sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 14 - 50 ANOS DE O PODEROSO CHEFÃO


                                                              O Poderoso Chefão – 50 anos

Em memória da ibérica Nélida Piñon e de Pedro Paulo Rangel

Por Pablo Spinelli

Um dos conceitos basilares para a formação da humanidade é o da família. De antropólogos a arqueólogos, de historiadores a sociólogos, esse é um dos temas que perpassa a noção de clã, de formação do Estado, de alianças por posse de terras e águas em tempos primitivos. Falar a partir de um núcleo familiar em qualquer expressão das artes é passar uma mensagem universal, apontar virtudes e defeitos, projeções e frustrações em um imaginário coletivo familiar.

O Brasil é um país que desde a formação das Capitanias Hereditárias e pela tradição ibérica ao se misturar com a ameríndia teve a tônica do núcleo familiar. Uma dos grandes pensadores brasileiros, Oliveira Vianna, apontava os núcleos dispersos das famílias como um entrave para um modelo liberal para o país. Gilberto Freyre, na sua obra-prima muito criticada e pouco lida fala das acomodações familiares onde os escravizados acabaram por reproduzir aqui os núcleos familiares de molde do colonizador, como nos mostrou Robert Slenes, dentre vários. Para dois dos fundadores do PT, a família é uma herança do patrimonialismo ibérico dos Donos do Poder e que poderia ser uma raiz ruim dentro das Raízes do Brasil.

Ao contrário do que se pensa, o núcleo familiar não é originário do mundo ibérico, mas do mundo antigo, destacadamente, Roma. Portanto, na Itália, o conceito de família está presente e transborda para a cultura política do país – a nação como uma família, nos parâmetros fascistas, ou a família como núcleo de divergências, debates, conflitos, festas, alegrias dentro da tradição do cinema italiano que vai de A mão de Deus (2021) à Feios, Sujos e Malvados (1976). 


Coube a um descendente italiano lançar em dezembro de 1972 a maior obra do cinema sobre uma família. Francis Ford Coppola adaptou com o também ítalo-americano Mario Puzo, o livro The Godfather (uma mescla da família e religião), conhecido no Brasil pela hipérbole O Poderoso Chefão.

Há 50 anos, os EUA viviam um momento de ebulição com os escândalos – para nós, algo pueril – do Watergate que levou à renúncia do Presidente Richard Nixon, um dos pais da manipulação do que hoje se chama de fake news havia passado pela morte dos Kennedy (uma família muito sombria), de Luther King e Malcolm X. Os EUA viviam uma onda de pessimismo e ceticismo que o novo cinema americano abordou em formas cínicas, críticas e variadas. Coppola escolheu os Corleone como um símbolo de uma instituição que teria como concorrente à corrupção e violência o próprio Estado. O esquerdismo do diretor acabou por glamourizar a família principal com características que um reacionário adoraria: honra, tradição, hierarquia, patriarcado, lealdade. Os filmes posteriores ajustaram isso e fizeram dos Corleone a maior saga familiar desde Shakespeare.

Como qualquer escolha é de caráter subjetivo, entendo O Poderoso Chefão como o melhor filme do cinema jamais feito por conta da correção em todos os seus elementos: o elenco que vai desde o desacreditado Marlon Brando – que é o coadjuvante, mas sua estupenda atuação faz parecer o protagonista – aos já iniciados Robert Duvall e James Caan até aos “novatos” Al Pacino e Diane Keaton. A fotografia do mestre das sombras Gordon Willis, cenários de Dean Tavoularis, a trilha inesquecível de Nino Rota, parceiro de Fellini, as locações na Sicília (destaque para os cartazes do PCI nos muros por onde anda Michael Corleone), o roteiro que nos ensina que um filme lento é diferente de monótono e o seu final catártico, barroco, que tem muito a ensinar ao Tribunal da Virtude Linguística que nos domina: palavras não determinam ações.

Para um país que viveu por 4 anos sob o jugo de uma família farsesca de origem italiana, que tentou trazer para si o paradigma familiar a partir de valores ditos medievais mas que viveu sob a sombra do liberalismo – o pai é um divorciado e foi um amasiado -  e que agora pode viver novamente sob a sombra das famílias corporativas da representatividade identitária e do aparelhamento para os “bons companheiros”, um alerta do país ao governo que se organizar pela premissa de que “não é nada pessoal, são apenas negócios”: uma nova cabeça de cavalo ou de burro pode aparecer na cama. O Centrão pode passar o garrote.

4 comentários:

José Bezerra de Oliveira disse...

Bolsoleone?

Anônimo disse...

Análise magnífica.

dinah disse...

Sensacional

Leonardo Gomes disse...

Bela comparação! A familícia não tem honra, essa é a grande diferença. Parabéns!