sexta-feira, 17 de março de 2023

SÉRIE ESTUDOS - SOBRE A MEMÓRIA


 

Pensar para agir; agir para pensar.

 

Marcio Junior[1]

 

Não há dúvidas, inclusive para as pessoas comuns, que andam pelas ruas das cidades e seguem a vida, que estamos em tempos de mudanças profundas e dolorosas. Tempos de incertezas. Há, decerto, várias formas de “ler” esses fenômenos, inclusive a um nível que, ao falarmos de humanos, não é visível a olho nu.

Eric Kandel, neurofisiologista vienense que, em 2000, foi agraciado com o Nobel de Fisiologia e Medicina, relata em livro como que, para ele, a busca pela memória é, antes de tudo, uma preocupação pessoal e histórica. Aos 9 anos, filho de um judeu dono de uma loja de brinquedos na Viena de 1938, cidade em que tanto o desejo sexual quanto o antissemitismo se podiam sentir tensionados no ar, viu os citadinos se oporem firmemente tanto à chegada de Hitler à Áustria quanto à anexação desta à Alemanha nazista. Porém, na ocasião da chegada do exército alemão e posteriormente também a do Führer no dia seguinte, este foi ovacionado pelos vienenses, tendo os judeus que apagar as pichações feitas na rua, com mensagens contra a anexação.

Seu pai estava lá, esfregando o asfalto com uma escova de dente. Isso o levou e a família a emigrar aos EUA, onde estudou marcado por este e outros tristes episódios biográficos. Assim, os estudos de como os neurônios se comportam, conjuntamente, para que seja possível a aprendizagem e a memória, buscou responder antes de tudo como, de um dia para o outro, parte considerável do povo da sua cidade natal simplesmente esqueceu e aderiu, sem filtros, à experiência nazista.

Ao lembrar-se dos nazistas adentrando a sua casa enquanto brincava com seu carrinho azul, do pequeno apartamento da família em Viena, da viagem aos EUA com o irmão, o seu corpo captou tudo que ocorria através de várias vias sensoriais e seu cérebro processou essas informações a partir de uma complexa rede de células que se comunicam de forma igualmente complexa. Há uma relação complexa do mundo exterior, ambiental, com o interior do corpo e do cérebro. Descobrir estes mecanismos, porém, não surgiu de algo centrado no eu sem o nós. Havia, decerto, uma preocupação intelectual que ultrapassava o indivíduo; um contexto a ser compreendido. Afinal, corre-se um grande risco ao operar conceitos, inclusive os das ciências naturais, sem tempo e espaço.

Assim, a falência da educação é transpassada por uma falta de rigor que tem consequências, inclusive, cerebrais. Afinal, é também a partir do contato com o outro, ocorrem processos a nível molecular: basicamente, ao vermos e/ou sentirmos algo, essas informações chegam por sinal elétrico aos nossos neurônios responsáveis por elas que, por sua vez, liberam neurotransmissores para enviar essas informações em cadeia a outros neurônios, com endereços certos. Ao fazerem as leituras dessas informações, os genes presentes nos núcleos desses neurônios mudam os perfis das proteínas produzidas por eles, o que muda também a forma das sinapses, isto é, a comunicação bioquímica e elétrica entre essas células, acarretando, à nível molecular, na aprendizagem e na memorização. Porém, não se trata de um processo isolado nas nossas cabeças: ele está em constante interação com o mundo em que vivemos, nossas relações com as pessoas e com a história, e a ausência de educação cuidadosa e bem feita tem consequências, inclusive, a nível celular. Nesse sentido, não seria, de certa forma, sugestivo o uso do arcabouço conceitual de um Durkheim? Afinal, as sociedades já estavam aqui quando nascemos e, assim como o corpo, o cérebro e a mente, também são capazes de aprender, esquecer, adoecer e sofrer.

Em tempos de certo "narcisismo normativo", em que as preocupações das pessoas estão demasiadamente voltadas ao seu interior e seus sentimentos, sensações e outras variáveis subjetivas e biológicas que não apenas bastam como também se tornam sobretudo normas para julgar quem é superior ou inferior na hierarquia da sociedade. Neste contexto de fácil aderência a um patrulhamento ao que é aprendido, "não pode haver intelectuais se não há leitores", diz a manchete de uma entrevista de Habermas ao El País, em 2018. A título de exemplo e um breve exercício, quem somos nós, enquanto Brasil? Estas e outras perguntas podem e devem ser respondidas através do rastro deixado pelo nosso pensamento social: somos americanos, mas americanos ao nosso modo, ibéricos, mestiços, marcados pela escravidão e falamos português. São as características primas, se estudadas de forma competente, para a compreensão e construção progressiva da nossa democracia e nossa República, e não podem ser esquecidas.

Porém, os tempos não deixam de ser oportunos: as agendas em voga, principalmente a ambiental, nos obrigam inevitavelmente a sermos seres globais, reconhecendo que não podemos enfrentar nossos problemas sem o outro e o outro não pode enfrentá-los sem nós. Logo, para que as respostas a esses problemas sejam dadas à altura deles, seguir o exemplo de Kandel torna-se sugestivo. É preciso que as novas gerações tenham acesso, desde a infância, ao melhor que a humanidade fez para que existam condições de responder aos problemas que são, cada vez mais, criados por ela própria.





[1] - Doutorando pelo CPDA/UFRRJ.

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