segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 16 - A PÁLIDA CEGUEIRA DA SERPENTE

O Pálido Olho do Horizonte

Pablo Spinelli[1]

Dedicado à lembrança dos trinta anos das chacinas da Candelária e de Vigário Geral – o ovo da serpente carioca.

Os acontecimentos em Brasília no dia 8 desse mês abre um leque de questões que o espaço não permite, mas ao vincular com o filme em questão, podemos abrir uma seara importante seja como análise do passado, seja como proposta de intervenção no porvir. Qual a faixa etária dos manifestantes de 2023? Haveria uma relação com uma parte da sociedade que aos 25, 30 anos participou dos movimentos de 2013? E os cinquentões, será que colocaram o verde e o amarelo nos rostos enquanto “cara-pintadas”, movimento que trouxe à luz uma liderança da UNE na época? E os militares, tanto os do Exército, como os policiais, que tipo de ensino há nas academias? O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do Governo Bolsonaro foi alinhado ao Ministro Sílvio Frota, um dos líderes da “linha-dura” do exército que foi enquadrado pelo então Presidente Geisel na transição da “Ditadura Escancarada” para a “Ditadura Derrotada” iniciada após o falso suicídio do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto nas instalações do II Exército, em São Paulo, sendo que este nunca defendeu a luta armada como Marighella; mas a luta pela política, com a defesa pela Frente Democrática.

Essas perguntas sobre a cultura política na formação do seio militar são importantes porque não houve em nenhum momento desde a redemocratização o diálogo para uma revisão acerca de termos e conceitos da Guerra Fria, como por exemplo, a permanência da Doutrina de Segurança Nacional que tinha (e tem) como princípio a busca pelo inimigo interno, anacronismos conceituais que perpassam gerações de soldados a futuros generais e coronéis da AMAN, dentre outras instituições. Além disso, as irrupções da massa nas ruas sem a política – ou com a sua carnavalização com adesão às paixões extra-institucionais – desde os anos 1990 em diante não sofreram uma contribuição crítica nas escolas, nos sindicatos, nos partidos políticos ou pela mídia tradicional. Com as mudanças estruturais – e a estrutura sempre fala -, houve um brado, um grito de caráter individualista, ególatra, iconoclasta (a destruição do patrimônio cultural em Brasília com a visualização nas redes sociais sem se preocupar com o amanhã demonstram o paroxismo desse brado) no último dia 8.

O filme O Pálido Olho Azul, que estreou há dias na Netflix tangencia nossas perguntas. O filme começa com um enforcamento à Herzog – pernas arqueadas que demonstram que foi um homicídio – cujo corpo sofreu uma profanação que será investigada. O detalhe é que o morto era um cadete das boas famílias americanas na famosa academia militar de West Point.

A pedido do oficial Hitchcock (sim, bela homenagem em um filme de suspense com muitas loiras), a investigação caberá ao bem afamado  Augustus Landor (que tem a religião no nome), interpretado pela excelência costumeira de Christian Bale, que carrega em cada ruga a tristeza da tragédia familiar do personagem. Em um cenário de cores frias e paixões e sangues quentes, com uma fotografia de muitos, muitos azuis, o investigador Landor tem o apoio do jovem cadete Edgar Allan Poe (aquele que será o autor americano mais conhecido do mundo gótico, sombrio, romântico e que é o patrono da escola de Wandinha), vivido com competência e sensibilidade por Harry Melling, “primo” de Harry Potter.

A narrativa é de um filme lento, mas não entediante, que acaba por envolver o espectador mais na relação entre o investigador e o jovem poeta do que na resolução do crime em si. Como de hábito, após um cadáver haverá outros. O isolamento do lugar com um serial killer à solta nos remete ao icônico O Nome da Rosa (1986). Cumpre chamar a atenção para o binômio que Landor enfrenta e discute: o fanatismo religioso – instrumentalizado para interesses egoístas – e o militarismo (similar às críticas de Stanley Kubrick em alguns de seus filmes). Da boca de Landor/Bale surge a pergunta: “que tipo de homens vocês (militares) estão formando aqui?”. Levando-se em conta a faixa etária dos cadetes e que o filme se passa em 1830, aqueles jovens foram formados para serem os generais no mais sangrento conflito estadunidense: a Guerra de Secessão (1861-1865). Essa pergunta também está presente no filme A Fita Branca (2009), assim como está ecoando na nossa conjuntura. O que foi formado até aqui? O que será formado adiante? Seria o caso de parafrasear o corvo do poema de  Allan Poe e diante do ocorrido dizer: “Nunca mais! Nunca Mais!”. Não adianta um manancial de boas intenções sem a práxis democrática universalista. Do contrário, tudo será pálido e cinzento, como no final do filme.

Pálido Olho Azul (2022)- disponível: Netflix

Direção: Scott Cooper

Roteiro Scott Cooper

Elenco: Christian BaleHarry MellingGillian Anderson

 




[1] Professor de História da Rede Privada de Educação Básica do Rio de Janeiro.

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 15 - CINEMA É HORIZONTE

Contatos Imediatos com o Cinema

Gina Lollobrigida, PRESENTE!

Por  Vagner Gomes de Souza

 

Entrar num cinema é uma diversão cada vez menos associada as camadas populares no aguardo da “Terra Prometida” da picanha e cerveja. As salas de cinema saíram da convivência com as ruas das grandes metrópoles e foram inseridas nos Shoppings Centers como já denunciava uma das temporadas de Stranger Things. Além disso, o avanço tecnológico do audiovisual reduziu as intervenções do homem como se um filme fosse uma obra de arte “pasteurizada” na inteligência artificial. Por fim, o filme foi “uberizado” pelas redes de streeming em ascensão nesses tempos de pandemia. Mais dinheiro, mais tecnologia, mais mercado, morte dos empregos gerados pelo ir ao cineminha. Na residência o telespectador fica isolado do espetáculo do cinema e pode fraturar um filme para cuidar seus outros afazeres. Ganha espaço as séries em episódios de menos de 40 minutos e um filme se fragmenta mais ainda na mente do público. As cenas de ação ganham mais velocidade e menos tempo é dado para longos diálogos ou longos dramas. Não se espera ouvir os personagens ou destrinchar seus sentimentos, mas simplesmente compartilhar um pouco de adrenalina com menos reflexão. Aparentemente, o grande cinema estaria morto pelos novos tempos, que são sombrios, pois devemos refletir mais e nos reeducar a ouvir os outros.

Então, eis que o diretor de Indiana Jones (Steven Spielberg) nos faz o convite para viver a  emoção do cinema numa trajetória de uma família Os Fabelmans deu título ao filme que se apresenta como a frente democrática na resistência as derivas autoritárias que esse mundo sem cinema está fazendo. O diretor não aceitou fazer um lançamento nos streemings, pois deseja que o público vá ao local aonde ele teve seu primeiro contato com a sétima arte. Antes da exibição, nos lembrando de Alfred Hitchcok que aparecia em seus filmes, Spielberg faz um agradecimento ao público que saiu de sua residência para viver um momento de sonho e emoção no cinema. O filme começa em 1952, tempos em que o macarthismo (caça aos comunistas norte-americanos como atividade contra a pátria) desestruturava a vida de muitos artistas e intelectuais que tinham se aproximado da União Soviética por causa da luta antifascista[1].

Os pais levam Sammy a sua estreia ao cinema para o sugestivo filme “O Maior Espetáculo da Terra” de Cecil B. DeMille. A reação do garoto ficou entre o susto, mas o desejo de buscar entender aquele processo como se fosse a metodologia de ensino do incentivo pela curiosidade. Da infância até a fase jovem adulta ele passa por esse processo de luta para buscar adquirir um entendimento do que lhe está ao seu redor o que lhe fez descobrir segredos na própria família. Os olhos de Sammy se abriram para uma tradução da realidade naquilo que poderia ser somente uma expressão artística. Arte, técnica e ciência são os ingredientes que o personagem principal agrega ao “modus operandi” do filme. Aqueles que assistiam ao drama familiar ou autobiográfico do cineasta na verdade estavam sendo apresentados ao horizonte de um mundo em que o Sonho Americano tinha suas contradições. Por exemplo, nos alertar para a força do antissemitismo na Califórnia dos anos 60 ainda antes do Governo do Cowboy Ronald Reagan.

Consequentemente, os personagens não são apresentados como  paradigmas da essência tóxica, mas se abrem para que o espectador busque compreender suas motivações. Está em aberto muito do que se assiste para que se pense muito. Até que nos aproximamos aos momentos da belíssima interpretação de David Lynch que merece destaque por muito bem caracterizar um John Ford entusiasmado com o olhar para frente. Spielberg realiza uma justa homenagem ao diretor de Rastros de Ódio (1956) e nos brinda com Lynch magnífico sob a sua direção. Enfim, tudo como o bom velho cinema nos ensina a ser para sempre como espaço democrático de convivência.


[1] Há inúmeros filmes em Hollywood sobre esse período, sugerimos  Trumbo – Lista Negra direção de Jay Roach (2015).

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 005 - LIÇÕES SOBRE FRENTE DEMOCRÁTICA

Visão sobre os graves incidentes de Brasília

 

Para Frida Pimentel Gomes de Souza para saber um pouco sobre Filipinas e Frente Democrática.

Por Vagner Gomes de Souza

 

Imaginemos uma família de filipinos acompanhando os graves incidentes de Brasília no dia 8 de janeiro e seus desdobramentos. A longínqua Filipinas teve um governo centralizador de 21 anos de Ferdinand Marcos que foi eleito em 1964 (ano do Golpe Militar do Brasil). As sucessivas reeleições foram questionadas como fraudulentas e feitas por uma administração corrupta desse quase desconhecido país que foi colonizado pelos hispânicos. Seu processo de independência, muito diferente do brasileiro, foi “abortado” pelo Tratado de Paris em que passou a ser um "protetorado" dos Estados Unidos. As forças do Eixo invadiram esse país na Segunda Guerra Mundial agravando sua desigualdade social. A vitória das forças coligadas contra o Nazifascismo garantiu que ela se tornasse independente em 1945. A Segunda República das Filipinas é uma dádiva da luta antifascista o que não impediu a triste política autoritária que vai durar de 1965 até 1986.

Sem falar das extravagâncias da esposa do Presidente, Imelda Marcos, Aos 18 anos de idade, Imelda Marcos venceu um concurso de beleza local, conquistando o título de "Rosa de Tacloban". Depois venceu concurso semelhante, conquistando o título de "Miss Leyte". Em 1950, conquistou o título de "Musa de Manila", uma espécie de prêmio de consolação que ganhou do prefeito de Manila, após ter sido derrotada no concurso para eleger a Miss Manila. Imelda teria contestado o resultado desse último concurso, alegando que sua derrota não teria passado de "marmelada". Em 1954, ela conheceu o então deputado Ferdinando Marcos. O noivado foi brevíssimo: 11 dias depois eles se casaram na Catedral de Manila. Para manter seu estilo de vida extravagante, Imelda desviou milhões de dólares dos cofres públicos para comprar joias, roupas, casas e apartamentos em diversas partes do mundo. Costumava fazer compras em lojas caras de Nova York e de cidades da Europa. Ela comprou diversas propriedades em Manhattan, entre as quais os edifícios Crown e Herald Centre.

Nossa família fictícia de filipinos poderia muito opinar sobre os descaminhos dos laços familiares na política uma vez que Imelda Marcos chegou a ser eleita Deputada após o retorno a Filipinas e dois filhos do casal seguiram na carreira política ao ponto do atual Presidente ser um Marco (acrescentemos que a Vice é filha do autoritário Rodrigo Duterte). Os traços do patriarcado não se acabam por decreto ou outros atalhos nos territórios e lugares de fala.


Em 1986, Corazón Aquino tomou posse na Presidência fazendo um "L"

Essa seria a distante possibilidade de visão distante que nos recorda o quanto não se pode distanciar das lições da vitoriosa  Frente Democrática no segundo turno no Brasil. Corazon Aquino não foi uma oposicionista feminista, mas a esposa de um líder assassinado que chegou a ter um filho na Presidência. Os sucessores Fidel Ramos e seu próprio filho não impediram que uma política reacionária de Duterte/Marcos se instalasse pela via do voto. Recordemos que nossa Frente foi vitoriosa por uma histórica pequena margem de votos o que nos ensina a ser cautelosos nas posturas de governança e nas falas em todos seus lugares. Uma vez que os fantasmas do populismo reacionário são um espectro muito real a rondar as ações antipolíticas e antidemocráticas. O isolamento e possível derrota política dessas forças requerem muito tempo, paciência e saber fazer pontes com todos aqueles que se sentiram até iludidos pelos “acampamentos pacíficos”.

O inimigo comum não pode ser esquecido pelos cálculos eleitorais, o que estava a se desenhar. Muitos estavam também iludidos que o jogo de 2022 já estava jogado. Não se preveniram da pulsação de um movimento internacional iliberal que se consolida nas Filipinas e deseja reverter a situação aqui no Brasil pela via do voto. Não nos iludamos que querem fazer do voto uma arma para que se instale a “soberania das multidões” como uma ameaça do igualitarismo empreendedor. Uma soberania do social pela base sem mediação de atores da política uma vez que os Partidos Políticos são vistos como lugares de construção de espaços políticos individuais até por figuras do campo progressista. Menos individualismo se exige das novas lideranças que devem defender a República e a Democracia. Olhai as vinhas sem vinho da ira dos nossos hermanos do Chile para se ver que temos que aprofundar os caminhos de respostas institucionais aos graves acontecimentos de Brasília. “Democracia Sempre” será uma tarefa para uma maior unidade com as forças da Democracia desde já nesse movimentado ano de 2023 pois 2024 está para “brotar” na política como diria no “carioquês”.

sábado, 7 de janeiro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 004 - GOVERNO LULA


 Foto: Equipe de VOTO POSITIVO 01/01/2023

Visões da Posse Presidencial Brasileira

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

De Paris, pelas capas e páginas do Le Monde, as notícias que se conhecem sobre a América (salvo os EUA) são muito escassas, exceto, aliás, o triunfo da Argentina na Copa do Mundo, naquela esplêndida final contra a França e a posse de Lula.

Como se era de esperar os franceses ficaram tristes, mas com uma tristeza contida, que se combina com as baixas temperaturas deste inverno, os dias de chuva e muitos dias em que o céu tem uma cor acinzentada.

Após a Copa do Mundo, que agora parece distante, as notícias continuaram a se concentrar principalmente na invasão russa da Ucrânia e esse relance sobre o país de Pelé, inclusive a sua despedida e as homenagens.

A Ucrânia, já se disse, tem uma história difícil, complexa e até inconstante na sua relação com a Europa, mas hoje se tornou um símbolo europeu não só como realidade geográfica, mas como portadora dos valores que incorporou desde o fim da Segunda Guerra Mundial e por meio de um espírito de incrível resistência à anacrônica lógica imperial do século XIX da Rússia contemporânea.

A chancelaria do Brasil não errou em condenar tamanha invasão e é motivo de orgulho, pois só no confuso e triste momento que a América atravessava inclusive com o Presidente daqui a época que brincava de aprendiz de feiticeiro e assumira posições alheias à condenação da invasão, reagindo com posições ambíguas.

Claro que aquele populismo reacionário que imaginava viver na velha guerra fria e até pensou que o regime oligárquico russo havia um que de similitude com o que aqui se fazia. Mas Bolsonaro, um personagem de extrema direita, viúvo de Trump, também fez o que é de praxe fazia diuturnamente em sua conduta: o disparate total.

Nossa América tem em seu radar ser a favor o abraço e respeito ao Direito Internacional e a defesa das democracias, por mais imperfeitas que sejam. E é aí que a cerimônia da Posse Presidencial Brasileira entrou nos jornais planetários.

Ficou claro nela que nosso lugar é no Ocidente, com base em nossos valores fundadores e históricos, incluindo a miscigenação e o sincretismo intercultural, e o gesto brilhante da subida e entrega da faixa repôs a bela realidade do nosso extremo ocidente, como apontou Alain Rouquié.


Pedro Castillo quando assumiu o mandato.

Paralelamente a situação que o Peru atravessa fez pouco barulho, embora tenha sido manchete o autogolpe do ex-presidente Pedro Castillo, depois de um mandato presidencial tão inútil quanto perigoso, indecifrável, pitoresco, etéreo, sem orientação conhecida, por onde passaram numerosos ministros e ministras, de diversas cores políticas, cujo trabalho ninguém conhecia, até porque duraram muito pouco. Foi declarado pelo Parlamento com "incapacidade moral permanente", conceito muito elaborado, onde bastava dizer incapaz tout court.

Também se falou em corrupção. O Parlamento, que também não é um caldeirão de virtudes democráticas e republicanas, agiu legalmente nesta ocasião contra o autogolpe.

Já faz algum tempo que o Peru quase não tem sistema político. Sua economia cresceu e tem riqueza, mas a desigualdade é grande e a pobreza social e territorial continua alta. Os partidos políticos são fragmentados e nas mãos de caudilhos e seus presidentes muitas vezes terminam muito mal. Nada que Mariátegui não tenha visto e escrito.

No entanto, não podemos considerar o Peru como uma exceção. Os fenômenos descritos estão presentes em toda a América (e não só) de forma mais ou menos aguda.

Ninguém na América poderia atirar a primeira pedra. Em todos os países, a crise das instituições democráticas tendeu a se agravar, a pobreza e a desigualdade aumentaram, a insegurança cidadã e o aumento da criminalidade existem em todos os lugares. Embora as Américas Central e do Sul representem 8,6% da população mundial, um terço dos crimes do mundo ocorre por aqui.

Estamos longe do período de prosperidade que terminou em 2013. Como aponta o último Balanço Preliminar das Economias da CEPAL, na década de 2014-2023 experimentaremos um crescimento ainda menor do que o dá década perdida da crise da dívida, ocorrida nos anos 1980.

O esforço que devemos fazer para sair desta prolongada crise, certamente agravada pela pandemia, será enorme.

A retórica populista, seja qual for sua cor, mostrou uma total incapacidade de combinar mais crescimento, mais igualdade e mais liberdade para a sociedade dos indivíduos. Os três elementos que John Maynard Keynes definiu como o problema político das humanidades.

O Brasil que quase não era falado passou para as manchetes e talvez isso seja, afinal, um bom sinal. Em comparação com a grande maioria dos países da América, o Brasil resistiu e conseguiu manter muitas vantagens acumuladas pelos anos democráticos. Mas essa perspectiva só renderá mais frutos com um impulso permanente, boa governança republicana, melhor prática da política da frente democrática, mais cooperação do que conflito. Pelo que se anunciou voltamos a este caminho, as situações mais negativas que vimos à nossa volta nos últimos 4 anos, devem fazer parte da coleção tristonha de nosso passado de murmúrios e que não mais voltem a nos assombrar.   

                                                                                             5 de janeiro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 14 - 50 ANOS DE O PODEROSO CHEFÃO


                                                              O Poderoso Chefão – 50 anos

Em memória da ibérica Nélida Piñon e de Pedro Paulo Rangel

Por Pablo Spinelli

Um dos conceitos basilares para a formação da humanidade é o da família. De antropólogos a arqueólogos, de historiadores a sociólogos, esse é um dos temas que perpassa a noção de clã, de formação do Estado, de alianças por posse de terras e águas em tempos primitivos. Falar a partir de um núcleo familiar em qualquer expressão das artes é passar uma mensagem universal, apontar virtudes e defeitos, projeções e frustrações em um imaginário coletivo familiar.

O Brasil é um país que desde a formação das Capitanias Hereditárias e pela tradição ibérica ao se misturar com a ameríndia teve a tônica do núcleo familiar. Uma dos grandes pensadores brasileiros, Oliveira Vianna, apontava os núcleos dispersos das famílias como um entrave para um modelo liberal para o país. Gilberto Freyre, na sua obra-prima muito criticada e pouco lida fala das acomodações familiares onde os escravizados acabaram por reproduzir aqui os núcleos familiares de molde do colonizador, como nos mostrou Robert Slenes, dentre vários. Para dois dos fundadores do PT, a família é uma herança do patrimonialismo ibérico dos Donos do Poder e que poderia ser uma raiz ruim dentro das Raízes do Brasil.

Ao contrário do que se pensa, o núcleo familiar não é originário do mundo ibérico, mas do mundo antigo, destacadamente, Roma. Portanto, na Itália, o conceito de família está presente e transborda para a cultura política do país – a nação como uma família, nos parâmetros fascistas, ou a família como núcleo de divergências, debates, conflitos, festas, alegrias dentro da tradição do cinema italiano que vai de A mão de Deus (2021) à Feios, Sujos e Malvados (1976). 


Coube a um descendente italiano lançar em dezembro de 1972 a maior obra do cinema sobre uma família. Francis Ford Coppola adaptou com o também ítalo-americano Mario Puzo, o livro The Godfather (uma mescla da família e religião), conhecido no Brasil pela hipérbole O Poderoso Chefão.

Há 50 anos, os EUA viviam um momento de ebulição com os escândalos – para nós, algo pueril – do Watergate que levou à renúncia do Presidente Richard Nixon, um dos pais da manipulação do que hoje se chama de fake news havia passado pela morte dos Kennedy (uma família muito sombria), de Luther King e Malcolm X. Os EUA viviam uma onda de pessimismo e ceticismo que o novo cinema americano abordou em formas cínicas, críticas e variadas. Coppola escolheu os Corleone como um símbolo de uma instituição que teria como concorrente à corrupção e violência o próprio Estado. O esquerdismo do diretor acabou por glamourizar a família principal com características que um reacionário adoraria: honra, tradição, hierarquia, patriarcado, lealdade. Os filmes posteriores ajustaram isso e fizeram dos Corleone a maior saga familiar desde Shakespeare.

Como qualquer escolha é de caráter subjetivo, entendo O Poderoso Chefão como o melhor filme do cinema jamais feito por conta da correção em todos os seus elementos: o elenco que vai desde o desacreditado Marlon Brando – que é o coadjuvante, mas sua estupenda atuação faz parecer o protagonista – aos já iniciados Robert Duvall e James Caan até aos “novatos” Al Pacino e Diane Keaton. A fotografia do mestre das sombras Gordon Willis, cenários de Dean Tavoularis, a trilha inesquecível de Nino Rota, parceiro de Fellini, as locações na Sicília (destaque para os cartazes do PCI nos muros por onde anda Michael Corleone), o roteiro que nos ensina que um filme lento é diferente de monótono e o seu final catártico, barroco, que tem muito a ensinar ao Tribunal da Virtude Linguística que nos domina: palavras não determinam ações.

Para um país que viveu por 4 anos sob o jugo de uma família farsesca de origem italiana, que tentou trazer para si o paradigma familiar a partir de valores ditos medievais mas que viveu sob a sombra do liberalismo – o pai é um divorciado e foi um amasiado -  e que agora pode viver novamente sob a sombra das famílias corporativas da representatividade identitária e do aparelhamento para os “bons companheiros”, um alerta do país ao governo que se organizar pela premissa de que “não é nada pessoal, são apenas negócios”: uma nova cabeça de cavalo ou de burro pode aparecer na cama. O Centrão pode passar o garrote.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 003 - PARA FAZER UM BALANÇO DE 2022


Sobre Resistências, Resiliências e Balanços

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Embora as tendências sociais, econômicas e políticas projetadas para 2022 no planeta não tenham sido negadas pelos acontecimentos, a realidade foi ainda mais dura do que se imaginava.

O ano que ainda não acabou foi um ano em que o mundo viveu em perigo houve até ameaças de uso de armas nucleares. Aos novos medos foi adicionado o renascimento de velhos medos. Foi um ano em que a barbárie teve mais presença do que a civilização.

Nesse quadro, porém, surgiram surpresas que mostram uma capacidade de resistência e resiliência cidadã contra a lei da selva, o bullying político, a imposição de um discurso e ação violenta, o que deixa aberta a esperança de um maior élan civilizatório e liberdades.

A maior surpresa foi à resistência da Ucrânia à invasão russa, cujo custo tem sido terrível para aquele país e tem repercussões políticas e econômicas em todo o mundo, mas cujo significado histórico, sem dúvida, influenciará o curso da história.

A invasão da Ucrânia pela Rússia tem suas raízes mais profundas na história distante, mas as raízes mais próximas estão na Rússia pós-soviética, já que o projeto democrático não conseguiu se enraizar naquele país e a democracia perdeu todas as esperanças com a sequência de eleições, cuja única orientação delas tem sido a reconstrução de uma suposta potência russa ferida e decadente. Elas se inspiraram tanto nos sonhos imperiais do czarismo abrigados pela Igreja Ortodoxa Russa quanto na versão mais nacionalista e anticomunista do stalinismo soviético.

A sequência de eleições russas tem combinado em seu pensamento um estranho casamento em que coexistem alegremente o capitalismo corrupto de raízes oligárquicas e o nacionalismo autoritário, distante de qualquer coisa que cheire a democracia.

O que tem sido móvel é a vontade geopolítica da Rússia em recuperar um suposto poder perdido por um imenso país, mas que tem mostrado sérias limitações para enfrentar os desafios hodiernos, perdendo seu papel de superpotência, concentrando sua força, sobretudo, nos recursos naturais e nas forças armadas e tendo que abraçar com relutância de forma subordinada uma China que em poucos anos ganhou dela uma distância irreconciliável.

Há vários anos, o caminho da Rússia tem sido o caminho da força. Passou pela Chechênia, Geórgia, Moldávia, aventurou-se na Síria e na Líbia, estabeleceu-se na Crimeia e está tentando fazê-lo no Donbass. A decisão de invadir a Ucrânia em fevereiro deste ano é a cristalização desse caminho.

A Ucrânia é um país com uma história nacional complexa, rica em recursos, mas fraca economicamente. Com uma democracia tão problemática quanto à russa e com um presidente do mundo do entretenimento.

A invasão era para ser uma opção vitoriosa e fácil, a ser concluída em poucos dias, quase uma caminhada triunfante, que ultrapassaria as cercas da geopolítica mundial. Mas a Ucrânia foi uma surpresa inesperada. Em primeiro lugar, apoiava-se na razão e no direito de se manter como nação independente e democrática e na vontade de fazer todos os sacrifícios necessários para consegui-lo.

A reconstrução da Ucrânia será um épico no dia em que a paz for alcançada, o que sabemos bem que não está na próxima esquina. Essa paz é necessária, mas terá de ser feita respeitando o complexo e enorme sacrifício planetário em prol da civilidade.


O Brasil esteve do lado certo da história neste conflito, a despeito das hesitações do governo nossa chancelaria não titubeou e se saiu bem, mesmo com o perigoso agravamento da polarização da sociedade brasileira numa situação mundial tremendamente incerta.

Pelos caminhos da vida a frente democrática se fez e conseguiu galvanizar uma reação negativa dos eleitores contra o discurso grosseiro e odioso, preferindo votar na defesa das conquistas sociais e da convivência democrática.

Nada está resolvido para o futuro, mas a deriva para o populismo narcisista por ora parece mais distante. Muito dependerá da capacidade da frente democrática sobreviver a fabula da frente ampla e o governo que se forma a represente e promova as mudanças sociais necessárias, sem provocar desequilíbrios que abram espaço para o discurso briguento.

É bom lembrar isso quando nos aproximamos do final do ano. O resultado eleitoral foi uma manifestação clara e indiscutível de bom senso, maturidade cívica, vontade de reforma e reforço democrático. Não foi um triunfo da esquerda nem tampouco de uma frente ampla, mas sim um triunfo da frente democrática, do caminhar sereno perante a exacerbação das identidades e a quebra dos contrapesos no exercício do poder.

Para o Governo em formação, a sua aceitação tem sido complexa. Mas aos poucos a realidade tende a prevalecer e mesmo com dificuldades, contradições e repulsa dos setores mais radicais e messiânicos, o resultado eleitoral é o embrião de um esforço real para produzir mudanças na vida. Esperemos que isso se consolide e se gerem amplos acordos para avançar.

Afinal, é a única forma possível de responder aos duros desafios que o planeta e o país enfrentam.

 

18 de dezembro de 2022



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.



terça-feira, 20 de dezembro de 2022

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 002 - CARTA ABERTA AO MEC DO FUTURO

Carta Aberta a Transição do MEC para 2023

Pacelli Henrique Silva Lopes

 

Após o resultado da eleição em 30 de outubro de 2022, sendo esse o pleito mais apertado da nossa história democrática pós-1988, ficou claro como precisaremos reconstruir o país em torno de um projeto de nação. Infelizmente, chegamos ao último pleito eleitoral sem que nenhum dos candidatos presidenciáveis tivesse apresentado de forma clara um programa de governo. Com isso, é necessário agora mantermos mobilizados a frente democrática, para que juntos, possamos construir um programa de governo que seja alicerce para o novo governo Lula & Alckmin, bem como, para um projeto de nação que respeite os valores da constituinte e reforcem nossa democracia e a república.

E de acordo com o noticiado após a primeira reunião do grupo na fala da representante Priscila Cruz, presidente – executiva do Todos Pela Educação é que os três pontos principais que a equipe de transição pretende colocar como prioridades são: recomposição do pacto federativo, do orçamento da pasta e a recuperação do atraso ocasionado pela pandemia de Covid-19. Os temas apontados estão de fato na ordem do dia.

Em resposta a esses e outros problemas no primeiro semestre de 2019 a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) formou a Comissão Internacional Futuros da Educação, responsável por analisar o status quo, bem como, apontarem caminhos possíveis para a educação mundial. Os seguintes expoentes foram convidados: Sahle-Work Zewde, que a presidiu, Masanori Aoyagi, Arjun Appadurai, Patrick Awuah, Abdelbasset Ben Hassen, Cristovam Buarque, Guerra Elisa, Badr Jafar, Doh-yeon Kim, Justin Yifu Lin, Evgeny Morozov, Karen Mundy, António Nóvoa, Fernando M. Reimers, Tarcila Rivera Zea, Serigne Mbaye Thiam, Vaira Vike-Freiberga e Maha Yahya.

Ao adotarem o conceito de novo contrato social da educação os membros se remeteram ao século XVIII, quando o contrato social entrou no cenário e passou a balizar a discussão planetária. Os membros buscaram expressar através deste conceito histórico a necessidade que um novo acordo de cooperação global, a ser feita através de normas, compromissos e princípios democráticos venha consolidar a educação como um bem comum e público reconhecida como um patrimônio da humanidade, capaz de iluminar futuros mais sustentáveis, pacíficos e justos.

Partindo da realidade atual, eles constataram a necessidade de um novo contrato social com as ampliações das possibilidades abertas pelas tecnologias de informação e comunicação tendo ainda dois pontos cruciais, o crescimento da necessidade de uma educação ao longo da vida e a resolução da crise contínua de relevância e deficiências para garantir que as crianças e jovens adquiram habilidades planetárias.

A pandemia abriu um tempo de incertezas que culminou na exposição dos limites da escola tradicional. Nossa realidade traz os seguintes paradoxos da crise global: a desigualdade aumentou e tivemos uma expansão educacional com uma claudicante qualidade; crescimento econômico ao custo de uma degradação ambiental acelerada; se por um lado tivemos o aumento da criatividade e da participação comunitária, vemos a vida cívica e democrática sem todos os seus potenciais. A pandemia da COVID-19 escancarou as vulnerabilidades, pois aos termos escolas fechadas, descobrimos como a vida escolar influência a vida econômica, ficando a sociedade paralisada e profundamente impactada no seu bem-estar social, intelectual e mental.

Com isso, temos que o nosso mundo é complexo, incerto e frágil. A complexidade é demonstrada através das dificuldades perturbadoras escancaradas pela pandemia e suas consequências, ao mesmo tempo, momentos de crise são capazes de produzir um dinamismo e múltiplas possibilidades. É incerto por gerar muita apreensão, possibilitando também um grande potencial para mudanças. Sendo frágil por conta dos riscos para nossa humanidade compartilhada, que também pode ser perceptível na consciência de nossa interdependência.

E para reinventar a educação precisamos nos perguntar: o que devemos fazer? O que devemos parar de fazer? E o que deve ser reinventado criativamente? Frente ao desafiador cenário iluminado pelo documento, precisaremos que o futuro Ministério da Educação seja muito mais plural e atento aos desafios do nosso tempo.


domingo, 18 de dezembro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 13 - AS AVENTURAS DE PINÓQUIO (2022)

As Aventuras de Del Toro

Por Vagner Gomes de Souza

 

As Aventuras de Pinóquio foi escrito em capítulos na Itália a partir de 1881. Seu autor, Carlo Collodi, lançou o livro com ilustrações em 1883. Coincidentemente, esse é o ano de nascimento de Benito Mussolini numa localidade há quase 65 quilômetros de Florença (cidade de Collodi e também de Nicolau Maquiavel). Portanto, trata-se de uma obra de literatura infantil tardia do renascimento uma vez que o boneco é a melhor expressão do conceito de antropocentrismo. Além disso, há passagens do texto que sugerem um diálogo entre O Príncipe e Leviatã até chegar ao clímax do “peixe monstro” que engoliu Gepetto. No livro há muito a valorização da educação vide o esforço do marceneiro em vender seu casaco para comprar os livros escolares do boneco.

A unificação italiana (1848 – 1871) teve um possível balanço pelas linhas que se assemelham a uma história de terror. O clássico de animação da Walt Disney (1940) buscou introduzir o reformismo liberal do New Deal associado a cobrança de uma “ética na política” que seria o incomodo em relação as forças políticas do populismo norte-americano – a força simbólica do nariz a crescer a cada mentira do boneco. Os Estados Unidos ainda não estava na Segunda Guerra Mundial que mostrava o terror do fascismo na Europa. Então, o “Grilo Falante” e a “Fada Azul” dialogavam com a ética protestante de Max Weber para que o boneco se transformasse num ser humano correto e moldado para esse novo mundo.

Entretanto, As aventuras de Pinóquio sob a direção de Guilherme del Toro nos vem depois das idas de Joe Biden para o “picadeiro” do Circo mundial numa aterrorizante pré-estreia do que pode ser uma “Segunda Guerra Fria”. Há momentos que uma obra cinematográfica está muita empenhada a falar do momento político contemporâneo. A contribuição do diretor de O Labirinto do Fauno é muito importante para todas as gerações.  Ele transmite ao público esses sinais de alerta sobre os perigos que a rotinização da democracia. Não se podem trilhar os erros americanizados, pois um sardo, provavelmente lido pelo grilo Sebastian C., escreveu que em política gera o fascismo.


O perigo do fascismo contemporâneo, com suas novas roupagens na tecnologia das redes sociais, ainda precisa de estudos aprofundados. Todavia o gênero do “terror”, que muito atraem adolescentes e jovens, poderia ser mais uma oportunidade para que façamos uma unidade. Alfred Hitchcock e o “cancelado” Roman Polanski seriam “escolas” revisitadas pelo diretor/roteirista/produtor mexicano.

 Em sua obra há uma universalidade que ganhou o mundo talvez por ter vivenciado as mazelas do hegemonismo do Partido Revolucionário Institucional – PRI (1929 – 2000) no México. E, em 2001, lançou um filme de terror ambientado na Guerra Civil espanhola (A Espinha do Diabo) o que lhe permitiu ser um cineasta com grande percepção internacional. O Brasil e a questão amazônica estão presentes no premiadíssimo A Forma da Água (2017). O público brasileiro assistiu, mas não perceberam os alertas sobre o tema da ciência que nos atingiria anos depois. Um monstro amazônico que era tratado como folclore dos povos originários. Um outro ponto para nos permitir alcunhar Guilherme del Toro como o Mariátegui do cinema na atualidade.

Agora, em As Aventuras de Pinóquio de Guilherme del Toro é uma lição sobre a biologia do fascismo. O ressentimento com a I Guerra Mundial na perda de um filho e o fator religioso. Os espíritos da floresta ganham força contra as forças ocultas da morte. Um Grilo que deixa de ser falante para ser um intelectual que narra sobre o tempo. Gepetto demora a ver no boneco o seu filho, mas a fuga do interior do monstro marinho foi um ato de unidade. Antes, que os spoilers incomodem os leitores encerrará por aqui nossas conexões possíveis, mas convidando para que assistam ou revejam ao filme como uma importante oportunidade de uma transição com todas e todos.

 


terça-feira, 6 de dezembro de 2022

SÉRIE ESTUDOS - WANDINHA


Wandinha e os monstros contemporâneos

Em memória de José Mojica Marins – o “Zé do Caixão”

Por Pablo Spinelli

Vagner Gomes de Souza

 

O lançamento da série “Wandinha” para conquistar a adolescentes/jovens em diversos países nos chama a atenção diante da apatia da juventude inerte à expansão do populismo reacionário aqui e alhures. Em Stranger Things, outro sucesso mundial, o monstro do “reaganismo” se antecipa ao “trumpismo” e outros “ismos” (como o neoliberalismo) do negacionismo da vida em prol dos interesses do presentismo num aqui e agora. Os fãs de Stranger Things devem ter na memória a temporada que ocorre na semana anterior ao Dia das Bruxas e da reeleição de ator-cowboy Ronald Reagan. Suas consequências se desdobram em tons cizentos da “franquia” Star Wars, que, paradoxalmente, muitos se encantaram com Darth Vader ao longo dessas décadas, não com Yoda. Esse poderia ser o prenúncio do fascismo americanizado normalizado na sociedade diante do enfrentamento das Corporações (modelo institucionalizado por Mussolini) à ideia de República.

Os monstros, assim como no século XIX, nos permitem uma metáfora sobre a política contemporânea. Comecemos com Mary Shelley ao escrever seu “romance gótico” Frankenstein: ou O Moderno Prometeu (1818) para demonstrar como o universo de escritoras femininas dialoga muito bem com esse conflito entre Liberalismo e Democracia. Em seguida, Bram Stoker denunciaria o legado da “era dos impérios” da questão irlandesa pela via do romance Drácula (1897). Tanto as forças da “Restauração” quanto as mutilações do “Neocolonialismo” ou do Imperialismo, de Edward Said, seriam denunciadas nesses textos literários metaforicamente.

No cinema, Nosferatu (1922) inaugura essa sensibilidade em tempos de pandemia da Gripe Espanhola e no nascimento do fascismo. O debate imobiliário na Alemanha dos anos 20 pouco é mencionado pelos amantes do cinema, porém desdobraram-se inúmeras lideranças de massas diante do declínio dessas forças da tradição que “moderavam” a ascensão da igualdade. Os temas fascinantes das mudanças mobilizaram muitos jovens em inúmeros ativismos políticos e culturais diante de temáticas universais. A geração das vanguardas e suas filiações políticas se desdobraram nos anos 30 com a Segunda Guerra mundial marcando essa “era dos extremos”.

A série Wandinha é herdeira de toda essa geração. Sua cena de abertura na escola Nancy Reagan com as piranhas devoradoras do neoliberalismo dos anos Reagan é o cartão de visita para aquilo que a série se propõe. Esse spin-off da Família Addams, quadrinhos de Charles Addams, primo de uma das mais importantes líderes feministas das Américas, coloca a adolescente como protagonista numa roupagem de nossa época: individualista, narcisista, apática. Ao parar em uma escola que tem como patrono Edgar Allan Poe, o identitarismo dos ditos excluídos – todos ricos – fica explícito quando se explode uma estátua por uma visão particular sem estudo ou república.


A série tem a boa fortuna de ter um dos poucos diretores do cinema que conseguem ter uma marca própria nos seus filmes. Tim Burton – fã do brasileiro Zé do Caixão -, diretor de Edward Mãos de Tesoura, Batman, Marte Ataca, Os Fantasmas se divertem, dentre outros, é o diretor americano com maior influência do expressionismo alemão e suas histórias são marcadas pelo olhar crítico liberal ao republicanismo conservador e aos interesses do mercado privatista. Portanto, por mais que a Wandinha comece como uma idólatra do self ela só avança como uma Enola Holmes gótica com a ajuda dos outros. Ela aprende a se doar numa frente que reúne lobisomens, sereias, agentes do Estado, professora, mãozinha, família para evitar aquilo que temos nos dias de hoje: a destruição mutiladora da juventude.

Além de todo o acervo literário clássico – Shelley, Stoker, Poe, Conan Doyle – a série resgata os “monstros” da Universal – Lobisomen, Drácula – e o clássico moderno literato do mundo pop, Stephen King, cuja obra sempre foi pontuada contra o individualismo (Conte Comigo), o perigo do fascismo para os jovens (O Aprendiz), a perversidade juvenil (Carrie – que tem a famosa cena do banho de sangue no baile revisitada). A série sabe dosar o tom. Além de evidenciar os desvarios do fanatismo religioso também não poupa os discursos sectários identitários. Prefere, sem causar alarme, ocupar o primeiro lugar no Brasil com referências a um casal lésbico sem que haja abaixo-assinados virtuais. Tim Burton saiu da Disney e reencontrou o que há de melhor em si mesmo. Assim como a Wandinha, que ao se deparar com os monstros que cercam a juventude recorreu aos estudos e ao trabalho em equipe.


terça-feira, 15 de novembro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 12 - 30 Anos de “Drácula de Bram Stoker”


 30 Anos de “Drácula de Bram Stoker”

Por Nilvio Pessanha

 

Em 1897, Bram Stoker publicou “Drácula”, o seu romance de terror gótico que o fez conhecido e cultuado mundialmente. O livro foi o resultado de uma grande pesquisa do autor sobre o folclore europeu e ajudou a fortalecer e difundir a figura do vampiro até chegar ao que conhecemos hoje.

Em 1922, o diretor Friedrich Wilhelm Murnau adaptou o romance de Stoker para o cinema com “Nosferatu”, filme pertencente ao movimento expressionista alemão e que se tornou um marco para o gênero de horror. Como o cineasta não obteve os direitos para adaptar o livro buscou trocar os nomes dos personagens para evitar ser processado, o que acabou acontecendo e quase fez com que todas as cópias de “Nosferatu” fossem destruídas.

Coincidentemente, no mesmo ano em que o filme de Murnau foi celebrado por seu centenário, outra adaptação também completa uma efeméride: “Drácula de Bram Stoker” completou 30 anos de seu lançamento agora no dia 13 de novembro de 1992. O longa foi dirigido por Francis Ford Copolla e contou com um grande elenco com nomes como Gary Oldman, Keanu Reeves, Winona Ryder e Anthony Hopkins. Com um orçamento de pouco mais de 40 milhões de dólares e obteve uma bilheteria de cerca de U$ 215 milhões ao redor do mundo, a obra se tornou não só um sucesso de público e crítica, mas também uma das mais celebradas pelos fãs do universo vampiresco. A trama do filme se passa em 1897, mesmo ano da publicação da obra original, e traz o jovem advogado Jonathan Harker (Keanu Reeves) que tem de ir a trabalho até as distantes terras da Transilvânia, na Romênia. A viagem é nebulosa e cheia de percalços até chegar ao sombrio castelo do estranho Conde Drácula (Gary Oldman) que se revela como um vampiro e aprisiona o advogado. Após vê-la numa fotografia, Drácula parte para Londres atrás de Mina (Winona Rider), noiva de Jonathan Harker.


30 anos depois na Inglaterra



Muito do já mencionado culto ao filme se deve à ótima direção de Coppola que conseguiu fazer com que seu “Drácula de Bram Stoker” se tornasse um dos filmes que melhor traduz para as telas a atmosfera típica dos romances góticos dos séculos XVIII e XIX. O cineasta lança mão de uma fotografia que explora bem o uso de sombras e névoas, bem como toda uma cinematografia muito bem construída. Os efeitos especiais, em sua maioria, são truques de câmera e efeitos práticos. Outro elemento que chama muito a atenção na produção é o figurino, fruto da parceria entre o diretor e a designer gráfica Eiko Ishioka. O figurino é algo que salta aos olhos e ajuda a criar toda a atmosfera do filme com um toque bem autêntico. Podemos pegar como exemplo dessa autenticidade o visual assumido por Drácula. A primeira vez que vemos o personagem ele está usando uma espécie de quimono vermelho que mais dialogo com a cultura oriental chinesa do que com a Europa vitoriana. Despois o personagem assume uma faceta mais sensual para ir ao encontro de Mina.


Por falar no Conde da Transilvânia, a representação do mítico personagem por Gary Oldman foge das emblemáticas interpretações de Bela Lugosi e Crhistopher Lee dando um toque bem original. O Drácula de Oldman é, sem dúvida, um dos mais celebrados e considerado por muitos como o melhor do cinema moderno. Seu Drácula transita, com ajuda de um ótimo trabalho de maquiagem, de uma versão idosa, porém sombria e bizarra, para uma versão mais jovem e sedutora, com o ator esbanjando versatilidade.

Como se pode ver, motivos não faltam para se celebrar os 30 anos “Drácula de Bram Stoker” de Francis Ford Coppola. Celebrar três décadas dessa obra é também celebrar toda a cultura do vampirismo. É festejar um personagem tão emblemático que a arte, seja com a literatura, com o cinema ou o teatro, o tornou realmente imortal.


Nilvio Pessanha é professor da rede pública, membro dos podcasts Trincheiras da Esbórnia e Cine Trincheiras, e amante de cinema.