quarta-feira, 6 de abril de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 22 - ELEIÇÕES NA EUROPA

Dom Casmurro e os Ecos das Eleições Francesas

Por Vagner Gomes de Souza

 

Poucos romances de Machado de Assis receberam tamanhas análises quanto Dom Casmurro e o tema do ciúme num universo de ascensão do que o historiador Eric Hobsbawm chamou de A Era do Capital. O Brasil em seus primeiros anos de consolidação do Segundo Reinado sob a narração de uma personagem que aos poucos deixou de ser um “Bentinho” para adquirir a alcunha que dá título à obra. Como os políticos que se envelhecem em décadas de democratização e ficam em busca de um eixo político ao Centro.

Provavelmente poucos ousariam a perceber  nessa perspectiva  a mudança do personagem como a também a transformação do papel do indivíduo na História. Simplesmente porque as análises de conjuntura política eleitoral se acumulam das tabelas de pesquisas de opinião e suas inúmeras segmentações. Entretanto, ainda poderíamos seguir a “velha cartilha” de tentar fazer uma análise a partir da conjuntura internacional diante dos impactos das transformações do capitalismo num momento de necessário debate sobre a questão da energia.

Há referências sobre essa questão de tamanha magnitude nas memórias de pouco lido e compreendido livro A Terra Prometida de Barack Obama em relação as tratativas sobre os acordos do Clima com os países do BRICS. O não tratamento desse tema de forma programática se expõe tanto nas interpretações anacrônicas sobra o imperialismo como fase superior e derradeira da globalização diante da Guerra da Ucrânia.

As sandices seriam poucas se estivessem limitadas apenas ao nosso país com esse vazio de debate programático sobre o papel da PETROBRÁS nesses tempos de crise energética. A oposição fica a tudo olhar bestializada com um pires na mão, porém a situação é muito mais ampla conforme nos sugerem as eleições europeias recentes. Se deixar tudo sem uma opinião, uma surpresa desagradável poderá ocorrer onde muitos do campo democrático pouco estão a observar que seria a ocupação de políticos reacionários no Senado da República (que tem prerrogativas que podem limitar muitas indicações do futuro Executivo).

Enquanto Volodymyr Zelensky vive tempos de “popstar” com discursos no Grammy e legislativos europeus alinhados ao “ocidentalismo”, o mundo real expõe como a União Europeia se deixou cair na ilusão de se transformar numa Casa Verde com lideranças políticas a ouvir um Simão Bacamarte de tamanha complexidade. Então, as eleições na Sérvia e  Hungria reacendem mais uma vez a premissa que o conservadorismo sempre ganha terreno em momentos de medo e incertezas. Essa é a sombra das chamas de Kiev nas cabeças dos eleitores que precisam de Gás para sobreviver. Tanto Aleksandar Vucic (Sérvia)[1] quanto Viktor Órban (Hungria) tiveram vitórias consagradoras na faixa de 60% dos votos conquistando um Parlamento dócil para suas medidas iliberais.


Então, as eleições presidenciais na França no próximo domingo (primeiro turno) já ganharam uma nova dimensão diante do posicionamento de Emmanuel Macron sobre a crise ambiental e o debate energético na Europa em tempos dessa desumana Guerra. Mais uma vez, se desenha uma polarização entre as forças do “Centro” político e a direitista Marine Le Pen que defende um lugar de fala para os franceses como crítica a União Europeia. Aos poucos, a candidatura do Reagrupamento Nacional ameaça até a vencer no Primeiro Turno, algo que não se imaginava há 30 dias, o que demonstra que nenhuma eleição é vencida por desejos nas redes sociais e que sirva de alerta para os ativistas brasileiros.

Entretanto, a grande pergunta é a ausência de uma Unidade Democrática que seja construída pela Esquerda francesa uma vez que Jean-Luc Mélenchon (Ex-Partido Socialista) aparentemente lembra sempre a traição dos Socialistas ao seu eleitorado. Sufragado pelos eleitores ressentidos, o candidato da França Insubmissa está sempre a denunciar que há um sistema traiçoeiro na União Europeia como se fosse a “Capitu”, mas nunca se abre a possibilidade de pontes programáticas que redimam essa imagem ciumenta. Uma candidatura que sempre atrapalhou uma necessária terceira via francesa, pois as “máquinas partidárias” sempre emperram diante os ecos da realidade.


[1] Ainda estamos no aguardo do resultado oficial em relação ao novo desenho do Legislativo da Sérvia, mas os primeiros números sugerem que os “Verdes” teriam assentos nele após meses de protestos ambientais sobre a exploração de Lítio.

terça-feira, 5 de abril de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 21 - DE VOLTA AO CHILE


 Gabriel Boric em sua Posse não contestada

Para onde podemos ir?

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


Na disputa pela escolha da maior barbárie cometida pelo atual governo brasileiro, não nos faltam opções. Claro, entre elas incluem o cancelamento das conquistas ambientais, a decisão de não investigar nenhum alto funcionário importante desse mandato durante os 4 anos e quiçá por décadas, nomear um elenco de grandes incompetentes para as pastas, desistir de fazer a reforma tributária e fiscal, entre tantos outros. Mas prefiro olhar este último assunto, especialmente à luz das primeiras ações do novo governo de Gabriel Boric no Chile.

É sabido que uma das decisões mais difíceis de um novo governo de dias é anunciar que aumentará impostos. Se deixarmos de lado os clássicos eufemismos do liberalismo econômico, não há reforma fiscal e tributária que não aumente a carga tributária de alguém: os ricos, os consumidores, a economia formal, as grandes empresas. Por isso, a maioria dos governos que buscam realizar reformas sociais profundas tenta obter financiamento para elas desde o início de sua gestão, sabendo que a janela para uma reforma desse naipe é pequena e efêmera.

Collor foi repreendido — e com toda a razão — por ter feito um sequestro bancário no primeiro dia de seu mandato (que acabaria incompleto) sem nenhuma negociação e que sequer apresentou um projeto de reforma fiscal e tributária.

Governos como os de Joe Biden, Álvaro Uribe, François Mitterrand (1916-1996) e Patricio Alwyn (1918-2016) tentaram aumentar impostos – com maior ou menor sucesso – nos primeiros meses no poder. A razão é óbvia. Não há reforma mais impopular e custosa em termos de capital político do que a tributária e fiscal; e geralmente não há momento de maior popularidade e capital político de um presidente do que no início de seu mandato.

Boric entende isso, entre outras razões, porque seus primeiros discursos como presidente mostram que ele frequentemente conversa com o ex-presidente chileno Ricardo Lagos – por exemplo, sobre a necessidade de diplomacia nas relações externas ibero-americanas para que ele possa falar a uma só voz e duradoura. O primeiro item programático de campanha com o qual trabalha (pretende apresentar essa reforma ao Congresso até junho) é aumentar a carga tributária chilena em cinco pontos do produto interno bruto (PIB) ao longo de seu mandato de quatro anos, com uma justificativa simples.

Ricardo Lagos presente a posse de Boric

Não há como atender às demandas e/ou reivindicações sociais do chamado “estalido” de outubro de 2019 sem aumentar os gastos públicos. E é impossível atingir estes objetivos sem aumentar a porcentagem do PIB que o Chile arrecada (20% por enquanto) em uma proporção significativa, a menos que se acredite em estórias absurdas como a do tesouro português da Derrama (1763-1764) baseada no dito combate à corrupção da Colônia em desfavor da Metrópole.

Boric cumprirá sua promessa ou não. Mas pelo menos ele está disposto a tentar. E os nossos, até aqui ninguém diz nada e nem se pensa nisso. Ao renunciar a uma reforma fiscal e tributária o atual o governo, parece esperar uma hipotética — e incerta — vitória nas eleições desse ano, satisfeito com seus vouchers compradores de votos e sempre convicto a não realizar nenhuma reforma social importante e duradoura.

Diferenças a parte do mandato brasileiro ao de Boric ainda que aparentemente semelhantes na ausência de maiorias parlamentares de partida com as quais todos os governantes costumam sonhar, o nosso sempre faltou inteligência e sabedoria no Ministério. Ao contrário, o economicismo primário et caterva preferiu manter a pressão fiscal e tributária no mesmo nível de antes (com pequenas variações devido aos esforços do Banco Central), condenando à impossibilidade de qualquer aumento significativo dos gastos sociais (o mais baixo em vista ao tão desejado assento na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE em relação ao PIB). Só poderia – e poderá – reorganizar os gastos: cortando da educação, saúde e habitação para aumentar – mal – a entrega do Auxílio Brasil a idosos, desempregados, estudantes, deficientes e a população em geral largada à própria sorte. Insistamos: Auxílio Brasil e só isso, cortando todo o resto.

Obviamente não houve reforma fiscal e tributária durante este governo, nem haverá. Não há governo democrático no mundo que se preze que não tente, inclusive por conta da pandemia e suas consequências que somado ao cenário tenebroso ex-ante alguma reforma fiscal e tributária, uma vez que só tornou esse assunto urgente urgentíssimo. Aqui está o pior pecado do que aí se encontra: nem mesmo tê-lo proposto, ao contrário de Boric. Um mandato de lastimas sem fim! Mas a cada circunstância eleitoral colhe o que vota. Teremos a chance de corrigir o nosso rumo. Mas para isso precisamos vencer o anacronismo e a ignorância; o Brasil pode e deve ser ousado e globalizado, como Boric está mostrando.

 

3 de abril de 2022




[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


segunda-feira, 28 de março de 2022

SÉRIE ESTUDOS - A peça O Alienista da Cia de Teatro EPIGENIA


A Dialética e a peça “O Alienista”

Por Vagner Gomes de Souza

 

“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários.”

Heráclito

 

Livremente inspirado na obra de Machado de Assis, a peça “O Alienista” está nos palcos do Rio de Janeiro até 10 de abril[1]. A Companhia de Teatro EPIGENIA transformou o texto pelas mãos de Celso Taddei e Gustavo Passo (Diretor da Peça) muito além de uma simples proposta de modernização da linguagem do conto machadiano para esses dias de pandemia e outras loucuras. Assim como, o HQ Batman Noel refundou o conto Um Conto de Natal do escritor Charles Dickens. Portanto, vá ao Teatro aberto para perceber que a essência das ideias pode persistir e mudar muitas coisas da realidade numa perspectiva sugerida por Heráclito já na Grécia antiga.

O mundo nos expõe a cada dia uma diversidade de posturas de ampla insanidade e, muitas vezes, nos questionamos como diversas pessoas se permitem a acompanhar essas ideias? Na peça, a ganância e a manipulação da fé até numa crença de um “cientificismo oxidoduoquadrosistêmico” expõe o quanto o mundo político estaria aprisionado num contexto de insanidade em reflexo a um possível estágio de anomia da sociedade. As “bancadas da Bíblia” se reúnem para votar verbas públicas num legislativo em “troca de favores”. A livre inspiração da peça se antecipou as recentes denúncias de possíveis “tráfico de influência” no Ministério da Educação que, junto com a Cultura, é um dos segmentos que mais regrediu a atual gestão do Governo Federal.

 

A regressão se faz presente no desenvolvimento da peça, pois Itaguaí de Metrópole vai caindo até a condição de simples vilarejo. E, aos poucos, Simão Bacamarte vai assumindo uma postura centralizadora e autoritária uma vez que suas iniciativas eram respaldadas por um meio político semelhante ao “Centrão”. Rupturas se observam ao longo da peça, mas perceberemos a mensagem que não se pode deixar a “Caixa de Pandora” do autoritarismo aberta em tempos de ressentimentos sociais.

Os desrespeitos a Ciência como método de reflexão e desenvolvimento da crítica associados aos regressos em tantos setores sociais exigem que a plateia busque mudar. E passa tudo por começar a desenvolver uma postura mais incisiva na formação de um debate por um programa que valorize a República e a Democracia. Por exemplo, quais seriam os critérios que justificariam a volta de um Ministério da Cultura em nosso país? Precisamos ter essa resposta na ponta da língua com argumentos que demonstrem possibilidades de realizações culturais que gerem emprego e inserção da juventude (ainda ausente do debate político pré-eleitoral) em atividades que valorizem a leitura e a interpretação.

Todo tipo de fundamentalismo se aproxima da loucura. A peça coloca esse ponto de forma tênue apesar de ampliar a temática também para a questão feminina. Alguma coisa se sugere que Dom Casmurro seria uma possível continuação nessa saga machadiana da Epigenia. Lembremos que Machado de Assis fez sucesso recentemente nos EUA com a reedição de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Entretanto, a essência da ironia da política dos textos de do “Bruxo de Cosme Velho” não pode se perder em fraturas da sociedade.



[1] A peça está na Grande Sala da Cidade das Artes. Texto: Celso Taddei e Gustavo Paso. Direção e Cenário: Gustavo Paso. Dias 16 e 17 de abril estará no SESC PALLADIUM em Belo Horizonte.

segunda-feira, 21 de março de 2022

OSCAR 2022 - ENTREVISTA COM O PROFESSOR PABLO SPINELLI

Apesar da Crise, falemos do Oscar


Somos aqueles que  estamos na "resistência" da República e da Democracia, mas encontramos oportunidade de refletir na produção cinematográfica um momento de observar sobre esses tempos sombrios. Aliás, esse é um segmento cultural que está numa transição em que a "privatização" da criatividade poderá atomizar ainda mais nossa sociedade. Aprofundando os efeitos nefastos a crise.

Não podemos deixar de lado a "opinião". E VOTO POSITIVO, mais uma vez, publica uma entrevista com o Professor Pablo Spinelli que faz do cinema uma avenida de oportunidades para muitos jovens que saem do senso comum para melhor compreender os impactos da Globalização. 

Seu profissionalismo conjugado ao seu conhecimento apaixonado pela "sétima arte" nos faz agradecer esse entrevista e que outras venham na história do Oscar. Uma entrevista que merecerá ser lida e divulgada.

DA REDAÇÃO

Nota: alguns filmes citados na entrevista abaixo receberam análises em VOTO POSITIVO em "A Doce Política no Cinema" números 1, 3 e 5. 


Foto: Claus Lehmann

1) As indicações do Oscar 2022 promete ser um “Balanço” da gestão Joe Biden feita por Hollywood ou estaríamos exagerando?

Acho um pouco exagerado, porque a Academia deve ter pensado mais no balanço da gestão Trump e como os EUA chegaram até o cenário de ter um líder político que testou as instituições democráticas até o limite e com forte adesão das massas. Biden deve aparecer mais ano que vem, em um cenário de filmes que devem falar da questão econômica, pandêmica e do desastre que está sendo a sua política no leste europeu. Os filmes desse ano têm um alento: estão menos preocupados com guetos identitários e um pouco mais universais, mesmo que fale mais para uma geração de 40 anos para cima do que para os jovens, cujo prêmio não tem representatividade como teve há 15, 20 anos.

 

2) Em sua opinião, as indicações do Oscar de 2022 ajudariam a sociedade brasileira a uma melhor reflexão sobre o tema da República e da Democracia?

Sim, sem dúvida. Um filme como Belfast é um exemplo de como podemos tratar do tema da inclusão social pós-pandemia, o mesmo se dá com o musical repaginado do Spielberg. Cumpre notar que há uma netflixação no Oscar com as indicações de “Não olhe para cima” e “O ataque dos cães”, ambos da Netflix e o “Rocky Balboa” da vez, “King Richard”, da Amazon Prime. Isso significa que a própria academia se rendeu à privatização do gosto pelo cinema. Isso é ruim para qualquer República. Cada vez menos teremos telões nas praias ou na Quinta da Boa Vista para dar lugar ao gosto doméstico de uma tela de telefone. Esse tema, não parece, mas é um tema para a República. Que acesso à cultura nós teremos e daremos? E a indústria do cinema vai empregar como antes? Em uma gestão orientada por um grupo de vendilhões da falsa moral e de interesses particulares representado por  um Mário Frias – como chegamos a isso? – não podemos pensar em “Retomada”. O nó dos filmes indicados ainda é o mesmo do Oscar: como chegar aos mais jovens? Um filme como Duna, por exemplo? Minha sugestão é que os mais velhos que leiam essa entrevista tomem para si essa tarefa pedagógica.

 

3) Vejamos as principais indicações para a categoria “Melhor Atriz”, qual seria sua análise?

Seria muito bom ver a Nicole Kidman ganhar um Oscar pela personagem da Lucille Ball, uma atriz que conseguiu fazer uma sitcom de maior audiência das Américas. Penelope Cruz está marcante no papel que Almodóvar lhe deu, mostrando maturidade. Olivia Colman já ganhou pelo ruim “A favorita” e é uma forte candidata para esse drama sobre o tema da maternidade em “A filha perdida”, uma abordagem mais para a classe média do que para as subalternas. Kristen Stewart mostra que a dupla de Crepúsculo cresceu bem e é a favorita dos jovens na enésima interpretação sobre a superestimada Lady Diana. Agora, seria muito bom a Jessica Chastain ganhar por “Os olhos de Tammy Faye” por conta do televangelismo americano dos anos 1970 e 1980 que aqui nos chegou de forma cabocla nos anos 1990. A ascensão e queda da personagem merece uma reflexão sem julgamentos a quem crê, mas a quem lucra com a fé alheia, tema que os argentinos fizeram bem na série “El reino”, da Netflix. Colman tem vantagem na disputa. Chastain segue atrás.

4) Esse ano Will Smith, na categoria de “Melhor Ator”, vai se sagrar vencedor?

Espero que não. Além de ser um ator mediano, ele fez Bad Boys, uma alegoria do que havia de pior da Era Bush II. Ele já tentou personificar o declínio do “sonho americano” em “A procura da felicidade” e agora a crença no mérito individual no filme “King Richard”. Como disse acima, é o Balboa repaginado. Lembro que Rocky antecedeu a Era Reagan. Denzel Washington deveria ter sido incensado pelo movimento neonegro por conta da interpretação de Macbeth, uma ousadia sair do óbvio Othello. Javier Bardem está muito bem no filme da Nicole Kidman, será uma lembrança no futuro, marido e mulher indicados. Andrew Garfield é uma promessa. Mas meu favorito é Benedict Cumberbatch, o melhor ator de sua geração, um inglês que faz qualquer papel, inclusive, a meu ver, o melhor intérprete da galeria Marvel. Ele explica o trumpismo e o bolsonarismo, o ressentimento, a inveja, o rancor, um personagem memorável para um Western de novo tipo.


5) Poucos analisam a categoria “Roteiro Original”, em sua opinião o que há de novidade nesse ano?

Antes de comentar queria destacar a excelente escolha de “filme estrangeiro”. Destaco o simpaticíssimo “A mão de Deus”. Para quem gosta de futebol ou foi jovem, é obrigatório. A novidade que não é nova é “Não olhe para cima” ganhar. O diretor-roteirista Adam Mckay apostou no tema ambiental e acabou por acertar quanto à pandemia. É um filme de esquete, com uma boa ideia, especialmente ao usar Meryl Streep para nos dizer com as cores da sua roupa que não há mais uma linha nítida entre Republicanos e Democratas. Gostaria que Belfast ganhasse, mas acho que não será. Importante o Kenneth Brannagh ser reconhecido.

6) Steven Spielberg foi ousado na Direção de um musical sobre uma Reforma Urbana “Trumpista” – “West Side Story”. Não poderá ser uma surpresa na premiação de “Melhor Filme” e “Melhor Direção”? Qual sua avaliação sobre essas duas categorias?

Poderá, mas não será. A sua indicação é uma forma de Hollywood olhar para a idosa “Nova Hollywood” (Francis Coppola, Martin Scorsese, o cancelado Woody Allen, dentre outros) e dizer: sabemos que vocês estão aí e somos gratos. Ele seria mais forte nos anos finais de Trump em virtude do tema do muro. Isso garantiu o Oscar ao excelente “A forma da água” e aos latino-americanos oscarizados que sumiram esse ano. Curioso, não? Acho que repetirá o ano passado e mais uma mulher vencerá. A muito competente Jane Campion.

 

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 20 - ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS 2022


Bolsonaro pode ganhar sim. De novo.

 

Marcio Junior[1]

 

        

Em ano de bicentenário, se aproxima mais uma eleição presidencial. Como certa vez escreveu Luiz Werneck Vianna: mais do que uma escolha por um determinado candidato, seu partido e programa (aqui podemos e devemos não ser generosos: onde estão os programas, do ponto de vista objetivo? Temos?), significa, entre nós, uma escolha de futuro, de qual caminho queremos seguir.

Estamos, decerto, de frente a um cenário de terra arrasada já a alguns anos, o qual o atual governo não apenas contribuiu para aprofundar como se aproveitou dele anteriormente para ser eleito e governar. As transformações do capitalismo brasileiro, tendo o Estado como centro de inteligência e orientação para a expansão de uma ordem grão-burguesa, construída ao longo de décadas e que possibilita novas formas que aprofundam a concentração da acumulação de capital, minaram a política enquanto prática virtuosa de disputa republicana e democrática, que atingiu seu auge na Assembleia Constituinte em 1987/88. Essa associação entre Estado e mercado forneceu à sociedade, esta já sem luz própria, desorganizada e ressentida pela violência e pelo bolso vazio.

O "eu" do mercado, do ser que busca competir em nome dos próprios interesses e satisfações individuais, se tornou dirigente, e nas relações dele com outros sujeitos não há ou é muito restrito o espaço para a solidariedade, sendo este um fenômeno, decerto, global. Aqui, a mercantilização da vida social, algo visível  sobretudo nos coletivos e na educação (como, por exemplo, na criação de cursos de educação financeira e empreendedorismo nas escolas, equívocos que passam, inclusive, pela compreensão falha de como funciona o próprio mercado), está pulsante, tendo como suposto programa o estímulo equivocado à afirmação individual, sua identidade e busca pela saúde mental e financeira enquanto soluções suficientes para o enfrentamento e solução dos problemas históricos e sociais. O aporte emocional para o enfrentamento das mazelas da desigualdade do país viria tão somente do particular de cada um, levando as pessoas a procurarem aporte emocional em atividades que remontam ao seu interior particular, lotando igrejas neopentecostais, salas de espera para sessões de psicoterapia e não só.

Em meio a essa conjuntura de desequilíbrio de antagonismos, que ainda está a nos sufocar e já é propícia à fragmentação, as redes sociais repetem 2018 e se tornaram arena de embates, seja entre jovens ou mais velhos. Assim, o então candidato Bolsonaro, inteligentemente, percebeu a oportunidade de capturar ali os votos que o elegeram e conduziram ao centro da máquina administrativa o que há de mais atrasado entre nós. A lógica do "eu" sobre o "nós" encontra, deste modo, a sua tradução política no ideário de Paulo Guedes e não só, atuando em favor de um capitalismo sem freios, sob o “programa” de diminuição do público e tensionando com os elementos igualitários presentes na Carta de 88.

Esta problemática perceptivelmente ainda está entre nós, e há o desafio de atacar nossos problemas para que se possa direcioná-la para um caminho virtuoso, que compreenda as mudanças sociais irreversíveis que ocorrem diante dos nossos olhos. Não há como dar conta de tal tarefa sem, sobretudo, perícia política, algo difícil de ser feito em meio à “ditadura velada” das identidades, que nos sufoca e insiste em separar. O “eu” pode ser trabalhado de forma mais virtuosa e não excludente ao social, como no chaveamento teórico de um Norbert Elias em seu A Sociedade dos Indivíduos (Zahar, 1994).

Em entrevista a William Waack, realizada em 1997, o historiador Eric Hobsbawm foi perguntado por este jornalista sobre a história e o futuro, afinal, o futuro também pode ser história. O historiador, já idoso, se ajeitou em sua poltrona e chamou atenção para uma linearidade entre o passado, o presente e o futuro; quais as chances de algo que aconteceu ao longo do tempo e acontece hoje continuar acontecendo? Ou, fazendo uso do conceito da matemática, mais certeiro: qual a probabilidade? Esta, creio eu, é uma pergunta que precisa ser feita (e bem feita) por todos para se enfrentar o processo eleitoral decisivo que já acontece diante dos nossos olhos. Neste trabalho de imenso esforço há coisas que não se pode saber; porém, há outras que sim. Mesmo assim, a provocação cabível nesses tempos fraturados, que seguem seu curso, está na frase dita pelo célebre historiador: a única corrida de cavalos previsível é a que já acabou. O que podemos aprender sobre isso a partir de 2018 está aí: separar, em termos de sabotar propositalmente ou não os laços entre as pessoas, já nos levou e pode levar de novo a uma escolha funesta de futuro. Vamos em frente.




-       [1]Historiador e doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ.

segunda-feira, 7 de março de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 19 - SAÚDE EM DEBATE


Open Health - há quem compre essa ideia?

 

Tiago Martins Simões[1]

Desde janeiro de 2022 o Ministro da saúde, Marcelo Queiroga, vem defendendo o “Open Health” para o sistema de saúde suplementar brasileiro. Em artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 5 de março deste ano, detalha um pouco mais do seu projeto, expondo nele o ideário de Paulo Guedes: mais mercado, menos Estado, menos público. Nada se discute, por exemplo, sobre a regulamentação da saúde suplementar, cujos problemas foram precisamente colocados por Maria Lucia Werneck Vianna em seu A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil de 1998. Este livro está de pé, basta ver os inúmeros problemas envolvendo os planos de saúde na pandemia e anteriormente - bem como o atualíssimo processo de venda da operadora Amil, sendo um dos seus mais recentes capítulos.

É curioso tudo isso. Guedes se gaba por sua formação econômica nos Estados Unidos da América (EUA), mas a rota que ele cria junto ao Ministro Queiroga, ao traçar um paralelo de política bancária (a sempre recordada criticamente pelo Paulo Freire) com política sanitária, sequer encontra respaldo naquele país. Se a hipótese de que o artigo foi pensado por Guedes não é verdadeira, o problema continua o mesmo, tendo em vista a recente missão do ministro da saúde aos EUA. Ninguém pode alegar falta de conhecimento.

Com esse incrível projeto pensado (será?) por essa qualificada equipe, a saúde suplementar dá mais um passo para o seu colapso. O primeiro monstro foi criar os planos de saúde nos níveis empresariais e de grupos - qualquer trabalhador que tenha passado por isso conhece a perversidade dessa lógica. Se seu grupo adoece, o seguro aumenta, ainda que os planos sequer possuam detalhamentos técnicos de seus reajustes. Agora querem incluir os dados financeiros para agradar ainda mais o mercado. Para quem não teve a oportunidade de ler o artigo de Queiroga, é merecida a transcrição da joia da coroa:

Já os dados financeiros, em sintonia com o que ocorre no Banco Central com o open banking, trarão uma espécie de cadastro positivo da saúde. De forma anônima, as operadoras poderão ver os perfis dos usuários, sua assiduidade financeira, que tipos de cobertura têm e quais as características dos seus contratos e quanto pagam”. (Queiroga, Marcelo. ´Open health´ é questão de tempo, coragem e decisão. Folha de São Paulo, 5 de março de 2022.).

 Esqueceu-se de comentar que, junto com o cadastro positivo, vem o cadastro negativo: quanto menos saúde (física, emocional, financeira), pior será sua situação no mercado. Não é preciso ir muito longe para associar essa situação às inúmeras crises de hoje, aprofundadas pela pandemia.

Com tudo isso, será difícil compreender se até mesmo conservadores venha a votar nesta pauta. Pior ainda os liberais desavisados que cogitam votar, pois sequer seus interesses estarão contemplados, naquela vã esperança de que a saúde suplementar supriria as insuficiências do nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Quem acredita ainda na fantasia das virtudes do mercado? Fora os exemplos elencados aqui, as Organizações Sociais criadas em 1998 dispensam comentários. A Lei 13.019 de 2014 (parcerias com as Organizações da Sociedade Civil), não está recebendo o devido cuidado.

Por fim, o agradecimento do insuspeito Boris Johnson quando saiu do hospital do Serviço Nacional de Saúde (National Health Service - NHS, na sigla em inglês) pela recuperação diante do coronavírus, o atual governo brasileiro, com tudo isso, “esquece” que nossa virtude é o nosso SUS (primo do NHS), mesmo com todas as suas carências. Neste ano, a sociedade precisa ter clareza disso.


[1] Fisioterapeuta, professor do Município do Rio de Janeiro, doutor em História pelo CPDOC - FGV.

quarta-feira, 2 de março de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 18 - A RÚSSIA IDENTITÁRIA?


Estranhamento & Fraternidade

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Pensava-se, equivocadamente, anos atrás que o processo de globalização nos levaria a uma sociedade da informação que enfraqueceria a diversidade e geraria uma espécie de uniformidade global. Isso não aconteceu, embora algumas características comuns tenham se espalhado, especialmente onde o condão do mercado tocou e o seu modus vivendi no consumo se consolidou e as tendências identitárias se aprofundaram em muitos contextos.

Como resultado, cresceram as reivindicações identitárias  étnicas, de gêneros, orientações sexuais, culturais, linguísticas, de nacionalismos imaginários e/ou reais, de crenças religiosas, sócio-políticas, frutos de construções ideológicas como as que dividem sociedades entre figuras irredutivelmente adversárias como acontece nessa triste hora mundial da casa comum, onde a diplomacia é o terreno da esperança. O conjunto deles tende muitas vezes a enfraquecer o "nós" que garante a existência do "eu" que se plasmam em sociedades e Estados-Nacionais.

Essa miríade identitária, essa crescente demanda por identidades não precisa ser necessariamente negativa, pelo contrário, podemos enriquecer um novo “nós” mais complexo, inclusivo, fraterno e aberto ao diálogo e a empatia como sempre abraçou Gilberto Freyre (1900-1987). Mas, para isso, é fundamental que não se transforme em identidades "eu" estranhamente estranhas como apontou Carlos Fino em Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento (Lisboa: Lisbon Press, 2021), que negam a possibilidade de miscigenação, a influência mútua entre diferentes identidades, diminuindo assim a riqueza dos juntos e misturados entre etnias, gêneros, religiões e línguas, que desaprovam o pertencimento múltiplo e tendem a favorecer a atribuição a uma identidade repulsiva que se torna proprietária, impondo um pertencimento exclusivo a um único modo de ser e uma lealdade obrigatória a uma única comunidade e aos seus dirigentes.

O perigo das identidades enclausurantes, muitas vezes fruto de uma construção ideológica e de tradições inventadas, é o fanatismo, a defesa obsessiva de uma identidade, negando o que consideram diferente, e com isso o espírito guerreiro que assumem diante da heterogeneidade como se vê no Leste Europeu desde a década de 1990.

Se a identidade é entendida então como algo alheio à mudança, como algo estático, invariável, que exige uma forma de convivência exclusiva e excludente que aceita apenas a reiteração de uma singularidade exacerbada, mais supostamente pura que sua própria história e que é considerada moralmente superior, que abdica da diversidade em nome da diversidade e constrói comunidades sem janelas nem ar fresco, seu destino inevitável é relacionar-se com os outros por meio do confronto e, muitas vezes, do confronto violento como se vê há décadas, como na dantesca tragédia da Guerra do Kosovo e que agora recebeu uma versão literária pela Ilze Scamparini em Atirem direto no meu coração (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021).

Essa ideia de identidade inepta é incompatível com o sistema democrático, com valores universais compartilhados pela Organização das Nações Unidas (ONU), torna-se uma mania doentia que, ao afirmar tanto suas raízes, deixa de lado os frutos e plantas que são essenciais para a convivência humana, interrompendo a caminhada civilizatória.


Mas de toda essa complexa trajetória histórica surge uma poderosa miscigenação, uma fratelli tutti, um valioso movimento sincrético cultural, um “nós” com “eu”, que, por mais que os adeptos de uma identidade obtusa o neguem, está presente no cotidiano. E tudo isso também está presente na história do Brasil como tem mostrado o embaixador Ronaldo Costa Filho no Conselho de Segurança da ONU diante desse conflito entre Rússia e Ucrânia, pois sabe que não é uma história unívoca, e sim como Janus e suas duas faces e ambas nos moldam numa face injusta e conflitiva, outra mestiça e compartilhada.

Dai ele saber ser um erro profundo negar um dos rostos, colocar o olhar em uma parte e não no todo, transformar a complexidade em pura briga.

É uma história de 200 anos e também mais recente que contém ao mesmo tempo injustiças, conflitos, integrações, vivências comuns, e é nisso que consiste também a nossa miscigenação histórica.

Por isso que não podemos andar olhando para trás por ser uma impossibilidade tanto quanto refazer o mapa-múndi sem que o mundo exploda. Pessoas e instituições só podem ser apreciadas no contexto histórico pelo qual passaram.

Trata-se, mais uma vez, de dialogar, mesmo que sem as melhores condições, para se buscar uma saída na qual todos se encaixem, de concordar em conviver com nossas identidades e pertencimentos, sem deixar de construir um “nós” planetário.

 

1 de março de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 17 - LIÇÕES DE OBAMA


Uma revolução passiva na terra prometida

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Obama, Barack. Uma terra prometida. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 751 p. 764 f.

 

Barack Obama é um grande escritor. Sua fama como tribuno sempre eclipsou a do escritor. Mas ao dar azo a prosa de sua memória (toda passível de documentação), o magnífico dos lugares, os detalhes do vívido, permite sempre um deleite da leitura, frases por frases, quando recorda, por exemplo, ter guardado, também em foto, com afeto cada momento que passou com Michelle e as filhas Malia e Sasha na visita à estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, revelando-se mágica. E este é o primeiro volume e começa com sua vida pública, traçando o passo a passo de suas campanhas políticas e termina com um briefing no Kentucky, onde ele é apresentado às equipes SEALs (sigla SEa, Air, e Land derivada de sua capacidade para fazer operações no mar, no ar e em terra) envolvidas no ataque a Abbottabad no Paquistão nos primeiros dias de maio de 2011 que, como ele conta ter sido a primeira e única vez que, enquanto presidente, testemunhou uma operação militar que aconteceu em tempo real.

Obama com sua mãe Ann Dunham

Sua abordagem é mais pública do que pessoal, mas quando escreve sobre os seus é com uma beleza que beira a nostalgia. Os momentos estão enraizadas na tradição oral de contar histórias como havia nos mostrado Joaquim Nabuco (1849-1910) e Gilberto Freyre (1900-1987), com vários sentidos figurados que a acompanham. Sua linguagem não teme sua própria riqueza imaginativa. Uma freira sorrindo lhe dá uma cruz de prata com um rosto tão sulcado como um caroço de pêssego. Os jardineiros da Casa Branca são os sacerdotes de uma ordem boa e solene. Há um espírito romântico, uma corrente quase melancólica - que Leandro Konder (1936-2014) consagrou entre nós - em sua visão da escrita. No momento em que se prepara para ir ao jantar após receber o Prêmio Nobel da Paz em Oslo, seu assessor Marvin Nicholson pede que olhem pela janela para ver uma multidão de pessoas com suas velas em chamas bruxuleando na noite escura.

Aliás, o que é esse Prêmio Nobel da Paz? Ele tem plena consciência de que sua imagem pública é superestimada. Uma terra prometida é uma reflexão, sobretudo de sua trajetória política, e nele Obama está aberto também ao autoquestionamento. É justo dizer que existe a memória de Sócrates (470 AEC - 399 AEC): a vida não deixa de ser examinada para Obama, pois só assim vale a pena ser vivida. Mas quanto disso é uma postura pensada? Essa tendência parece ter nutrido nele algo de caridade, uma percepção planetária sadia, uma generosidade profunda. E assim ele é pródigo em perdão e louvor, e dá o benefício da dúvida mesmo para aqueles que mal o merecem. No último dia de George W. Bush na Casa Branca, ele está irritado com a visão dos manifestantes e acha ”deselegante e desnecessário" protestar contra um Presidente nas horas finais de seu mandato. Uma bela postura. E ao ler essas passagens não há como deixar de indicar o belíssimo livro 18 dias (Objetiva, 2014) do Matias Spektor, que conta a história de como Fernando Henrique Cardoso (que também versa sobre no seu quarto e último volume dos Diários da Presidência) e Lula e trabalharam juntos para a aproximação com o governo Bush logo após as eleições de 2002.

Mas, e a questão da raça? Ele escreve sobre raça tendo junto de si As Almas do Povo Negro do mestre W. E. B. Du Bois (1868-1963), Martin Luther King Jr. (1929-1968), Toni Morrison (1931-2019) entre tantas outras e outros, e estando muito ciente de que será lido por pessoas que podem se imaginar sendo ofendidas. Entretanto, ele mostra que as situações de racismo convivem sempre com outros exemplos que mostram ostensivamente a sua complexa circunstância.

Todavia, Obama reconhece que durante sua campanha à Presidência, que as políticas de interesse direcionadas – por grupos étnicos, fazendeiros, entusiastas do controle de armas, entre outras e outros – não fazem parte da sociedade politica nos Estados Unidos, mas desses movimentos que os promovem por sua conta e risco. Concentrar-se nessas questões como supostos direitos ou qualquer outra coisa é arriscar se embrenhar entre as árvores e perder de vista a floresta.

Assim, Obama é um político que se observa a si mesmo, curiosamente puritano em seu ceticismo, virando-se para ver todos os ângulos e possivelmente insatisfeito com todos, e ciente de que além de ser incapaz de ser um ideólogo, não nesse terreno que se faz a cultura prometeica.

A história seguirá no próximo volume, mas Barack Obama já iluminou um momento crucial de como os Estados Unidos da América e o mundo mudaram enquanto também conservaram.

 

19 de fevereiro de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 9 - O FILME EDUARDO E MÔNICA

 

A Transição em Renato Manfredini Júnior[1]

Por Vagner Gomes de Souza

 

Quem um dia irá dizer que não existe transição nas músicas que feitas pelo coração. No filme Eduardo e Mônica de René Sampaio é mais um exemplo de releitura da música homônima de Renato Russo. E quem me irá dizer que não existe a transição. O filme foi realizado em 2018. Seria lançado em 2020 e a pandemia o adiou para ocupar as salas de cinemas desde 20 de janeiro num momento em que muitos artistas se encontram sem uma atividade.

René Sampaio busca abrir os olhos do público, mas a democracia precisa se levantar. Tudo começou em 2013, com Faroeste Cabloco[2], como se fosse possível interpretação da relação da crise da República com a sociedade brasileira. Uma vez que o deslocamento do social das instituições políticas permitiu muito disso. Vieram as legiões de manifestações em junho não resolvidas no debate eleitoral de 2014. O duelo final de “Santo Cristo” muito bem poderia ser a polarização entre o “moderno” e o “atraso”.

O Diretor faz seus filmes, mas nem sempre as concretiza como muito bem deseja, pois o roteiro da transição é um “fio condutor” nas composições “Faroeste Caboclo” (1979 – lançado em 1987) e “Eduardo e Mônica” (1986). Então, o filme não é uma simples comédia romântica por mais que a história nascida num encontro casual numa festa estranha possa nos sugerir. O encontro de um casal como se fosse a tentativa de um encontro de gerações num país fragmentado pelo amplo mosaico de identidades.

Alice Braga (Cidade de Deus, O Esquadrão Suicida) interpreta uma Mônica muito mais “velha” que a que perceberíamos na letra original da canção. Provavelmente porque as referências “cult” dos anos 80 sejam mais distantes do entendimento dos jovens da atualidade (ausentes das salas de cinema para essa modalidade de filme). Jovens que estariam deitados a olhar as horas passar. Enfrentam um momento estranho de gente esquisita no Planalto Central, mas ficam distantes ainda dos valores republicanos.

Gabriel Leone (Dom, e a novela Um Lugar ao Sol) faz parte dessa juventude que se sustenta na birita. Ele é o jovem que só pensa em ir para casa seja Vila Militar, Ceilândia, Campo Grande ou Itaguaí. Um jovem que está sempre a se ferrar. Muito distante dos envelhecidos jovens “maoístas” que assistiram a película Marighella, Eduardo é um jovem de um mundo real em plena destruição da educação com os cursinhos de Pré-Vestibular (a pré-História do Novo Ensino Médio) que tentava a Mônica impressionar.

Esse desafio por um diálogo entre gerações para a construção de uma longa transição se faz na troca de telefones da canção que assume uma cena poética no filme. Eduardo sugeriu comer carne para a vegetariana. E Mônica sugeriu assistir um filme da nouvelle vague para um jovem que nem cursava Eletiva sobre Cinema. Então, decidiram se reencontrar no Parque da Cidade diante dos azulejos de Athos Bulcão (também relembrado no filme na cena dos relevos do Teatro Nacional de Brasília).

A dialética entre contrários precisaria de uma síntese que somente se daria pela transição como coisas do coração. Pois, “Eduardo e Mônica era nada parecido/Ela era de Leão (signo de pessoas vaidosas em se ver até numa crítica de filme diriam os astrólogos) e ele tinha dezesseis”. E o Eduardo era de uma geração que ainda gostava de novela nos anos 80. Mônica falava para uma geração que se distanciava da política pelo individualismo no social. Uma fratura Estado e sociedade via mercado como herança da modernização conservadora de nosso país.

“E, mesmo com tudo diferente. Veio meio de repente. Uma vontade de se ver. E os dois se encontravam todo dia. E a vontade crescia. Como tinha de ser.” Essa é a inspiração da canção para os próximos passos da juventude nos tempos de transição e em todos os tempos. Uma vez que a “centro-esquerda” brasileira, que brigaram juntos muitas vezes depois da Constituição de 1988, se reencontra no filme diante dos desafios de colocar até chuchu num feijão com arroz.

Construir uma casa comum pela via da República e da Democracia é mais desafiador que exigir que o filme de René Sampaio seja mais uma retomada do cinema brasileiro que sempre vive suas fases. Uma batalha que vai além da grana diante de desafios do ensino brasileiro. Uma vez que se faz preciso atravessar essa barra mais pesada Uma vez que sem programa se vai para qualquer eleição sem direito a recuperação.




[1] Há trechos da letra da canção “Eduardo e Mônica” de Renato Russo.

[2] Em 2013, resenhamos o filme. Tenham acesso através desse link https://votopositivo-cg.blogspot.com/2013/06/faroeste-cabloco-o-filme-opiniao.html