sobre, fui atrás de pessoas que viveram durante tal regime, ouvi relatos de pessoas próximas, e infelizmente só após essas pesquisas veio ao meu entendimento que sou neta de um jovem nascido em 1953 que tinha 11 anos quando tudo começou e sou filha de uma criança que tinha 8 anos quando a ditadura acabou.

Tendo por início da derrubada do então presidente João Goulart em menos de um mês do Comício da Central do Brasil (13 de março de 1964). Provavelmente, foi um fato história de nossa democracia pouco se estuda. Além disso, poderemos mencionar como relevante que o Marechal Humberto Castelo Branco ter sido decisivo na articulação de um Golpe com apoio de civis.

Portanto, que tais desvios da trilha democrática nunca mais se repitam. Ainda mais diante do que foi o 8 de janeiro de 2023 com a tentativa desastrosa e criminosa dos apoiadores  do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro[3], nem tão pouco a pouco estudada depredação de 24 de maio de 2017  em que o vandalismo imperou em alguns Ministérios do Governo precedente ao de Bolsonaro o que motivou ao presidente temer a solicitar a convocação de forças do Exército[4]. A complexidade do tema se refere a intuição do protagonismo militar um ano antes da questionável intervenção na Segurança Pública do Rio de Janeiro. As palavras de ordem “Intervenção Militar Já” e “Diretas Já” pouco sentido se faz sem uma melhor pesquisa das fontes primárias em questão.

Infelizmente mesmo após tanto anos do 1964 nada foi devidamente feito para reparação de tais fatalidades impostas. Vivemos e ignoramos todo o ocorrido desse capítulo obscuro da história brasileira. Como uma jovem nascida 17 anos após 1985 eu nasci dezessete anos após o (fim da Ditadura Militar), todas as vezes que eu ouvi a respeito  ao tema era ou com ar de desdém, ou com dores e medo da época. Por anda o papel dos intelectuais sobre o tema na Educação Básica?

Nossa Constituição de 1988 deve ser de fato um marco e não apenas mais um alvo de novos golpes, queimas, torturas, massacres e chacinas violentas ao povo Brasileiro. Eu sei que sou jovem mais como uma pessoa que está graduando para lecionar, gostaria que todos os ensinamentos fossem expostos de maneira nítida e clara.

Que nossos posicionamentos políticos não sejam mais vendas, mas que sejam pontes que todo o extremismo e radicalismo sejam “vacinado” e erradicado de nosso país. Tempos de moderação aprendendo com o passado nosso passado, os mortos tem mais conhecimento do que os vivos diria uma percepção de um livro sobre o golpe de Napoleão III. Então, não vamos nos esquecer dos que morreram por não aceitarem a nossa República a ser fazer na Cidadania.

Sejamos todos uma nação instruída, para não nos permitir cometer os mesmo erros e passar pelas mesmas situações que como diz em nossa bandeira que haja “Ordem e Progresso” e que Deus abençoe o Brasil; não só hoje como nossa pátria amada sempre e, amém!