terça-feira, 21 de março de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 009 - NOVO ENSINO MÉDIO É TANTA COISA QUE NÃO CABE NUM CARTAZ


 "É tanta coisa que não cabe num só cartaz" - Manifestantes de 2013

O Novo Ensino Médio (NEM) e O Eu Soberano

Pablo Spinelli

Vagner Gomes de Souza

Um debate sobre reformas do sistema de ensino exige muito de uma postura sobre o futuro que se deseja para o país a partir de um balanço da sociedade em que vivemos. Olhar para frente sem que se tenha uma perspectiva de Frente Democrática pode nos render uma sociedade fraturada com o perigo de colocar a Democracia em colapso. A aprovação do chamado Novo Ensino Médio ocorreu num momento de exposição da crise política e do centro democrático “esvaziado”. Muitos simplificam que tenham na Reforma do NEM vertentes do neoliberalismo, porém, também havia muito da expressão do individualismo nas manifestações de 2013 na sua variedade de cartazes. É bom lembrar que o foco da oposição nas ruas no Governo Temer foi de dupla natureza: a narrativa do golpe e a oposição à Reforma da Previdência – o que mostrou muito do esvaziamento dos sindicatos e da sociedade civil quanto à boiada que passava: a Reforma do Novo Ensino Médio e a Reforma Trabalhista (que após um silêncio forçado publicamente, não se fala em revogar, mas aperfeiçoar).

Quando nas ruas a indignação se fez presente através de uma “fantasia antipolítica”, nada mais factível que as ideias iliberais se fizessem presentes na elaboração do aparato legal que vai moldar o Novo Ensino Médio. Redução das disciplinas obrigatórias a se estudar como se fosse a busca por mais autonomia e permissão para que o “self-made man” fosse formado num ensino de “self educação”. É o caso típico do autoritarismo travestido de opções individuais que permitem a um jovem de 13 anos ter uma antevisão madura quanto ao seu futuro, posto que a escolha de itinerários formativos começam no primeiro ano do Ensino Médio.

No transformismo a emergência dos indiferentes ocorre em diversos segmentos. Os professores deixaram há muito tempo seu perfil de intelectuais formadores da sociedade, caso não se apoiem em argumentos mais históricos sobre determinados debates. Esse grupo renuncia ao seu papel intelectual para ficar preso a um economicismo da pauta salarial sem incluir os docentes na sua agenda propositiva.

 Então, vejamos que ao se fechar o século XX (2000) são lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), em quatro partes, com o objetivo de cumprir o duplo papel de difundir os princípios da reforma curricular e orientar o professor na busca de novas abordagens e metodologias.


Uma década se passou para que houvesse a Conferência Nacional de Educação (CONAE), com a presença de especialistas para debater a Educação Básica. O documento fala da necessidade da Base Nacional Comum Curricular, como parte de um Plano Nacional de Educação. O CONAE foi saudado pelas lideranças das entidades de educação como um necessário avanço na luta por uma nova trilha. Portanto, em 2010, na gestão do campo democrático já havia uma proposta de mudança do Ensino Médio que passou sem a mobilização – o que não significa ausência de debates – da sociedade civil organizada, posto que o Estado das Coisas era benfazejo às demandas corporativas.

Cabe ao historiador lembrar aquilo que as pessoas querem esquecer. No discurso de posse da presidente Dilma em seu segundo mandato – cujo tema era com forte viés positivista: “Pátria Educadora” – aparecia a necessidade de mudar o Ensino Médio para que fosse uma forma de diminuir a evasão escolar e o norte apontava para entender melhor o jovem de nosso tempo e saber como inseri-lo no mercado de trabalho e “no mundo dos adultos”. Essa política tem um nó górdio quando nos deparamos com as mudanças das relações de trabalho, pois se não há trabalho, o que farei na escola? – uma indagação legítima dos jovens dentro desse acordo. Portanto, o ovo da serpente não pode ser fulanizado no debate político. O que a sociedade deve discutir é o que pode sair dele: omelete ou a serpente? Como aumentar carga horária sem comida? E a pauta da alimentação converge com a do meio-ambiente e da saúde. Logo, a revogação é o caminho mais fácil para nada ser feito, ao invés de se pensar uma política pública interministerial.

No ano de 2017, a Lei nº 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança na estrutura do ensino médio, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para 1.000 horas anuais (até 2022) e definindo uma nova organização curricular, mais flexível. Muito estranho que o parágrafo abaixo não esteja em pleno vigor ao rigor da legislação educacional em muitas unidades de ensino médio quanto ao referente a carga horária.

“§ 1º A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017.”

Mais tempo de estudante na Escola significa mais custos orçamentários, sociais e políticos, uma vez que atravessamos os últimos três anos sob o inédito impacto de suspensão das aulas presenciais por causa da Pandemia da COVID 19. Sem nenhum balanço estrutural ou das cores do sistema de ensino, a gestão anterior do Ministério da Educação permitiu que as circunstâncias agravassem uma implementação de grande envergadura para a educação brasileira.

O Plano Nacional da Educação previa que em 2024 o ideal seria a meta de 85% dos adolescentes no Ensino Médio. A pandemia escancarou as dificuldades que temos nas macrorregiões do país. Peguemos apenas o exemplo da inacessibilidade de internet em todos os cantos do país na rede pública (uma vez que algumas disciplinas foram sugeridas a serem feitas em EAD). Além disso, para uma classe média empobrecida, a falta de um pacote de dados individual torna-se a realidade. Esse ponto mostra que um debate sobre o futuro tem que passar pela equidade, pela política pública sem voluntarismos, pois o que temos do NEM é NEM estudo e NEM trabalho. O empreendedorismo – a religião desse século – pode confinar as classes subalternas para as franjas do tecido social para um mundo sem república com resultados de patologia social que tem nesses jovens NEM-NEM um manancial de pessoas para alimentar tropas do tráfico e da milícia à prostituição digital. Esse tem sido o Projeto de Vida do mundo das coisas reais. Querer todas as coisas ao mesmo tempo é bom para ganhar o Oscar.


sexta-feira, 17 de março de 2023

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE A MEMÓRIA


 

Pensar para agir; agir para pensar.

 

Marcio Junior[1]

 

Não há dúvidas, inclusive para as pessoas comuns, que andam pelas ruas das cidades e seguem a vida, que estamos em tempos de mudanças profundas e dolorosas. Tempos de incertezas. Há, decerto, várias formas de “ler” esses fenômenos, inclusive a um nível que, ao falarmos de humanos, não é visível a olho nu.

Eric Kandel, neurofisiologista vienense que, em 2000, foi agraciado com o Nobel de Fisiologia e Medicina, relata em livro como que, para ele, a busca pela memória é, antes de tudo, uma preocupação pessoal e histórica. Aos 9 anos, filho de um judeu dono de uma loja de brinquedos na Viena de 1938, cidade em que tanto o desejo sexual quanto o antissemitismo se podiam sentir tensionados no ar, viu os citadinos se oporem firmemente tanto à chegada de Hitler à Áustria quanto à anexação desta à Alemanha nazista. Porém, na ocasião da chegada do exército alemão e posteriormente também a do Führer no dia seguinte, este foi ovacionado pelos vienenses, tendo os judeus que apagar as pichações feitas na rua, com mensagens contra a anexação.

Seu pai estava lá, esfregando o asfalto com uma escova de dente. Isso o levou e a família a emigrar aos EUA, onde estudou marcado por este e outros tristes episódios biográficos. Assim, os estudos de como os neurônios se comportam, conjuntamente, para que seja possível a aprendizagem e a memória, buscou responder antes de tudo como, de um dia para o outro, parte considerável do povo da sua cidade natal simplesmente esqueceu e aderiu, sem filtros, à experiência nazista.

Ao lembrar-se dos nazistas adentrando a sua casa enquanto brincava com seu carrinho azul, do pequeno apartamento da família em Viena, da viagem aos EUA com o irmão, o seu corpo captou tudo que ocorria através de várias vias sensoriais e seu cérebro processou essas informações a partir de uma complexa rede de células que se comunicam de forma igualmente complexa. Há uma relação complexa do mundo exterior, ambiental, com o interior do corpo e do cérebro. Descobrir estes mecanismos, porém, não surgiu de algo centrado no eu sem o nós. Havia, decerto, uma preocupação intelectual que ultrapassava o indivíduo; um contexto a ser compreendido. Afinal, corre-se um grande risco ao operar conceitos, inclusive os das ciências naturais, sem tempo e espaço.

Assim, a falência da educação é transpassada por uma falta de rigor que tem consequências, inclusive, cerebrais. Afinal, é também a partir do contato com o outro, ocorrem processos a nível molecular: basicamente, ao vermos e/ou sentirmos algo, essas informações chegam por sinal elétrico aos nossos neurônios responsáveis por elas que, por sua vez, liberam neurotransmissores para enviar essas informações em cadeia a outros neurônios, com endereços certos. Ao fazerem as leituras dessas informações, os genes presentes nos núcleos desses neurônios mudam os perfis das proteínas produzidas por eles, o que muda também a forma das sinapses, isto é, a comunicação bioquímica e elétrica entre essas células, acarretando, à nível molecular, na aprendizagem e na memorização. Porém, não se trata de um processo isolado nas nossas cabeças: ele está em constante interação com o mundo em que vivemos, nossas relações com as pessoas e com a história, e a ausência de educação cuidadosa e bem feita tem consequências, inclusive, a nível celular. Nesse sentido, não seria, de certa forma, sugestivo o uso do arcabouço conceitual de um Durkheim? Afinal, as sociedades já estavam aqui quando nascemos e, assim como o corpo, o cérebro e a mente, também são capazes de aprender, esquecer, adoecer e sofrer.

Em tempos de certo "narcisismo normativo", em que as preocupações das pessoas estão demasiadamente voltadas ao seu interior e seus sentimentos, sensações e outras variáveis subjetivas e biológicas que não apenas bastam como também se tornam sobretudo normas para julgar quem é superior ou inferior na hierarquia da sociedade. Neste contexto de fácil aderência a um patrulhamento ao que é aprendido, "não pode haver intelectuais se não há leitores", diz a manchete de uma entrevista de Habermas ao El País, em 2018. A título de exemplo e um breve exercício, quem somos nós, enquanto Brasil? Estas e outras perguntas podem e devem ser respondidas através do rastro deixado pelo nosso pensamento social: somos americanos, mas americanos ao nosso modo, ibéricos, mestiços, marcados pela escravidão e falamos português. São as características primas, se estudadas de forma competente, para a compreensão e construção progressiva da nossa democracia e nossa República, e não podem ser esquecidas.

Porém, os tempos não deixam de ser oportunos: as agendas em voga, principalmente a ambiental, nos obrigam inevitavelmente a sermos seres globais, reconhecendo que não podemos enfrentar nossos problemas sem o outro e o outro não pode enfrentá-los sem nós. Logo, para que as respostas a esses problemas sejam dadas à altura deles, seguir o exemplo de Kandel torna-se sugestivo. É preciso que as novas gerações tenham acesso, desde a infância, ao melhor que a humanidade fez para que existam condições de responder aos problemas que são, cada vez mais, criados por ela própria.





[1] - Doutorando pelo CPDA/UFRRJ.

domingo, 12 de março de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 008 - QUARESMA: AJUSTES NECESSÁRIOS NA FRENTE DEMOCRÁTICA

Acertos e provações

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O Carnaval passado não foi muito favorável para leitura e reflexão, pelo menos para os governos. As chuvas, ou melhor, a negligência com elas têm sido vorazes, terríveis e destrutivas, uma grande catástrofe das que vem acontecendo cada vez mais e não foi diferente há pouco.

Alguns feriados carnavalescos foram suspensos. Alguns sopraram a ideia de que tinham de ser adiados como fez uma cidade da região metropolitana carioca. De fato, o Carnaval que esteve desaparecido com a pandemia e sempre costuma estar no radar das altas responsabilidades governamentais.

O governo Lula e Alckmin fez bem em ter suspendido as suas férias momescas por ocasião do desastre do litoral paulista, e de imediato ofereceu a ação republicana responsável e foi apreciada pelos cidadãos tal como ocorrerá com a emergência yanomami.

Parece que o pior já passou e o país, e como nas ocasiões anteriores, vem dando o melhor de si.

Os bombeiros em primeiro lugar, as Forças Armadas e os Policiais, autarquias e funcionários públicos, trabalhadores, vizinhos e cidadãos apoiados pela ajuda de todas e todos mostrou que o país permanece a ter capacidade de resiliência diante das adversidades e uma generosidade de espírito que nos fez muita falta à bem pouco tempo.

É claro que a prevenção está longe de ser como deve, também é claro que as causas das chuvas não se enquadram apenas como fenômenos naturais. No antropoceno existe um percentual considerável da participação das humanidades, seja por motivos culposos (por leniência) ou dolosos. Ambos são sérios e não  devemos ignorá-los. Na ausência de uma Autoridade Climática (e que talvez nunca venha ou tarde a vir), os poderes constituídos tem o dever de proceder a uma investigação aprofundada e apurar a magnitude das componentes que deram causa as tragédias.

O esforço terá agora de se dirigir na reconstrução da devastação das chuvas, queimadas e desmatamentos com realismo e aplicação. O pior é fazer promessas no ar que podem se transformar em frustrações dolorosas em poucos meses. É preciso exercer a crítica, mas também ter prudência na análise do ocorrido. O Brasil não tem mostrado uma capacidade de resposta melhor à de outras experiências planetárias diante de catástrofes comparáveis.

É claro que as medidas para prevenir os riscos de desastres no país terão que ser reexaminadas à luz destas sucessivas tragédias. As medidas regulatórias devem situar a proteção dos assentamentos das humanidades nas áreas metropolitanas e turísticas, lembrando sempre que está ultima trata de uma atividade importante para a economia nacional e que é preciso aliar o bem principal de proteger as vidas com o esforço do desenvolvimento.

Liderar um país com responsabilidade é fruto de reflexão constante e não de impulsos. Como não entender que o Brasil está sob grande pressão econômica e social neste ano e nos próximos, mesmo quando a situação econômica mundial não apresentará alguma melhoria que nos ajudaria?

Como não entender que a necessária reforma tributária exigirá um esforço de acordos, mas não porque nenhuma força política tenha grande maioria? Como não inferir que essa pauta exigirá esforços claramente suprapartidários?

O que está em jogo hoje não são os vacilantes sonhos de todos os tipos, mas sim o perigo de que o país volte para o pior, que os nossos indicadores económicos e sociais estagnem ou desçam, e que a nossa convivência retorne a dureza dos últimos anos. Não é apenas um perigo do aprofundamento do declínio político, social e econômico, é também o perigo de se enraizar o declínio de nossa cultura cívica.

Não podemos nos acostumar a pensar que nosso sistema educacional seguirá sem melhorar e que as atividades culturais de qualidade continuarão diminuindo, que nossa língua será cada vez mais pobre, como se não houvesse o uso repetitivo e abusivo de rabiscos em nossas conversas e que tem sido cada vez mais curtas, com longos silêncios até nos ministérios.

Também não devêssemos pensar que é normal que reações irritadas e insultos fáceis tenham uma presença na vida cidadã e/ou se acostumar com o fato de que a leitura é uma atividade estranha para muitos jovens, quase uma raridade.

Nesse caminho, a atratividade do Brasil se abrigará apenas na sua pujante paisagem majestosa, enquanto o nosso povo persista se tornando cada vez mais ruinoso.

Claro, surge a pergunta, como reverter o curso? A resposta em sua gama de ações republicanas e democráticas é longa e complexa, mas o passo inicial não. É um esforço coletivo e plural que não faz da adversidade um muro intransponível contra os acordos básicos de cooperação que toda sociedade exige para avançar.

Trata-se de abrir-se à esperança de uma convivência de maior qualidade que evite que nosso ethos cidadão da brasilidade seja novamente invadido pela deterioração, insegurança e barbárie.

 

11 de março de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

quarta-feira, 8 de março de 2023

OSCAR 2023 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR PABLO SPINELLI


Nada de Novo na Frente

Em 60 dias do nosso “Capitólio”, a cultura política no país não estabeleceu um meio de se fazer estabelecer a superação das contradições num Governo que ainda não se apresentou como de “transição”. O “3”, mesmo que tenha características diferentes já se coloca na linha de uma continuidade como se não tenhamos vivido 2013, 2016, 2018 e se esquecem das sequelas da pandemia de COVID 19. Nada de novo na Frente é uma temeridade diante do vazio a se pensar o Brasil no contexto das novas tendências da cultura.

Nosso objetivo nessa entrevista é situar o leitor nesse momento de crise das instituições da Democracia e fazer com que se possam perceber suas referências na produção cinematográfica. Algumas sugestões apontadas nas respostas abaixo demonstram o quanto a fratura da política de frente democrática no contexto global diante de uma Guerra que se prolonga na Europa exige que tenhamos uma melhor formação para a juventude. No ano passado alertávamos que a "privatização" da criatividade poderia atomizar ainda mais nossa sociedade. Estamos cada vez mais vulneráveis ao imediatismo.

Não podemos deixar de lado a República e a Democracia. Não se convida apenas para a leitura, mas que essa entrevista seja uma possibilidade de debate de como melhor entender nosso mundo contemporâneo. E VOTO POSITIVO, mais uma vez, publica uma entrevista com o Professor Pablo Spinelli que faz do cinema uma trincheira para tentar resgatar muitos jovens que saem do senso comum para melhor compreender os impactos do pensamento iliberal nas redes sociais.



1) A Edição do Oscar 2023 sugere alguma mudança em seu conteúdo de opinião ou haverá o aprofundamento de tendências anteriores?

Creio que houve uma mudança da academia por conta da perda de audiência e da importância da premiação para criação de um público. O Oscar era uma bússola para assistir aos filmes indicados, os jornais publicavam as indicações com destaque e ficar fora dessa conversa era ser um “alienado”, especialmente nas camadas sociais com maior formação educacional.

O discurso da bolha da costa leste americana, com certa influência das patrulhas acadêmicas identitárias e em resposta à América “profunda” (a mesma que foi mobilizada desde o 11 de Setembro até o ataque ao Capitólio) acabou por fazer perder o apoio do “homem comum”. Nos anos de Tik Tok e netflixação do olhar, o que representou o chatíssimo “Nomadland”? A refilmagem de sessão da tarde “No Ritmo do Coração”? O polêmico e fraco “Green Book”? E o identitário “Moonlight”? E “Argo”superou o gosto do público de “Django Livre”? O Oscar tem sido o apoio a um estudo antropológico ou etnográfico para dizer que os EUA do Afeganistão, do Iraque e que não quer a paz no conflito europeu atual é legal com toda a humanidade. Virou um prêmio mais étnico do que por mérito. O que vemos agora? Uma necessidade de dialogar com o público. Os jovens foram convocados em “Nada de Novo no Front” e em “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”. Os liberais conservadores dos anos Reagan estão felizes por “Top Gun: Maverick”. Mulheres estão presentes no libelo “Entre Mulheres” que fala da religião e misoginia que agradará os coletivos, talvez não o coletivo e em “Tar”. A pauta ambientalista – um dos grandes temas contemporâneos – está em “Avatar 2”. A esquerda do século passado pode se encontrar no “Triângulo da Tristeza”, uma piada pronta. Europeus estão em “Os Banshees de Inisherin”. E Hollywood se premia com o pupilo que dialeticamente a destruiu, Spielberg, no filme autobiográfico e com um dos ícones mais importantes do século passado, “Elvis”, do injustiçado Baz Luhrmann.

Em suma, desde 2013, quando o filme vencedor faz parte de uma média de quantas vezes foi citado entre os primeiros lugares houve aquilo que Tocqueville nos sinalizou sobre a América: o paraíso da mediocridade no sentido do termo. Apesar de todas as minhas rabugices a lista de indicados sempre tem filmes acima do que temos ao longo do ano. A premiação caminha para o Nobel de Literatura. É bacana, mas ninguém atualmente lê um autor por conta do prêmio como no passado assim como ninguém – além de certos nichos – verá um filme por conta de um Oscar, mas pelo que os algoritmos e um website como o desprezível Rotten Tomatoes (propriedade da Warner) indicam.

 

2) Na sua opinião, a dupla indicação de Nada de Novo no Front (Melhor Filme – Melhor Filme Estrangeiro) o coloca como favorito para derrotar Argentina, 1985? Ou há algum filme “correndo” por fora?

Sim. O tema da guerra está na pauta. O historiador Hobsbawm em vários livros nos disse que tivemos no século passado poucos momentos de paz, muito pequenos. E que não via algo diverso para esse. O modo de guerrear talvez seja diverso. De qualquer forma, para uma juventude que tem fetiche pelo militarismo e armamentos a pergunta é óbvia: quer estar lá? O filme alemão também de forma sutil nos aponta que a carne mais barata do mercado é a da classe subalterna.

O filme argentino ganhar seria uma benção para o governo como foi a Copa. Para nós o entendimento que “sem anistia” é não ter julgamento justo e equilibrado, portanto, a ausência da instituição democrática, diverso do que o filme argentino expõe. Os roteiros argentinos deveriam ser mais estudados nas faculdades de cinema e de letras no Brasil. Eles não fazem tratados sociológicos. Eles contam uma boa história. Caso o sul do mundo vença será interessante. O terceiro prêmio para a Argentina sobre o mesmo tema. Começou com A História Oficial (1985). Veio depois O Segredo dos Seus Olhos (2009). E nós aqui vamos de “Marighella”.

3) Na categoria animação, avalia a possibilidade da vitória de Pinóquio?

Sim. É o melhor dos filmes. Deveria ter sido indicado como principal. Um trabalho artesanal do Guillermo Del Toro, premiado pelo “A Forma da Água” (2017), já resenhado nesse blog democrático e não visto com bons olhos. Espero que a fábula tristíssima que mostra o fascismo para crianças e adultos tenha melhor fortuna. Curiosamente, um dos filmes mais vistos no Brasil no ano passado e pouco debatido. Estranho. Talvez uma fábula nigeriana ou senegalesa tivesse mais impacto aqui. O filme mostra a importância da Frente Democrática para os momentos que vivemos. O Gato de Botas 2 é um filme muito divertido, anárquico, resgatou a linha do Shrek e trata do difícil tema da morte com muita leveza. Mas Pinóquio anti-Disney é o melhor.

4) Quais seriam suas “apostas” para Melhor Roteiro Adaptado e Original?

O melhor roteiro original para mim seria Triângulo da Tristeza ou Glass Onion, ambos com ferinas ironias ao mundo contemporâneo. Temos a luta de classes no primeiro, as Big Techs e o banditismo dos Jobs, Zuckemberg e Musk da vida, no segundo. Mas creio que “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” vença. O que não seria de todo o mal, visto que ele abordou com muito melhor acabamento e maturidade a ideia do multiverso que fracassou na Marvel (Disney) e “Travessia” (Globo). Quanto ao Roteiro Adaptado, um destaque para o escritor premiado com o Nobel, Kazuo Ishiguro, o que dá um verniz mais autoral para a indicação. A indicação a Top Gun: Maverick é uma gentileza sentimental ao último grande astro do cinema, Tom Cruise. Caso seja a esquerda que não vota para presidente nos EUA, ganha “Entre Mulheres”, caso contrário, “Nada de Novo no Front” ou “Living”.


5) A categoria Melhor Direção poderá ter alguma surpresa?

A surpresa será o Spielberg – que agradece a presença do público na sala de cinema pessoalmente – ganhar. A dupla Daniel Kwan-Daniel Scheinert deve levar por “Tudo em Todo o Lugar”. A Academia foi feliz na escolha dos diretores. Todd Field corre por fora por “Tár”. Os outros são azarões.

6) Em relação aos atores coadjuvantes, tanto feminino quanto masculino, como avalia as nomeações?

Bem, nessas categorias mais visíveis ao público há uma demonstração da diversidade étnica decorrente do aumento dos votantes espalhados pelo mundo. É uma premiação que quer ser mais internacional, portanto, há a atriz negra, a asiática, a europeia. Curiosamente, a premiação está entre duas veteranas que já fizeram trabalhos melhores, a rainha de Wakanda, Angela Basset concorre com a eterna irmã de Michael Myers, de “Halloween”, Jamie Lee Curtis, que teve uma boa atuação no esquecido (e bom) “True Lies”. Há algumas semanas tendia para Basset, que viveu uma grande Tina Turner num filme que deveria ser revisitado. Creio que ganhe a filha do ator Tony Curtis. Para ator coadjuvante há uma lei que diz que dois atores do mesmo filme divide o prêmio. A minha preferência, mesmo assim, seria Brendan Gleeson por Os Banshees de Inisherin. O trabalho de Bryan Tyreen Henry em “A Passagem” deve ganhar – por mérito.

 

7) Na categoria Melhor Atriz, será o ano de Cate Blanchett, quase 10 anos após vencer na atuação em Blue Jasmine, uma vez que ganhou o BAFTA e o Globo de Ouro?

A atriz ganhou um Oscar por um diretor cancelado, sem anistia. O Oscar nunca ligou para o BAFTA, infelizmente. E o Globo de Ouro passou a ser pateticamente maldito. Mesmo assim, a sucessora de Meryl Streep deve ter uma disputa acirrada com Michelle Yeoh, uma atriz malaia-chinesa que foi esquecida após O Tigre e o Dragão (2000), que hoje os jovens devem achar que seja um filme velho. Como há dois anos, apostaria um pedaço de picanha na chinesa. Destaco a intensa atuação da ótima e carismática Ana de Armas, a sucessora de Penélope Cruz, como outro ícone pop, no sofrido e desgastante “Blonde”, uma biografia romanceada sobre Marilyn Monroe.

 

8) Na categoria Melhor Ator, parece que teremos uma disputa mais “apertada” ou há um favorito?

Hollywood gosta de redenções. Brendan Fraser é a encarnação desse modelo. Ele sempre foi um bom ator, subestimado por alguns filmes que fez mais jovem. Quem o viu no filme que “revelou” Ian McKellen (Magneto/Gandalf) para os EUA, chamado “Deuses e Monstros” (1998), não é uma surpresa seu favoritismo. Ele interpreta com os olhos e com o peso da maquiagem um professor com obesidade mórbida, cardiopata, bissexual, que quer reconquistar sua filha. Impossível não ganhar. Austin Butler carregou com coragem a interpretação de Elvis. Seria um grande favorito se não fosse o Fraser. Colin Farrel corre por fora, mas seu passado rebelde ao sistema hollywoodiano talvez não o coloque com a estátua careca nas mãos. Bill Nighy é um ótimo ator quando bem dirigido e Paul Mescal fez um excelente trabalho em Aftersun.

9) Por fim, na sua opinião quem merece ganhar o Oscar por Melhor Filme?

O termo foi merecer. Gostaria de Nada de Novo no Front. A produção foi muito caprichada, igual ou melhor do que “1917”. Seria muito bom ter um Spielberg de volta, mas parece que ele terá seu nome lembrado em deferência à Nova Hollywood dos anos 1960-1970 como o Scorsese. Creio que vá dar um filme que aborda uma pessoa com problemas com a Receita Federal, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, um misto de aventura, ficção científica e surrealismo. Foi o filme mais visto nos EUA depois de Avatar e Top Gun: Maverick, logo, o reencontro do prêmio com o público.


sábado, 18 de fevereiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 007 - CARNAVAL: PARA QUE A DEMOCRACIA ENTRE NA AVENIDA


A frente democrática, o centro político e as reformas

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Fevereiro, coração do Carnaval Brasileiro, quando o país trabalha minimamente. O tempo passa com um ritmo diferente, certa languidez envolve tudo o que acontece, parece que de repente o Krónos, o tempo real segundo os gregos da Antiguidade, o tempo da atividade, pressa, ação e ambição, é deslocado em apenas um mês para os Kairós, "tempo para si", para certa introversão, para a contemplação, do prazer e do descanso dos longos crepúsculos. O tempo em que o celular perde sua urgência insólita, a menos que seja usado para fins recreativos.

Pode ser também um momento de reflexão, de interrogação sobre o sentido das coisas e da vida, do que foi feito no ano anterior e do que nos espera a partir de março, quando os músculos que dormiam despertam e a ambição que descansava voltam a se triturar nos sonhos tão mesquinhos, parafraseando Cartola em seu samba O mundo é um moinho, que bem poderia ser uma homenagem a Karl Polanyi.

A reflexão deve ser particularmente importante para aqueles da Frente Democrática que colocaram, por decisão da vontade popular, a liderança do país em seus ombros.

Se o fizerem honestamente, não poderão ficar satisfeitos com o pouco que fizeram no pouco tempo, e não só por causa de sua inexperiência na condução dos negócios públicos, mas também por causa de sua orientação confusa pela ausência programática que sequer moldou. Parece, em todo caso, um governo de partida lenta.

Na verdade, não deve ser fácil entender que a ação pública não é pura questão de vontade e que a prudência, a gradação e o andar sereno não foram desculpa para acomodar pusilânimes, mas sim uma opção responsável para quem deseja conseguir fazer as mudanças sociais sólidas democráticas e republicanas com o apoio dos cidadãos.

Não seria justo, porém, fazer uma avaliação totalmente positiva nem negativa do que foi feito nesses quase dois meses do atual governo.

O governo da Frente Democrática com Lula e Alckmin a frente tem mostrado certa abertura em vários assuntos nacionais e internacionais, moderou posições anteriores e até mudou de opinião como convém a Chefes de Estado quando conclui que as suas ideias não eram boas.

Resta, porém, um longo caminho a percorrer para corrigir rumos e evitar erros. Porque o ano de 2023 será um ano difícil e com muitas armadilhas. O principal para o setor político que nos governa será entender que reconstrução e via democrática não devem se opor.

Historicamente, os ímpetos das reconstruções contemporâneas nunca puderam coexistir bem com o sistema democrático e republicano. Exigem como água a sede da impostura para compelir suas verdades que tendem a ser absolutas.

Nisso eles são semelhantes ao mundo dos reacionários. Veja a tentativa de golpe que estava se formando por trás das violentas manifestações ocorridas nos idos próximos passados de oito de janeiro.

A expressão mais clara dessa reconstrução da Frente democrática benfazeja foi, sem dúvida, o estender as mãos aos nossos ianomâmis motivados por uma solidariedade que fortalece nossa institucionalidade e ajuda a reforçar mudanças democráticas, compartilhadas e inclusivas.

A resposta popular foi clara e foi à demonstração do bom senso democrático. A prova disso é que tudo se fez de acordo com nossa Constituição, que reconstrói a confiança popular no processo constitucional de forma pluralista, que esperamos venha a provar que ela responde bem aos desafios do século XXI, em que todos nos sentimos representados.

Essa lição decisiva deve ser transferida para as diversas políticas e reformas públicas, em sua seriedade e profundidade, pensando no longo prazo e que dá ao centro politico na Frente Democrática todas as credenciais de colaborador para a popularidade inicial do governo.


Se a experiência política ensina alguma coisa à carnavalesca muito como mostra Júlio Lopes com o seu Brasil: A nação carnavalesca, é que a pura ação de comunicação não pode, em um sistema democrático e republicano, transformar coisas sem valor em pepitas de ouro.

É possível melhorar nos próximos meses? Sempre é possível, mas para isso a conduta do governo deve ser do espaço para maturidade e experiência, que deve ser ampliado em seus quadros gerenciais.

Só de falar de acontecimentos recentes, num país como o nosso, que passa por graves problemas, não podemos nos permitir um carnaval de descuidos. Também não é bom armar acusações ministeriais e tampouco instrumentaliza-las banalmente nas batalhas políticas.

Seria mais do que desejável que este Carnaval incluísse além do bom samba muita reflexão e boa leitura, que Oxalá passasse por uma releitura crítica dos nossos autores preferidos, embora não nos custe nada atravessar o Rubicão intelectual e ler tantos outros sobre a teoria democrática e republicana. Que pudessem conhecer os percursos, virtudes e erros das grandes figuras políticas que marcaram as experiências democráticas dos últimos dois séculos.

As leituras poderiam permitir argumentar solidamente contra aqueles que deliram com a moeda única para a América, quando a integração continental ainda não consegue superar o estado de prostração a que a levou a retórica irresponsável de muitos líderes da região em nosso século.

Administrar um país é coisa séria, e sem uma ampla cultura política para à Frente Democrática, puras boas intenções nos levarão diretamente a pavimentar o caminho para o inferno.

 

18 de fevereiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 006 - CRISES DA DEMOCRACIA

Desemperrando as Democracias

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Que as democracias na América vinham sendo emperradas podia parecer ser uma lenda a poucos anos atrás. Nos últimos tempos não mais. Os motivos desse estado de coisas são bem conhecidos e os eventos também. Mas é conveniente revisar rapidamente três histórias e suas raízes.

Brasil, Peru e El Salvador são as experiências icônicas da conjuntura. Em 8 de janeiro próximo, uma multidão invadiu o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palacio do Planalto da Presidência em Brasília, protestando contra uma fake news de fraude eleitoral contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, sem a menor evidência correspondente. Eles causaram estragos, fizeram com que imagens vergonhosas - análogas a do ataque ao Capitólio dos Estados Unidos da América em 6 de janeiro de 2021 - fossem transmitidas em todo o mundo e fizeram com que o novo governo recorresse as prisões, investigações e atos simbólicos em defesa da democracia, mostrando sua robustez. Não tanto pelos manifestantes, mas pelo grande número de brasileiros que, de fato, acreditam nessas teorias da conspiração sobre o resultado das eleições. O evento vai além da ideia dominante de polarização, que pode até existir em outros países ou mesmo no Brasil em outros momentos.

O exemplo do Peru é diferente. A disputa lá não foi sobre os resultados eleitorais, mas em relação ao conjunto de instituições existentes no país. Certamente, as eleições de 2021, onde Pedro Castillo foi eleito no segundo turno por pequena diferença, foram questionadas por seus adversários. E o Congresso peruano, poderoso devido ao sistema híbrido que existe no país, passou um ano e meio dificultando a vida de Castillo, tentando destituí-lo em diversas ocasiões, acusando-o de corrupção e incompetência.


O país de Mariátegui não enfrentava um simples conflito de poderes. Por trás do confronto havia - e hoje mais do que nunca - divisões de classes, regionais e étnicas. Apesar do bom desempenho econômico insustentável deles no conjunto da América desde o ano 2000, subsiste uma reivindicação ancestral da maioria das peruanas e peruanos contra exclusões multifacetadas. Os protestos que começaram no sul do país após a destituição de Castillo e se estenderam até Lima foram violentamente reprimidos - com mais de 50 mortos - e às vezes parecem assumir um caráter quase insurrecional. Os manifestantes exigem a renúncia da Presidente, que substituiu Castillo, eleições imediatas em vez de 2026 - como anunciou Boluarte - e uma Assembleia Constituinte.

Ao contrário do Brasil, onde o andamento econômico tem sido mais difícil, e sem que se culpe a democracia representativa pelos graves atrasos sociais, no Peru esperava-se uma prosperidade graças à democracia, ou pelo menos uma profunda redistribuição. O sentimento também surgiu em outros países: dezenas de milhões de Americanos pedem à sua democracia - nova ou antiga - bem-estar, saúde, educação, moradia, preços justos e melhores empregos. A rigor, a democracia serve para retirar legalmente os governos que não entregam bons resultados e, quando possível, para distribuir de forma mais justa e sustentáveis o crescimento econômico, quando ele existir. Mas isso aconteceu nas velhas democracias após intermináveis lutas, reformas, guerras, eleições e crises: não foi feito de um dia para o outro. As peruanas e peruanos sentem a necessidade premente em exigir mais de sua democracia e isso é bom quando conduzido democraticamente, mas sempre tendo a clareza de que por ela esse intento levará tempo.


Em El Salvador, a democracia deve muito aos seus cidadãos. Ao final de décadas de autoritarismos, violências, pobreza e exílio entre outras intempéries, os acordos de paz de 1992 abriram caminho para um sistema bipartidário de democracia representativa que poderia ter mudado as entranhas do país. As partes em guerra – a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional e as elites salvadorenhas, com o Exército, empresários e partidos políticos - deram uma grande lição de sabedoria e habilidade. Mas tudo o que se seguiu foi para minar essas conquistas. Os quase 30 anos seguintes foram de destruição. A corrupção atingiu extremos e as violências das gangues fez o reembarque no caminho autoritário supostamente apagado.

Nayib Bukele, após eleito em 2019, instalou outra vez a mão autoritária no país. Ao obter resultados contra a violência, o povo o aplaude de acordo com as pesquisas de popularidade, e quase ninguém defende os acordos de paz de Chapultepec e/ou a democracia hoje precária que eles deram origem em outrora. Ele é o ditador mais legal do mundo, um dos líderes mais populares do mundo, e está prestes a ser reeleito - até agora ilegalmente - por ampla margem. Quase toda a sociedade parece aprovar a regressão autoritária, acreditando que isso resolverá seus problemas.

Por enquanto, os partidos, movimentos e lideranças que contribuíram para a instalação de regimes democráticos na América - exceto as ditaduras de Cuba, Nicarágua e Venezuela - tem mantido o ideal democrático vivo, apesar de todas as suas deficiências como ficou claro no encontro da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, as instituições construídas ao longo de várias décadas são preferíveis a qualquer ditadura, mesmo que ainda não proporcionem o tão desejado e digno bem-estar. Novos eventos surgem na Argentina - pelo crescente conflito entre Executivo e Judiciário - e no México, ante a investida do Executivo contra a autoridade eleitoral. A América não é a Europa, onde há tentações autoritárias em vários países - e em alguns governos, como o da Hungria - tem sido rejeitado, até agora, pelos eleitorados sensatos. Mas desemperrar as democracias é o caminho a ser seguido planetariamente.

 

26 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 16 - A PÁLIDA CEGUEIRA DA SERPENTE

O Pálido Olho do Horizonte

Pablo Spinelli[1]

Dedicado à lembrança dos trinta anos das chacinas da Candelária e de Vigário Geral – o ovo da serpente carioca.

Os acontecimentos em Brasília no dia 8 desse mês abre um leque de questões que o espaço não permite, mas ao vincular com o filme em questão, podemos abrir uma seara importante seja como análise do passado, seja como proposta de intervenção no porvir. Qual a faixa etária dos manifestantes de 2023? Haveria uma relação com uma parte da sociedade que aos 25, 30 anos participou dos movimentos de 2013? E os cinquentões, será que colocaram o verde e o amarelo nos rostos enquanto “cara-pintadas”, movimento que trouxe à luz uma liderança da UNE na época? E os militares, tanto os do Exército, como os policiais, que tipo de ensino há nas academias? O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do Governo Bolsonaro foi alinhado ao Ministro Sílvio Frota, um dos líderes da “linha-dura” do exército que foi enquadrado pelo então Presidente Geisel na transição da “Ditadura Escancarada” para a “Ditadura Derrotada” iniciada após o falso suicídio do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto nas instalações do II Exército, em São Paulo, sendo que este nunca defendeu a luta armada como Marighella; mas a luta pela política, com a defesa pela Frente Democrática.

Essas perguntas sobre a cultura política na formação do seio militar são importantes porque não houve em nenhum momento desde a redemocratização o diálogo para uma revisão acerca de termos e conceitos da Guerra Fria, como por exemplo, a permanência da Doutrina de Segurança Nacional que tinha (e tem) como princípio a busca pelo inimigo interno, anacronismos conceituais que perpassam gerações de soldados a futuros generais e coronéis da AMAN, dentre outras instituições. Além disso, as irrupções da massa nas ruas sem a política – ou com a sua carnavalização com adesão às paixões extra-institucionais – desde os anos 1990 em diante não sofreram uma contribuição crítica nas escolas, nos sindicatos, nos partidos políticos ou pela mídia tradicional. Com as mudanças estruturais – e a estrutura sempre fala -, houve um brado, um grito de caráter individualista, ególatra, iconoclasta (a destruição do patrimônio cultural em Brasília com a visualização nas redes sociais sem se preocupar com o amanhã demonstram o paroxismo desse brado) no último dia 8.

O filme O Pálido Olho Azul, que estreou há dias na Netflix tangencia nossas perguntas. O filme começa com um enforcamento à Herzog – pernas arqueadas que demonstram que foi um homicídio – cujo corpo sofreu uma profanação que será investigada. O detalhe é que o morto era um cadete das boas famílias americanas na famosa academia militar de West Point.

A pedido do oficial Hitchcock (sim, bela homenagem em um filme de suspense com muitas loiras), a investigação caberá ao bem afamado  Augustus Landor (que tem a religião no nome), interpretado pela excelência costumeira de Christian Bale, que carrega em cada ruga a tristeza da tragédia familiar do personagem. Em um cenário de cores frias e paixões e sangues quentes, com uma fotografia de muitos, muitos azuis, o investigador Landor tem o apoio do jovem cadete Edgar Allan Poe (aquele que será o autor americano mais conhecido do mundo gótico, sombrio, romântico e que é o patrono da escola de Wandinha), vivido com competência e sensibilidade por Harry Melling, “primo” de Harry Potter.

A narrativa é de um filme lento, mas não entediante, que acaba por envolver o espectador mais na relação entre o investigador e o jovem poeta do que na resolução do crime em si. Como de hábito, após um cadáver haverá outros. O isolamento do lugar com um serial killer à solta nos remete ao icônico O Nome da Rosa (1986). Cumpre chamar a atenção para o binômio que Landor enfrenta e discute: o fanatismo religioso – instrumentalizado para interesses egoístas – e o militarismo (similar às críticas de Stanley Kubrick em alguns de seus filmes). Da boca de Landor/Bale surge a pergunta: “que tipo de homens vocês (militares) estão formando aqui?”. Levando-se em conta a faixa etária dos cadetes e que o filme se passa em 1830, aqueles jovens foram formados para serem os generais no mais sangrento conflito estadunidense: a Guerra de Secessão (1861-1865). Essa pergunta também está presente no filme A Fita Branca (2009), assim como está ecoando na nossa conjuntura. O que foi formado até aqui? O que será formado adiante? Seria o caso de parafrasear o corvo do poema de  Allan Poe e diante do ocorrido dizer: “Nunca mais! Nunca Mais!”. Não adianta um manancial de boas intenções sem a práxis democrática universalista. Do contrário, tudo será pálido e cinzento, como no final do filme.

Pálido Olho Azul (2022)- disponível: Netflix

Direção: Scott Cooper

Roteiro Scott Cooper

Elenco: Christian BaleHarry MellingGillian Anderson

 




[1] Professor de História da Rede Privada de Educação Básica do Rio de Janeiro.

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 15 - CINEMA É HORIZONTE

Contatos Imediatos com o Cinema

Gina Lollobrigida, PRESENTE!

Por  Vagner Gomes de Souza

 

Entrar num cinema é uma diversão cada vez menos associada as camadas populares no aguardo da “Terra Prometida” da picanha e cerveja. As salas de cinema saíram da convivência com as ruas das grandes metrópoles e foram inseridas nos Shoppings Centers como já denunciava uma das temporadas de Stranger Things. Além disso, o avanço tecnológico do audiovisual reduziu as intervenções do homem como se um filme fosse uma obra de arte “pasteurizada” na inteligência artificial. Por fim, o filme foi “uberizado” pelas redes de streeming em ascensão nesses tempos de pandemia. Mais dinheiro, mais tecnologia, mais mercado, morte dos empregos gerados pelo ir ao cineminha. Na residência o telespectador fica isolado do espetáculo do cinema e pode fraturar um filme para cuidar seus outros afazeres. Ganha espaço as séries em episódios de menos de 40 minutos e um filme se fragmenta mais ainda na mente do público. As cenas de ação ganham mais velocidade e menos tempo é dado para longos diálogos ou longos dramas. Não se espera ouvir os personagens ou destrinchar seus sentimentos, mas simplesmente compartilhar um pouco de adrenalina com menos reflexão. Aparentemente, o grande cinema estaria morto pelos novos tempos, que são sombrios, pois devemos refletir mais e nos reeducar a ouvir os outros.

Então, eis que o diretor de Indiana Jones (Steven Spielberg) nos faz o convite para viver a  emoção do cinema numa trajetória de uma família Os Fabelmans deu título ao filme que se apresenta como a frente democrática na resistência as derivas autoritárias que esse mundo sem cinema está fazendo. O diretor não aceitou fazer um lançamento nos streemings, pois deseja que o público vá ao local aonde ele teve seu primeiro contato com a sétima arte. Antes da exibição, nos lembrando de Alfred Hitchcok que aparecia em seus filmes, Spielberg faz um agradecimento ao público que saiu de sua residência para viver um momento de sonho e emoção no cinema. O filme começa em 1952, tempos em que o macarthismo (caça aos comunistas norte-americanos como atividade contra a pátria) desestruturava a vida de muitos artistas e intelectuais que tinham se aproximado da União Soviética por causa da luta antifascista[1].

Os pais levam Sammy a sua estreia ao cinema para o sugestivo filme “O Maior Espetáculo da Terra” de Cecil B. DeMille. A reação do garoto ficou entre o susto, mas o desejo de buscar entender aquele processo como se fosse a metodologia de ensino do incentivo pela curiosidade. Da infância até a fase jovem adulta ele passa por esse processo de luta para buscar adquirir um entendimento do que lhe está ao seu redor o que lhe fez descobrir segredos na própria família. Os olhos de Sammy se abriram para uma tradução da realidade naquilo que poderia ser somente uma expressão artística. Arte, técnica e ciência são os ingredientes que o personagem principal agrega ao “modus operandi” do filme. Aqueles que assistiam ao drama familiar ou autobiográfico do cineasta na verdade estavam sendo apresentados ao horizonte de um mundo em que o Sonho Americano tinha suas contradições. Por exemplo, nos alertar para a força do antissemitismo na Califórnia dos anos 60 ainda antes do Governo do Cowboy Ronald Reagan.

Consequentemente, os personagens não são apresentados como  paradigmas da essência tóxica, mas se abrem para que o espectador busque compreender suas motivações. Está em aberto muito do que se assiste para que se pense muito. Até que nos aproximamos aos momentos da belíssima interpretação de David Lynch que merece destaque por muito bem caracterizar um John Ford entusiasmado com o olhar para frente. Spielberg realiza uma justa homenagem ao diretor de Rastros de Ódio (1956) e nos brinda com Lynch magnífico sob a sua direção. Enfim, tudo como o bom velho cinema nos ensina a ser para sempre como espaço democrático de convivência.


[1] Há inúmeros filmes em Hollywood sobre esse período, sugerimos  Trumbo – Lista Negra direção de Jay Roach (2015).