sábado, 30 de abril de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 10 - MEDIDA PROVISÓRIA

Ensaio sobre a Melanina

Para o amigo José Manuel Blanco que tem um pouco de Santiago Blanco.

Por Vagner Gomes de Souza

Nesse ano de 2022 celebramos o centenário de nascimento do escritor português José Saramago. Esse foi um escritor que colocou a literatura de seu país num contexto de universalização uma vez que nele observamos a compreensão da contribuição dos mouros na formação desse complexo mundo ibérico como se observaria na leitura atenta de História do Cerco de Lisboa.

Foi Saramago que imaginou uma diáspora ibérica em seu realístico e imaginária livro A Jangada de Pedra. Nessa obra se observa que se distanciar do iberismo tem suas consequências sociais. Além disso, entre tantas obras instigantes, o escritor português nos brindou com o livro Ensaio sobre a Cegueira, que se trata de uma distopia muito necessária para a leitura nos dias atuais. Nesse livro há uma pandemia que causa a cegueira de todos ao redor o leva a inúmeras reflexões sobre a solidariedade e a postura do ser humano quando se vê nos limites de seu estado de natureza. Nessa obra a mulher é a heroína e ponto de equilíbrio contra as possíveis radicalizações.

Seria diante dessas lembranças que o filme “Medida Provisória” nos permitem entender a ameaça a democracia que está a rondar a sociedade brasileira. A reparação social pelos séculos de escravidão seria feita pela deportação dos detentores de “melanina acentuada” para a África. Uma lembrança curiosa de como a via americana concebeu a fundação da Libéria desde a chegada dos primeiros escravos libertos norte-americanos há cerca de 200 anos.

O filme está com uma recepção positiva de muitos articulistas, pois não podemos nos deixar contaminar pelas cegueiras da radicalização. Nas palavras do cineasta e acadêmico Cacá Diegues, o filme “Medida provisória” de Lázaro Ramos pode se inscrever como um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos[1]. Essa foi sua primeira impressão ao assistir ao filme que está nas salas de cinema com um sucesso muito atribuído a propaganda do “boca a boca” de um filme que faz um original roteiro a partir da inspiração da peça “Namíbia, não” de Aldri Anunciação[2].


O filme demonstra que Lázaro Ramos desponta como um cineasta que se destaca na direção da atuação dos atores. Seu Jorge, no personagem André (seria uma referência ao André Rebouças), está muito bem distante da atuação caricata de Marighella uma vez que a dramaticidade do filme estaria muito bem suavizada por alguns momentos de humor. Aliás, André é o típico personagem macunaímico em seu ativismo político na defesa dos cidadãos de “melanina acentuada”. Faz uso do BLOG AFIRMAÇÃO para sobreviver diante da crise da imprensa.

De volta aos comentários sobre “Medida Provisória”, Cacá Diegues reapresenta o programa do Cinema Novo e demonstra o quanto o filme estaria presente nesse contexto de reinvenção da cinematografia como se fosse o impacto de Levantado do Chão no conjunto da obra de Saramago[3]. A atenção de Diegues, que dirigiu Bye Bye Brasil, se faz num esforço de compreender a cultura como um terreno aberto a afirmação da unidade sem sectarismo. O ilustre imortal rememora as palavras de Mano Brown no comício de Fernando Haddad em 2018 que merece uma total citação com nossos grifos: “O que mata a gente é o fanatismo e a cegueira. Deixou de entender o que o povão quer e diz, já era”.

Então, o filme serve também como um alerta para aqueles que consideram que passaremos por uma campanha eleitoral sem “solavancos”. E mais importante ainda, seria reconhecer que há uma ameaça de não reconhecimento dos resultados das urnas. Por isso, não podemos agir com os nossos adversários enraizados na história do autoritarismo brasileiro reproduzindo seus gestos e discursos como se estivéssemos num espelho. Eis que Tais Araújo deixa isso muito bem claro na sua fala no AfroBunker uma vez que temos a personagem Capitu que reinventa o sentido da paixão como gesto heroico de ir ao encontro de Antonio Gama que está na interpretação de Alfred Enoch (que assim como Machado de Assis, já foi um Bruxo só que na cinematografia). Essa é a inspiração diversificadora da cultura heroica que nos deixa como inspiração o filme de Lázaro para que a República e Democracia não vá para a tumba. 



[1] Diegues, Cacá – “As suçuaranas da cultura”. O Globo. 17 de abril de 2022. Disponível nesse link https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/04/caca-diegues-as-sucuaranas-da-cultura.html

[2] O texto da peça foi acolhido na Alemanha em 2014 a partir da tradução do prof. Dr. Henry Thorau que seria uma espécie de Dr. King Schultz do filme Django Livre.

[3] Em “A Cultura das Suçuaranas”, Cacá Diegues aprofunda seus comentários sobre o filme “Medida Provisória”. O artigo é de 23 de abril de 2022 e se encontra em O Globo.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 23 - DESAFIOS PROGRAMÁTICOS (ELEIÇÕES 2022)


Sem terra prometida

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Às vésperas de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, Fernanda Montenegro ofereceu uma longa entrevista à Revista Ela. Num dado momento a entrevistadora pergunta: segundo Míriam Leitão, “Vivemos uma tragédia grega. Seis milhões de pessoas mortas no mundo por uma doença da qual o presidente do Brasil debochou. Vemos um ditador matando um povo diante de nossos olhos, E a cultura sendo tratada como se fosse coisa de marginais. É hora de ouvir dona Fernanda”.

Não é possível descrever como ela respondeu, mas está escrito que: Quando a Segunda Guerra acabou, eu tinha 15 anos. Veio a esperança da construtividade. Hoje, vejo que era um arrebatamento romântico. Mas chegamos a isso... Então, hoje a esperança, mais do que nunca, tem que ser ativa. Estamos com esse trágico governo, um presidente que faz como símbolo da sua atividade presidencial uma mão (faz o gesto de Jair Bolsonaro) que é uma arma ou o sexo de um homem. É um emblema sórdido. Agora, esse homem só está no poder porque todos os governos que o precederam, embora mais simpáticos, mais democratas, não fizeram o suficiente. Dou como exemplo as favelas. É uma herança. Por que não tiraram esse homem do poder? A carência social não deveria estar tão potente.

Este ano e os próximos e muito além, o principal desafio será gerir a pandemia de Covid-19 e as suas consequências. Para isso seria preciso responder dona Fernanda dizendo o que é suficiente e de como sair da crise, enfrentar o aumento do desemprego, as falências, como promover a recuperação económica e gerir a dívida privada e pública: estas questões serão manchetes e estarão no fulcro das questões políticas.

Apesar de toda a importância destes desafios dramatizados no curto prazo, as dificuldades que antecedem a Covid-19 continuam e muitas vezes até foram agravadas pela pandemia. É por isso que, quanto antes nos debruçarmos e analisarmos essas questões que são grandes desafios a serem enfrentados, entre tantos outros.

Responder aos desafios globais enfrentados por nossas sociedades exige novas abordagens analíticas e o surgimento de novas ideias, especialmente após a crise global da saúde.

Como são muitos os desafios, pensemos de saída em três de grande impacto: mudança demográfica e climática e desigualdade econômica. No quesito das mudanças climáticas não resta dúvida que é hora de agir. O trabalho do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) destacou o papel das nossas atividades nas mudanças climáticas e a importância de agir agora para limitar o aumento das temperaturas a pelo menos 2 graus Celsius em comparação com a era pré-industrial (antes da segunda metade do século XVIII). Com este objetivo em mente, e após a assinatura do Acordo de Paris em 2015 e a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP 26), é preciso que o Brasil estabeleça o objetivo de ser neutra em carbono até 2050. Se nos comprometermos hoje com essa política e estabelecer metas claras e credíveis, o Brasil pode vir a recuperar seu papel de liderança na ação climática internacional. Para tanto se faz necessário apresentar uma estrutura analítica e propostas para acelerar o alcance desse objetivo.

A desigualdade e insegurança econômica impõem medidas para uma economia inclusiva. Proteção social, redistribuição fiscal e social justa e eficiente. Mesmo que o Brasil esteja em uma posição melhor do que a maioria dos outros países da América Latina, para garantir que a economia beneficie o maior número possível de pessoas e seja distribuído de forma justa, o Brasil deve atuar em várias frentes e em diferentes estágios da vida das pessoas.

Por fim, enfrentar a mudança demográfica urge: envelhecimento, seguridade, saúde e imigração. Envelhecer implica encontrar um equilíbrio justo e eficiente entre os períodos de emprego (coisa que não está no horizonte) e de aposentadoria. Para isso, é necessário dotar de modernidade o sistema previdenciário, mas também apoiar os idosos nas suas atividades. Isso inclui o fortalecimento da formação profissional e a prevenção e tratamento de doenças crônicas. Para se fizer tudo isso, precisamos examinar os fatos e o seu tamanho antes de elaborar uma série de recomendações concretas.

Tudo isso e muito mais é um nó de marinheiro tanto em política como em economia e não só. 2022 deve ser a hora de se discutir como desatá-lo. Teremos que nos arriscar nessa tarefa, para ver como conseguimos afrouxar o aperto excruciante que ele exerce e, quiçá, sem esquecer o risco de deixá-lo ainda mais ajustado.

 

15 de abril de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 22 - ELEIÇÕES NA EUROPA

Dom Casmurro e os Ecos das Eleições Francesas

Por Vagner Gomes de Souza

 

Poucos romances de Machado de Assis receberam tamanhas análises quanto Dom Casmurro e o tema do ciúme num universo de ascensão do que o historiador Eric Hobsbawm chamou de A Era do Capital. O Brasil em seus primeiros anos de consolidação do Segundo Reinado sob a narração de uma personagem que aos poucos deixou de ser um “Bentinho” para adquirir a alcunha que dá título à obra. Como os políticos que se envelhecem em décadas de democratização e ficam em busca de um eixo político ao Centro.

Provavelmente poucos ousariam a perceber  nessa perspectiva  a mudança do personagem como a também a transformação do papel do indivíduo na História. Simplesmente porque as análises de conjuntura política eleitoral se acumulam das tabelas de pesquisas de opinião e suas inúmeras segmentações. Entretanto, ainda poderíamos seguir a “velha cartilha” de tentar fazer uma análise a partir da conjuntura internacional diante dos impactos das transformações do capitalismo num momento de necessário debate sobre a questão da energia.

Há referências sobre essa questão de tamanha magnitude nas memórias de pouco lido e compreendido livro A Terra Prometida de Barack Obama em relação as tratativas sobre os acordos do Clima com os países do BRICS. O não tratamento desse tema de forma programática se expõe tanto nas interpretações anacrônicas sobra o imperialismo como fase superior e derradeira da globalização diante da Guerra da Ucrânia.

As sandices seriam poucas se estivessem limitadas apenas ao nosso país com esse vazio de debate programático sobre o papel da PETROBRÁS nesses tempos de crise energética. A oposição fica a tudo olhar bestializada com um pires na mão, porém a situação é muito mais ampla conforme nos sugerem as eleições europeias recentes. Se deixar tudo sem uma opinião, uma surpresa desagradável poderá ocorrer onde muitos do campo democrático pouco estão a observar que seria a ocupação de políticos reacionários no Senado da República (que tem prerrogativas que podem limitar muitas indicações do futuro Executivo).

Enquanto Volodymyr Zelensky vive tempos de “popstar” com discursos no Grammy e legislativos europeus alinhados ao “ocidentalismo”, o mundo real expõe como a União Europeia se deixou cair na ilusão de se transformar numa Casa Verde com lideranças políticas a ouvir um Simão Bacamarte de tamanha complexidade. Então, as eleições na Sérvia e  Hungria reacendem mais uma vez a premissa que o conservadorismo sempre ganha terreno em momentos de medo e incertezas. Essa é a sombra das chamas de Kiev nas cabeças dos eleitores que precisam de Gás para sobreviver. Tanto Aleksandar Vucic (Sérvia)[1] quanto Viktor Órban (Hungria) tiveram vitórias consagradoras na faixa de 60% dos votos conquistando um Parlamento dócil para suas medidas iliberais.


Então, as eleições presidenciais na França no próximo domingo (primeiro turno) já ganharam uma nova dimensão diante do posicionamento de Emmanuel Macron sobre a crise ambiental e o debate energético na Europa em tempos dessa desumana Guerra. Mais uma vez, se desenha uma polarização entre as forças do “Centro” político e a direitista Marine Le Pen que defende um lugar de fala para os franceses como crítica a União Europeia. Aos poucos, a candidatura do Reagrupamento Nacional ameaça até a vencer no Primeiro Turno, algo que não se imaginava há 30 dias, o que demonstra que nenhuma eleição é vencida por desejos nas redes sociais e que sirva de alerta para os ativistas brasileiros.

Entretanto, a grande pergunta é a ausência de uma Unidade Democrática que seja construída pela Esquerda francesa uma vez que Jean-Luc Mélenchon (Ex-Partido Socialista) aparentemente lembra sempre a traição dos Socialistas ao seu eleitorado. Sufragado pelos eleitores ressentidos, o candidato da França Insubmissa está sempre a denunciar que há um sistema traiçoeiro na União Europeia como se fosse a “Capitu”, mas nunca se abre a possibilidade de pontes programáticas que redimam essa imagem ciumenta. Uma candidatura que sempre atrapalhou uma necessária terceira via francesa, pois as “máquinas partidárias” sempre emperram diante os ecos da realidade.


[1] Ainda estamos no aguardo do resultado oficial em relação ao novo desenho do Legislativo da Sérvia, mas os primeiros números sugerem que os “Verdes” teriam assentos nele após meses de protestos ambientais sobre a exploração de Lítio.

terça-feira, 5 de abril de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 21 - DE VOLTA AO CHILE


 Gabriel Boric em sua Posse não contestada

Para onde podemos ir?

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


Na disputa pela escolha da maior barbárie cometida pelo atual governo brasileiro, não nos faltam opções. Claro, entre elas incluem o cancelamento das conquistas ambientais, a decisão de não investigar nenhum alto funcionário importante desse mandato durante os 4 anos e quiçá por décadas, nomear um elenco de grandes incompetentes para as pastas, desistir de fazer a reforma tributária e fiscal, entre tantos outros. Mas prefiro olhar este último assunto, especialmente à luz das primeiras ações do novo governo de Gabriel Boric no Chile.

É sabido que uma das decisões mais difíceis de um novo governo de dias é anunciar que aumentará impostos. Se deixarmos de lado os clássicos eufemismos do liberalismo econômico, não há reforma fiscal e tributária que não aumente a carga tributária de alguém: os ricos, os consumidores, a economia formal, as grandes empresas. Por isso, a maioria dos governos que buscam realizar reformas sociais profundas tenta obter financiamento para elas desde o início de sua gestão, sabendo que a janela para uma reforma desse naipe é pequena e efêmera.

Collor foi repreendido — e com toda a razão — por ter feito um sequestro bancário no primeiro dia de seu mandato (que acabaria incompleto) sem nenhuma negociação e que sequer apresentou um projeto de reforma fiscal e tributária.

Governos como os de Joe Biden, Álvaro Uribe, François Mitterrand (1916-1996) e Patricio Alwyn (1918-2016) tentaram aumentar impostos – com maior ou menor sucesso – nos primeiros meses no poder. A razão é óbvia. Não há reforma mais impopular e custosa em termos de capital político do que a tributária e fiscal; e geralmente não há momento de maior popularidade e capital político de um presidente do que no início de seu mandato.

Boric entende isso, entre outras razões, porque seus primeiros discursos como presidente mostram que ele frequentemente conversa com o ex-presidente chileno Ricardo Lagos – por exemplo, sobre a necessidade de diplomacia nas relações externas ibero-americanas para que ele possa falar a uma só voz e duradoura. O primeiro item programático de campanha com o qual trabalha (pretende apresentar essa reforma ao Congresso até junho) é aumentar a carga tributária chilena em cinco pontos do produto interno bruto (PIB) ao longo de seu mandato de quatro anos, com uma justificativa simples.

Ricardo Lagos presente a posse de Boric

Não há como atender às demandas e/ou reivindicações sociais do chamado “estalido” de outubro de 2019 sem aumentar os gastos públicos. E é impossível atingir estes objetivos sem aumentar a porcentagem do PIB que o Chile arrecada (20% por enquanto) em uma proporção significativa, a menos que se acredite em estórias absurdas como a do tesouro português da Derrama (1763-1764) baseada no dito combate à corrupção da Colônia em desfavor da Metrópole.

Boric cumprirá sua promessa ou não. Mas pelo menos ele está disposto a tentar. E os nossos, até aqui ninguém diz nada e nem se pensa nisso. Ao renunciar a uma reforma fiscal e tributária o atual o governo, parece esperar uma hipotética — e incerta — vitória nas eleições desse ano, satisfeito com seus vouchers compradores de votos e sempre convicto a não realizar nenhuma reforma social importante e duradoura.

Diferenças a parte do mandato brasileiro ao de Boric ainda que aparentemente semelhantes na ausência de maiorias parlamentares de partida com as quais todos os governantes costumam sonhar, o nosso sempre faltou inteligência e sabedoria no Ministério. Ao contrário, o economicismo primário et caterva preferiu manter a pressão fiscal e tributária no mesmo nível de antes (com pequenas variações devido aos esforços do Banco Central), condenando à impossibilidade de qualquer aumento significativo dos gastos sociais (o mais baixo em vista ao tão desejado assento na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE em relação ao PIB). Só poderia – e poderá – reorganizar os gastos: cortando da educação, saúde e habitação para aumentar – mal – a entrega do Auxílio Brasil a idosos, desempregados, estudantes, deficientes e a população em geral largada à própria sorte. Insistamos: Auxílio Brasil e só isso, cortando todo o resto.

Obviamente não houve reforma fiscal e tributária durante este governo, nem haverá. Não há governo democrático no mundo que se preze que não tente, inclusive por conta da pandemia e suas consequências que somado ao cenário tenebroso ex-ante alguma reforma fiscal e tributária, uma vez que só tornou esse assunto urgente urgentíssimo. Aqui está o pior pecado do que aí se encontra: nem mesmo tê-lo proposto, ao contrário de Boric. Um mandato de lastimas sem fim! Mas a cada circunstância eleitoral colhe o que vota. Teremos a chance de corrigir o nosso rumo. Mas para isso precisamos vencer o anacronismo e a ignorância; o Brasil pode e deve ser ousado e globalizado, como Boric está mostrando.

 

3 de abril de 2022




[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


segunda-feira, 28 de março de 2022

SÉRIE ESTUDOS - A peça O Alienista da Cia de Teatro EPIGENIA


A Dialética e a peça “O Alienista”

Por Vagner Gomes de Souza

 

“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários.”

Heráclito

 

Livremente inspirado na obra de Machado de Assis, a peça “O Alienista” está nos palcos do Rio de Janeiro até 10 de abril[1]. A Companhia de Teatro EPIGENIA transformou o texto pelas mãos de Celso Taddei e Gustavo Passo (Diretor da Peça) muito além de uma simples proposta de modernização da linguagem do conto machadiano para esses dias de pandemia e outras loucuras. Assim como, o HQ Batman Noel refundou o conto Um Conto de Natal do escritor Charles Dickens. Portanto, vá ao Teatro aberto para perceber que a essência das ideias pode persistir e mudar muitas coisas da realidade numa perspectiva sugerida por Heráclito já na Grécia antiga.

O mundo nos expõe a cada dia uma diversidade de posturas de ampla insanidade e, muitas vezes, nos questionamos como diversas pessoas se permitem a acompanhar essas ideias? Na peça, a ganância e a manipulação da fé até numa crença de um “cientificismo oxidoduoquadrosistêmico” expõe o quanto o mundo político estaria aprisionado num contexto de insanidade em reflexo a um possível estágio de anomia da sociedade. As “bancadas da Bíblia” se reúnem para votar verbas públicas num legislativo em “troca de favores”. A livre inspiração da peça se antecipou as recentes denúncias de possíveis “tráfico de influência” no Ministério da Educação que, junto com a Cultura, é um dos segmentos que mais regrediu a atual gestão do Governo Federal.

 

A regressão se faz presente no desenvolvimento da peça, pois Itaguaí de Metrópole vai caindo até a condição de simples vilarejo. E, aos poucos, Simão Bacamarte vai assumindo uma postura centralizadora e autoritária uma vez que suas iniciativas eram respaldadas por um meio político semelhante ao “Centrão”. Rupturas se observam ao longo da peça, mas perceberemos a mensagem que não se pode deixar a “Caixa de Pandora” do autoritarismo aberta em tempos de ressentimentos sociais.

Os desrespeitos a Ciência como método de reflexão e desenvolvimento da crítica associados aos regressos em tantos setores sociais exigem que a plateia busque mudar. E passa tudo por começar a desenvolver uma postura mais incisiva na formação de um debate por um programa que valorize a República e a Democracia. Por exemplo, quais seriam os critérios que justificariam a volta de um Ministério da Cultura em nosso país? Precisamos ter essa resposta na ponta da língua com argumentos que demonstrem possibilidades de realizações culturais que gerem emprego e inserção da juventude (ainda ausente do debate político pré-eleitoral) em atividades que valorizem a leitura e a interpretação.

Todo tipo de fundamentalismo se aproxima da loucura. A peça coloca esse ponto de forma tênue apesar de ampliar a temática também para a questão feminina. Alguma coisa se sugere que Dom Casmurro seria uma possível continuação nessa saga machadiana da Epigenia. Lembremos que Machado de Assis fez sucesso recentemente nos EUA com a reedição de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Entretanto, a essência da ironia da política dos textos de do “Bruxo de Cosme Velho” não pode se perder em fraturas da sociedade.



[1] A peça está na Grande Sala da Cidade das Artes. Texto: Celso Taddei e Gustavo Paso. Direção e Cenário: Gustavo Paso. Dias 16 e 17 de abril estará no SESC PALLADIUM em Belo Horizonte.

segunda-feira, 21 de março de 2022

OSCAR 2022 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR PABLO SPINELLI

Apesar da Crise, falemos do Oscar


Somos aqueles que  estamos na "resistência" da República e da Democracia, mas encontramos oportunidade de refletir na produção cinematográfica um momento de observar sobre esses tempos sombrios. Aliás, esse é um segmento cultural que está numa transição em que a "privatização" da criatividade poderá atomizar ainda mais nossa sociedade. Aprofundando os efeitos nefastos a crise.

Não podemos deixar de lado a "opinião". E VOTO POSITIVO, mais uma vez, publica uma entrevista com o Professor Pablo Spinelli que faz do cinema uma avenida de oportunidades para muitos jovens que saem do senso comum para melhor compreender os impactos da Globalização. 

Seu profissionalismo conjugado ao seu conhecimento apaixonado pela "sétima arte" nos faz agradecer esse entrevista e que outras venham na história do Oscar. Uma entrevista que merecerá ser lida e divulgada.

DA REDAÇÃO

Nota: alguns filmes citados na entrevista abaixo receberam análises em VOTO POSITIVO em "A Doce Política no Cinema" números 1, 3 e 5. 


Foto: Claus Lehmann

1) As indicações do Oscar 2022 promete ser um “Balanço” da gestão Joe Biden feita por Hollywood ou estaríamos exagerando?

Acho um pouco exagerado, porque a Academia deve ter pensado mais no balanço da gestão Trump e como os EUA chegaram até o cenário de ter um líder político que testou as instituições democráticas até o limite e com forte adesão das massas. Biden deve aparecer mais ano que vem, em um cenário de filmes que devem falar da questão econômica, pandêmica e do desastre que está sendo a sua política no leste europeu. Os filmes desse ano têm um alento: estão menos preocupados com guetos identitários e um pouco mais universais, mesmo que fale mais para uma geração de 40 anos para cima do que para os jovens, cujo prêmio não tem representatividade como teve há 15, 20 anos.

 

2) Em sua opinião, as indicações do Oscar de 2022 ajudariam a sociedade brasileira a uma melhor reflexão sobre o tema da República e da Democracia?

Sim, sem dúvida. Um filme como Belfast é um exemplo de como podemos tratar do tema da inclusão social pós-pandemia, o mesmo se dá com o musical repaginado do Spielberg. Cumpre notar que há uma netflixação no Oscar com as indicações de “Não olhe para cima” e “O ataque dos cães”, ambos da Netflix e o “Rocky Balboa” da vez, “King Richard”, da Amazon Prime. Isso significa que a própria academia se rendeu à privatização do gosto pelo cinema. Isso é ruim para qualquer República. Cada vez menos teremos telões nas praias ou na Quinta da Boa Vista para dar lugar ao gosto doméstico de uma tela de telefone. Esse tema, não parece, mas é um tema para a República. Que acesso à cultura nós teremos e daremos? E a indústria do cinema vai empregar como antes? Em uma gestão orientada por um grupo de vendilhões da falsa moral e de interesses particulares representado por  um Mário Frias – como chegamos a isso? – não podemos pensar em “Retomada”. O nó dos filmes indicados ainda é o mesmo do Oscar: como chegar aos mais jovens? Um filme como Duna, por exemplo? Minha sugestão é que os mais velhos que leiam essa entrevista tomem para si essa tarefa pedagógica.

 

3) Vejamos as principais indicações para a categoria “Melhor Atriz”, qual seria sua análise?

Seria muito bom ver a Nicole Kidman ganhar um Oscar pela personagem da Lucille Ball, uma atriz que conseguiu fazer uma sitcom de maior audiência das Américas. Penelope Cruz está marcante no papel que Almodóvar lhe deu, mostrando maturidade. Olivia Colman já ganhou pelo ruim “A favorita” e é uma forte candidata para esse drama sobre o tema da maternidade em “A filha perdida”, uma abordagem mais para a classe média do que para as subalternas. Kristen Stewart mostra que a dupla de Crepúsculo cresceu bem e é a favorita dos jovens na enésima interpretação sobre a superestimada Lady Diana. Agora, seria muito bom a Jessica Chastain ganhar por “Os olhos de Tammy Faye” por conta do televangelismo americano dos anos 1970 e 1980 que aqui nos chegou de forma cabocla nos anos 1990. A ascensão e queda da personagem merece uma reflexão sem julgamentos a quem crê, mas a quem lucra com a fé alheia, tema que os argentinos fizeram bem na série “El reino”, da Netflix. Colman tem vantagem na disputa. Chastain segue atrás.

4) Esse ano Will Smith, na categoria de “Melhor Ator”, vai se sagrar vencedor?

Espero que não. Além de ser um ator mediano, ele fez Bad Boys, uma alegoria do que havia de pior da Era Bush II. Ele já tentou personificar o declínio do “sonho americano” em “A procura da felicidade” e agora a crença no mérito individual no filme “King Richard”. Como disse acima, é o Balboa repaginado. Lembro que Rocky antecedeu a Era Reagan. Denzel Washington deveria ter sido incensado pelo movimento neonegro por conta da interpretação de Macbeth, uma ousadia sair do óbvio Othello. Javier Bardem está muito bem no filme da Nicole Kidman, será uma lembrança no futuro, marido e mulher indicados. Andrew Garfield é uma promessa. Mas meu favorito é Benedict Cumberbatch, o melhor ator de sua geração, um inglês que faz qualquer papel, inclusive, a meu ver, o melhor intérprete da galeria Marvel. Ele explica o trumpismo e o bolsonarismo, o ressentimento, a inveja, o rancor, um personagem memorável para um Western de novo tipo.


5) Poucos analisam a categoria “Roteiro Original”, em sua opinião o que há de novidade nesse ano?

Antes de comentar queria destacar a excelente escolha de “filme estrangeiro”. Destaco o simpaticíssimo “A mão de Deus”. Para quem gosta de futebol ou foi jovem, é obrigatório. A novidade que não é nova é “Não olhe para cima” ganhar. O diretor-roteirista Adam Mckay apostou no tema ambiental e acabou por acertar quanto à pandemia. É um filme de esquete, com uma boa ideia, especialmente ao usar Meryl Streep para nos dizer com as cores da sua roupa que não há mais uma linha nítida entre Republicanos e Democratas. Gostaria que Belfast ganhasse, mas acho que não será. Importante o Kenneth Brannagh ser reconhecido.

6) Steven Spielberg foi ousado na Direção de um musical sobre uma Reforma Urbana “Trumpista” – “West Side Story”. Não poderá ser uma surpresa na premiação de “Melhor Filme” e “Melhor Direção”? Qual sua avaliação sobre essas duas categorias?

Poderá, mas não será. A sua indicação é uma forma de Hollywood olhar para a idosa “Nova Hollywood” (Francis Coppola, Martin Scorsese, o cancelado Woody Allen, dentre outros) e dizer: sabemos que vocês estão aí e somos gratos. Ele seria mais forte nos anos finais de Trump em virtude do tema do muro. Isso garantiu o Oscar ao excelente “A forma da água” e aos latino-americanos oscarizados que sumiram esse ano. Curioso, não? Acho que repetirá o ano passado e mais uma mulher vencerá. A muito competente Jane Campion.

 

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 20 - ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS 2022


Bolsonaro pode ganhar sim. De novo.

 

Marcio Junior[1]

 

        

Em ano de bicentenário, se aproxima mais uma eleição presidencial. Como certa vez escreveu Luiz Werneck Vianna: mais do que uma escolha por um determinado candidato, seu partido e programa (aqui podemos e devemos não ser generosos: onde estão os programas, do ponto de vista objetivo? Temos?), significa, entre nós, uma escolha de futuro, de qual caminho queremos seguir.

Estamos, decerto, de frente a um cenário de terra arrasada já a alguns anos, o qual o atual governo não apenas contribuiu para aprofundar como se aproveitou dele anteriormente para ser eleito e governar. As transformações do capitalismo brasileiro, tendo o Estado como centro de inteligência e orientação para a expansão de uma ordem grão-burguesa, construída ao longo de décadas e que possibilita novas formas que aprofundam a concentração da acumulação de capital, minaram a política enquanto prática virtuosa de disputa republicana e democrática, que atingiu seu auge na Assembleia Constituinte em 1987/88. Essa associação entre Estado e mercado forneceu à sociedade, esta já sem luz própria, desorganizada e ressentida pela violência e pelo bolso vazio.

O "eu" do mercado, do ser que busca competir em nome dos próprios interesses e satisfações individuais, se tornou dirigente, e nas relações dele com outros sujeitos não há ou é muito restrito o espaço para a solidariedade, sendo este um fenômeno, decerto, global. Aqui, a mercantilização da vida social, algo visível  sobretudo nos coletivos e na educação (como, por exemplo, na criação de cursos de educação financeira e empreendedorismo nas escolas, equívocos que passam, inclusive, pela compreensão falha de como funciona o próprio mercado), está pulsante, tendo como suposto programa o estímulo equivocado à afirmação individual, sua identidade e busca pela saúde mental e financeira enquanto soluções suficientes para o enfrentamento e solução dos problemas históricos e sociais. O aporte emocional para o enfrentamento das mazelas da desigualdade do país viria tão somente do particular de cada um, levando as pessoas a procurarem aporte emocional em atividades que remontam ao seu interior particular, lotando igrejas neopentecostais, salas de espera para sessões de psicoterapia e não só.

Em meio a essa conjuntura de desequilíbrio de antagonismos, que ainda está a nos sufocar e já é propícia à fragmentação, as redes sociais repetem 2018 e se tornaram arena de embates, seja entre jovens ou mais velhos. Assim, o então candidato Bolsonaro, inteligentemente, percebeu a oportunidade de capturar ali os votos que o elegeram e conduziram ao centro da máquina administrativa o que há de mais atrasado entre nós. A lógica do "eu" sobre o "nós" encontra, deste modo, a sua tradução política no ideário de Paulo Guedes e não só, atuando em favor de um capitalismo sem freios, sob o “programa” de diminuição do público e tensionando com os elementos igualitários presentes na Carta de 88.

Esta problemática perceptivelmente ainda está entre nós, e há o desafio de atacar nossos problemas para que se possa direcioná-la para um caminho virtuoso, que compreenda as mudanças sociais irreversíveis que ocorrem diante dos nossos olhos. Não há como dar conta de tal tarefa sem, sobretudo, perícia política, algo difícil de ser feito em meio à “ditadura velada” das identidades, que nos sufoca e insiste em separar. O “eu” pode ser trabalhado de forma mais virtuosa e não excludente ao social, como no chaveamento teórico de um Norbert Elias em seu A Sociedade dos Indivíduos (Zahar, 1994).

Em entrevista a William Waack, realizada em 1997, o historiador Eric Hobsbawm foi perguntado por este jornalista sobre a história e o futuro, afinal, o futuro também pode ser história. O historiador, já idoso, se ajeitou em sua poltrona e chamou atenção para uma linearidade entre o passado, o presente e o futuro; quais as chances de algo que aconteceu ao longo do tempo e acontece hoje continuar acontecendo? Ou, fazendo uso do conceito da matemática, mais certeiro: qual a probabilidade? Esta, creio eu, é uma pergunta que precisa ser feita (e bem feita) por todos para se enfrentar o processo eleitoral decisivo que já acontece diante dos nossos olhos. Neste trabalho de imenso esforço há coisas que não se pode saber; porém, há outras que sim. Mesmo assim, a provocação cabível nesses tempos fraturados, que seguem seu curso, está na frase dita pelo célebre historiador: a única corrida de cavalos previsível é a que já acabou. O que podemos aprender sobre isso a partir de 2018 está aí: separar, em termos de sabotar propositalmente ou não os laços entre as pessoas, já nos levou e pode levar de novo a uma escolha funesta de futuro. Vamos em frente.




-       [1]Historiador e doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ.

segunda-feira, 7 de março de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 19 - SAÚDE EM DEBATE


Open Health - há quem compre essa ideia?

 

Tiago Martins Simões[1]

Desde janeiro de 2022 o Ministro da saúde, Marcelo Queiroga, vem defendendo o “Open Health” para o sistema de saúde suplementar brasileiro. Em artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 5 de março deste ano, detalha um pouco mais do seu projeto, expondo nele o ideário de Paulo Guedes: mais mercado, menos Estado, menos público. Nada se discute, por exemplo, sobre a regulamentação da saúde suplementar, cujos problemas foram precisamente colocados por Maria Lucia Werneck Vianna em seu A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil de 1998. Este livro está de pé, basta ver os inúmeros problemas envolvendo os planos de saúde na pandemia e anteriormente - bem como o atualíssimo processo de venda da operadora Amil, sendo um dos seus mais recentes capítulos.

É curioso tudo isso. Guedes se gaba por sua formação econômica nos Estados Unidos da América (EUA), mas a rota que ele cria junto ao Ministro Queiroga, ao traçar um paralelo de política bancária (a sempre recordada criticamente pelo Paulo Freire) com política sanitária, sequer encontra respaldo naquele país. Se a hipótese de que o artigo foi pensado por Guedes não é verdadeira, o problema continua o mesmo, tendo em vista a recente missão do ministro da saúde aos EUA. Ninguém pode alegar falta de conhecimento.

Com esse incrível projeto pensado (será?) por essa qualificada equipe, a saúde suplementar dá mais um passo para o seu colapso. O primeiro monstro foi criar os planos de saúde nos níveis empresariais e de grupos - qualquer trabalhador que tenha passado por isso conhece a perversidade dessa lógica. Se seu grupo adoece, o seguro aumenta, ainda que os planos sequer possuam detalhamentos técnicos de seus reajustes. Agora querem incluir os dados financeiros para agradar ainda mais o mercado. Para quem não teve a oportunidade de ler o artigo de Queiroga, é merecida a transcrição da joia da coroa:

Já os dados financeiros, em sintonia com o que ocorre no Banco Central com o open banking, trarão uma espécie de cadastro positivo da saúde. De forma anônima, as operadoras poderão ver os perfis dos usuários, sua assiduidade financeira, que tipos de cobertura têm e quais as características dos seus contratos e quanto pagam”. (Queiroga, Marcelo. ´Open health´ é questão de tempo, coragem e decisão. Folha de São Paulo, 5 de março de 2022.).

 Esqueceu-se de comentar que, junto com o cadastro positivo, vem o cadastro negativo: quanto menos saúde (física, emocional, financeira), pior será sua situação no mercado. Não é preciso ir muito longe para associar essa situação às inúmeras crises de hoje, aprofundadas pela pandemia.

Com tudo isso, será difícil compreender se até mesmo conservadores venha a votar nesta pauta. Pior ainda os liberais desavisados que cogitam votar, pois sequer seus interesses estarão contemplados, naquela vã esperança de que a saúde suplementar supriria as insuficiências do nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Quem acredita ainda na fantasia das virtudes do mercado? Fora os exemplos elencados aqui, as Organizações Sociais criadas em 1998 dispensam comentários. A Lei 13.019 de 2014 (parcerias com as Organizações da Sociedade Civil), não está recebendo o devido cuidado.

Por fim, o agradecimento do insuspeito Boris Johnson quando saiu do hospital do Serviço Nacional de Saúde (National Health Service - NHS, na sigla em inglês) pela recuperação diante do coronavírus, o atual governo brasileiro, com tudo isso, “esquece” que nossa virtude é o nosso SUS (primo do NHS), mesmo com todas as suas carências. Neste ano, a sociedade precisa ter clareza disso.


[1] Fisioterapeuta, professor do Município do Rio de Janeiro, doutor em História pelo CPDOC - FGV.

quarta-feira, 2 de março de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 18 - A RÚSSIA IDENTITÁRIA?


Estranhamento & Fraternidade

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Pensava-se, equivocadamente, anos atrás que o processo de globalização nos levaria a uma sociedade da informação que enfraqueceria a diversidade e geraria uma espécie de uniformidade global. Isso não aconteceu, embora algumas características comuns tenham se espalhado, especialmente onde o condão do mercado tocou e o seu modus vivendi no consumo se consolidou e as tendências identitárias se aprofundaram em muitos contextos.

Como resultado, cresceram as reivindicações identitárias  étnicas, de gêneros, orientações sexuais, culturais, linguísticas, de nacionalismos imaginários e/ou reais, de crenças religiosas, sócio-políticas, frutos de construções ideológicas como as que dividem sociedades entre figuras irredutivelmente adversárias como acontece nessa triste hora mundial da casa comum, onde a diplomacia é o terreno da esperança. O conjunto deles tende muitas vezes a enfraquecer o "nós" que garante a existência do "eu" que se plasmam em sociedades e Estados-Nacionais.

Essa miríade identitária, essa crescente demanda por identidades não precisa ser necessariamente negativa, pelo contrário, podemos enriquecer um novo “nós” mais complexo, inclusivo, fraterno e aberto ao diálogo e a empatia como sempre abraçou Gilberto Freyre (1900-1987). Mas, para isso, é fundamental que não se transforme em identidades "eu" estranhamente estranhas como apontou Carlos Fino em Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento (Lisboa: Lisbon Press, 2021), que negam a possibilidade de miscigenação, a influência mútua entre diferentes identidades, diminuindo assim a riqueza dos juntos e misturados entre etnias, gêneros, religiões e línguas, que desaprovam o pertencimento múltiplo e tendem a favorecer a atribuição a uma identidade repulsiva que se torna proprietária, impondo um pertencimento exclusivo a um único modo de ser e uma lealdade obrigatória a uma única comunidade e aos seus dirigentes.

O perigo das identidades enclausurantes, muitas vezes fruto de uma construção ideológica e de tradições inventadas, é o fanatismo, a defesa obsessiva de uma identidade, negando o que consideram diferente, e com isso o espírito guerreiro que assumem diante da heterogeneidade como se vê no Leste Europeu desde a década de 1990.

Se a identidade é entendida então como algo alheio à mudança, como algo estático, invariável, que exige uma forma de convivência exclusiva e excludente que aceita apenas a reiteração de uma singularidade exacerbada, mais supostamente pura que sua própria história e que é considerada moralmente superior, que abdica da diversidade em nome da diversidade e constrói comunidades sem janelas nem ar fresco, seu destino inevitável é relacionar-se com os outros por meio do confronto e, muitas vezes, do confronto violento como se vê há décadas, como na dantesca tragédia da Guerra do Kosovo e que agora recebeu uma versão literária pela Ilze Scamparini em Atirem direto no meu coração (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021).

Essa ideia de identidade inepta é incompatível com o sistema democrático, com valores universais compartilhados pela Organização das Nações Unidas (ONU), torna-se uma mania doentia que, ao afirmar tanto suas raízes, deixa de lado os frutos e plantas que são essenciais para a convivência humana, interrompendo a caminhada civilizatória.


Mas de toda essa complexa trajetória histórica surge uma poderosa miscigenação, uma fratelli tutti, um valioso movimento sincrético cultural, um “nós” com “eu”, que, por mais que os adeptos de uma identidade obtusa o neguem, está presente no cotidiano. E tudo isso também está presente na história do Brasil como tem mostrado o embaixador Ronaldo Costa Filho no Conselho de Segurança da ONU diante desse conflito entre Rússia e Ucrânia, pois sabe que não é uma história unívoca, e sim como Janus e suas duas faces e ambas nos moldam numa face injusta e conflitiva, outra mestiça e compartilhada.

Dai ele saber ser um erro profundo negar um dos rostos, colocar o olhar em uma parte e não no todo, transformar a complexidade em pura briga.

É uma história de 200 anos e também mais recente que contém ao mesmo tempo injustiças, conflitos, integrações, vivências comuns, e é nisso que consiste também a nossa miscigenação histórica.

Por isso que não podemos andar olhando para trás por ser uma impossibilidade tanto quanto refazer o mapa-múndi sem que o mundo exploda. Pessoas e instituições só podem ser apreciadas no contexto histórico pelo qual passaram.

Trata-se, mais uma vez, de dialogar, mesmo que sem as melhores condições, para se buscar uma saída na qual todos se encaixem, de concordar em conviver com nossas identidades e pertencimentos, sem deixar de construir um “nós” planetário.

 

1 de março de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.